Expansão do Wi-Fi público às “custas” de dados pessoais

O caso de SP e a necessidade de avançar em políticas municipais de proteção dos dados pessoais.
Por Bruno Bioni*

 

Dados pessoais e gestão pública: o caso de São Paulo

Antes mesmo de iniciar a sua gestão, a proposta do programa de governo de João Dória sobre a criação de uma “cidade digital” já era alvo de críticas. Em particular, porque ela se pautava única e exclusivamente pela lógica de gerar eficiência e expansão dos serviços públicos, sem haver a preocupação de combiná-la com medidas que garantissem a privacidade e a proteção dos dados dos paulistanos.

O anúncio da Prefeitura sobre o “maior programa de privatização” da história de São Paulo evidenciou ainda mais essa visão da atual gestão. Na cesta de bens ofertados, estava a base de dados do bilhete único que permitiria às empresas interessadas na sua aquisição que obtivessem uma série de informações dos usuários do sistema de transporte público, tais como: CPF, RG, filiação, foto do rosto, endereço residencial e, o mais preocupante, todos os trajetos realizados pelos usuários, dados estes que permitiriam traçar uma perfil muito sensível sobre os hábitos dos cidadãos paulistanos.

Aliás, nesse ponto em específico, é que residiria a grande riqueza da base de dados do bilhete único. Os “rastros” de deslocamento dos usuários do serviço tornariam ainda mais preciso o direcionamento depublicidade, por exemplo. Sobre isso, vale frisar que não é mera coincidência quando o anúncio de lojas, restaurantes e outros estabelecimentos comerciais aparecem literalmente ao lado do potencial consumidor.

O valor econômico dessas informações não é novidade e tem sido a tônica dos modelos de negócios online, nos quais o consumidor “troca” seus dados pelo acesso a um determinado bem de consumo. O que é, no entanto, de certa maneira novo é um gestor público se apoiar nessa lógica comercial para formular suas políticas públicas.

No último dia 10 de julho, o prefeito João Dória sancionou a Lei 16.685/2017, a qual dispõe sobre o Programa “Wi-Fi Livre Sampa”. Este dá continuidade ao programa “WiFi Livre SP”, realizado na gestão anterior, de “levar internet gratuita e de qualidade” para praças públicas, só que, desta vez, ampliando-o para uma outra série de espaços públicos.

Na versão original do projeto de lei, existiam dois dispositivos que tratavam a respeito da “desnecessidade de cadastro prévio para fazer uso da Wi-Fi”, assim como, da “página inicial estar sempre integrada a home page da prefeitura municipal”. Ao vetá-los, o prefeito o fez sob o seguinte argumento:

“as disposições sobre a desnecessidade de cadastro prévio do usuário para a utilização do serviço (artigo 2º) e sobre a obrigatoriedade de a página inicial de navegação estar sempre integrada à “home page” da Prefeitura (artigo 3º) restringem os possíveis modelos de financiamento do próprio programa. Isso porque, para a disponibilização do acesso de maneira mais ampla, a Administração Municipal, no atual momento, busca modelos alternativos de provimento e financiamento, considerando-se, dentre eles, aquele implementado em parceria com a iniciativa privada que, por meio da mídia programática (mecanismo que torna possível compreender o perfil dos consumidores e definir uma base de dados assertiva para adequação de anúncios), arcaria com os custos de ampliação e operação.” (grifos)

Em outras palavras, a iniciativa privada ofereceria toda a infraestrutura de conectividade e em troca receberia os dados de navegação dos usuários do “Wi-Fi Livre”. No caso, a partir do registro dos sites por eles acessados, seria formado um perfil a respeito dos seus gostos e predileções para lhes direcionar publicidade cada vez mais refinada. Ou seja, o programa se daria “às custas” dos dados pessoais dos paulistanos. A vida online deles, uma vez conectados ao Wi-Fi Público, seria a contraprestação da referida parceria público-privada.

