#23: Os Laboratórios do Trabalho em Plataformas

Por Rafael Grohmann *

 

A plataformização do trabalho, entendida como a crescente dependência de infraestruturas digitais para executar atividades de trabalho, é a materialização e a combinação de processos já existentes, com financeirização, dataficação e flexibilização do trabalho. A pandemia contribui para acelerar seu processo, seja no trabalho em casa ou nas ruas, por meio da intensificação do uso de softwares de vigilância sobre os trabalhadores, extração de dados como forma de capital e gerenciamento algorítmico do trabalho, considerando as desigualdades existentes desde a produção desses sistemas automatizados. São novos-velhos experimentos que evidenciam que o trabalho em plataformas é um verdadeiro laboratório da luta de classes.

O que estamos acompanhando é a crescente generalização da plataformização do trabalho para todas as atividades. O trabalho docente, por exemplo, tem dependido de plataformas proprietárias, com suas materialidades e reorganização de práticas, como o “vocês estão me ouvindo?”. Há plataformas em que há menus e botões para você solicitar profissionais de saúde – como dentista, fisioterapeuta e gerontólogo – ou mesmo trabalhadores que a plataforma considera como “inusitados”, como assessor de imprensa, drag queen, cervejeiro, ghost writer, Papai Noel e piloto de drone – todos reunidos na mesma categoria.

Entretanto, a plataformização do trabalho está longe de ser um processo homogêneo, pois há distintos tipos de plataformas digitais e, por conseguinte, diversos perfis de trabalhadores, com marcadores de gênero, raça, frações de classe e território. Tem desde a plataforma francesa Creme de la Creme, considerada “a primeira comunidade seletiva de freelancers”, especialmente dos setores de tecnologia, dados, design e marketing digital, até as conhecidas plataformas de entrega de mercadorias, passando por plataformas cujos trabalhadores produzem dados para sistemas de inteligência artificial. Cada plataforma, mesmo de um mesmo setor, possui seus mecanismos e materialidades, o que contribui para a complexificação do cenário. Desta maneira, é impossível dizer que existe apenas um perfil de trabalhadores ou de plataformas.

A questão geográfica é uma das muitas dimensões nesse cenário. Por um lado, nossa inserção em projetos como Fairwork, tem nos mostrado que há muitas semelhanças nas condições de trabalho – especialmente o que se chama de composição técnica de classes – entre, por exemplo, um entregador no Brasil, na Inglaterra – inclusive com muitos brasileiros trabalhando – na Índia, na África do Sul ou nas Filipinas, evidenciando articulações e possíveis circulações de lutas dos trabalhadores. Por outro, há contextos e especificidades locais de ordens políticas, sociais, jurídicas, legislativas e econômicas. Por exemplo, na Europa e na América do Norte, houve a emergência de expressões como gig economy para nomear o cenário do trabalho em plataformas. Contudo, essa é a especificidade deles, que querem tornar universal a validade dessa noção. Ora, a história da economia brasileira é uma grande gig economy, com o gig sendo a norma permanente, como algo imposto na gestão da sobrevivência da classe trabalhadora. E a novidade, então, reside justamente na subordinação dos trabalhadores às plataformas – com suas empresas e seus mecanismos. E esse cenário se repete em muitos outros países. Não se trata, então, exatamente de uma especificidade nossa.

Mas certamente existe uma geopolítica do trabalho em plataformas. Segundo o Online Labour Index, da Universidade de Oxford, no dia 20 de novembro de 2020, 61,8% das atividades de trabalho freelancer online do mundo tiveram como empregadoras empresas dos Estados Unidos. De acordo com o mesmo índice, os países em que mais são desenvolvidas essas tarefas concentram-se na Ásia, especialmente Índia, Paquistão e Bangladesh. Podemos também destacar a centralidade de venezuelanos trabalhando como treinadores de dados para carros autônomos – que, aliás, tendem a atropelar mais pessoas negras do que brancas – e de filipinos como moderadores de conteúdo terceirizados de plataformas de mídias sociais, como mostra o filme The Cleaners.