Privacidade na equação econômico-financeiro da “cidade digital”

A opção de João Dória é delicada e problemática, merecendo, ao menos, duas reflexões.

Do ponto de vista estritamente jurídico, a Lei nº 12.965/2014, citada nas razões do veto e conhecida como Marco Civil da Internet, fez uma opção muito clara ao proibir que os provedores de conexão coletassem os dados de navegação dos usuários brasileiros. Isto porque, eles são a “porta de entrada e saída da internet”, de modo que o “monitoramento seria completo e integral” da vida online do usuário. Este é um dos “núcleos duros”[i] do direito à privacidade, a fim de que modelos de negócios não a asfixiem, bem como sejam menos invasivos.

Mutatis mutandis, o que se propões com “Wi-Fi Livre Sampa” é transpor essa barreira. Pelas razões do veto, o usuário seria obrigado, inclusive, a se cadastrar previamente, o que permitiria a associação inequívoca da sua identidade para a formação de um perfil comportamental completo da sua navegação. Tudo isso, ao final, geraria “uma base de dados assertiva para adequação de anúncios” que “arcaria com os custos de ampliação e operação” do programa.

Isso nos reconduz a uma segunda reflexão e a qual abriu esse ensaio: a construção de uma “cidade digital” não deve se pautar somente por uma lógica econômica, mas, também, por outros fatores.

Uma das possíveis reflexões é como a articulação de tais políticas públicas pode reforçar desigualdades. Não é difícil imaginar que a grande parcela dos usuários do Wi-Fi público são e serão pessoas de classes sociais mais baixas, as quais não carregam em seu bolso um plano de internet móvel com franquias elevadas e, muitas vezes, sequer têm internet fixa em suas residências.

A equação econômico-financeiro dessa política pública corre o risco de tornar a privacidade um artigo de luxo, de uma classe que não precisa de assistência social. Nesse caso em específico, por mais bem-intencionada que seja a proposta, a inclusão gera paradoxalmente exclusão.

A agenda de cidades inteligentes: é necessário avançar em políticas e leis municipais de proteção de dados pessoais

Essa é apenas a ponta do “iceberg” quando se analisa a fotografia maior do cenário das chamadas “cidades inteligentes”. Nelas, a inteligência, a qual provém em grande parte a partir dos dados pessoais dos cidadãos, informará a formulação de políticas públicas e a prestação dos serviços públicos. No caso, mobilidade urbana, saúde, educação e uma outra série de atividades do cotidiano seriam otimizadas.

Considerando que cada vez mais a relação entre munícipe e município tende a ser intermediada pela coleta e processamento de dados, é necessário avançar em políticas municipais para que esse fluxo informacional promova de fato uma melhoria na vida do cidadão e, ao final, seja ainda nutrida e preservada a confiança deste junto à administração municipal.

O esforço da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade/LAVITS vem caminhando nessa direção. Considerando que os Municípios têm competência para legislar sobre assuntos de interesse local, leis municipais poderiam ser articuladas para assegurar ao cidadão controle e transparência em relação ao tratamento de suas informações pessoais e, por outro lado, segurança jurídica para a administração pública deles se valer, a fim de tornar a gestão pública cada vez mais eficiente.

As cidades somente serão realmente inteligentes se responderem[ii] a ambos os propósitos.

 

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[i] A expressão foi utilizada para ilustrar como um dos casos no ordenamento jurídico brasileiro em que a autonomia privada do titular dos dados pessoais é relativizada: BIONI. Bruno Ricardo. Consentimento na proteção de dados pessoais: função em limites (no prelo). São Paulo, 2017.

[ii] Faz-se alusão ao que propõe os professores Stephen Goldsmith e Susan Crawford no que eles chamam de “responsive city”.

 

*Mestre em direito pela USP e pesquisador da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade/LAVITS.

Texto publicado originalmente no Jota, no dia 17/07/2017

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