Contudo, a despeito de toda a generalização da plataformização do trabalho, ela não nos levará a uma total automação do trabalho. Os discursos midiáticos dominantes dão a entender que os robôs vão nos substituir ou que a automação nos levará a perder um alto número de empregos. Porém, como ressalta a economista da OIT Janine Berg, pouca atenção tem sido dada à crescente perda de “qualidade no trabalho” ao redor no mundo. Em direção semelhante, Aaron Benanav, em seu recente livro Automation and the Future of Work, argumenta que, em vez de desemprego em massa, o que haverá é a crescente intensificação de subempregos. Para ele, não é a automação, mas as consequências da progressiva desaceleração econômica desde os anos 1970 que explicam o declínio da demanda por trabalho, em um processo em que as transformações tecnológicas atuariam como uma causa secundária. O cenário desenhado, então, é que a radicalização da plataformização é a crescente taskificação das atividades do trabalho e com um papel central do trabalho humano nos processos envolvendo inteligência artificial, no que Hamid Ekbia e Bonnie Nardi chamam de heteromação.

Os principais expoentes desse cenário são as plataformas de inteligência artificial – que também são chamadas de “microtrabalho”, porém discordamos da expressão por considerarmos que não leva em conta nem a mobilização total dos trabalhadores em torno dessas tasks nem o papel do trabalho humano na complexidade da anatomia de um sistema de IA. E há brasileiros envolvidos em algumas dezenas de plataformas como essas, que também apresentam suas especificidades. Em primeiro lugar, há plataformas em que trabalhadores produzem e treinam dados para sistemas de inteligência artificial, como Amazon Mechanical Turk (“inteligência artificial artificial”), Appen (“dados com um toque humano”) e Lionbridge. Há desde avaliação de publicidade e treinamento de algoritmos de reconhecimento facial até transcrição de áudio de assistentes virtuais. Em segundo, há plataformas de moderação de conteúdo, cujos trabalhadores, via de regra, são terceirizados de Facebook e Google, como Cognizant e Pactera – e o próprio Facebook foi obrigado recentemente a pagar uma indenização de 52 milhões de dólares a trabalhadores que desenvolveram estresse pós-traumático. Por último, há plataformas de fazendas de cliques – a maioria brasileiras – em que os trabalhadores são como “bots humanos” e passam o dia curtindo, comentando e compartilhando posts no Instagram em troca de pouquíssimos centavos por tarefa. Os solicitantes dessas tarefas vão desde influenciadores até duplas sertanejas e candidatos a prefeitos. Há também intensas vendas e trocas de perfis fakes e de bots para que os trabalhadores consigam aumentar os seus ganhos.

Cada um desses tipos de plataformas também apresenta suas especificidades de formação e trajetória de trabalhadores, no sentido de frações de classes. Em algumas, como Lionbridge, há tarefas até em alemão em que os trabalhadores têm que provar ser proficientes. Detalhes poderão ser encontrados em capítulo escrito por mim e Willian Fernandes Araújo e que será publicado em 2021 no livro AI for Everyone? Critical Perspectives, da University of Westminster Press. Em outras, como as plataformas de fazendas de cliques, há a impressão de uma grande “25 de março plataformizada”, e estamos investigando – considerando em primeiro plano as relações de gênero – em uma equipe de pesquisa no âmbito de um grant concedido pelo projeto Histories of AI, da University of Cambridge. O que essa “deepweb do trabalho em plataformas” evidencia é a capacidade laboratorial do capital em relação aos trabalhadores. O próximo passo já ensaiado é o crescente uso de drones para entregas, e a ANAC já autorizou algumas operações no Brasil. Porém, eles não substituirão os trabalhadores, pois são necessários supervisores de drones em mais um processo de heteromação do trabalho.

Neste laboratório do trabalho em plataformas, os trabalhadores não são amorfos ou entes passivos, mas organizam-se a partir de táticas e estratégias, por exemplo, em relação aos algoritmos, como mostram pesquisas de Sun e Jarrahi e Sutherland. Isso também passa pela emergência de formas de organização em contextos de plataformas, desde coletividades informais até mobilizações e construções de associações e sindicatos, com um papel central da comunicação entre trabalhadores por plataformas digitais, como mostraram o Breque dos Apps e outros exemplos em vários setores, que envolvem inclusive youtubers e influenciadores. Há distintas formas de auto-organização por parte dos trabalhadores – como mostra, inclusive, a experiência de escrita de trabalhadores na última edição da revista Notes from Below, assim como há complexidades e contradições em torno da composição política de classe.

As possibilidades de experimentações dos trabalhadores também concentram-se na construção de plataformas que sejam de suas propriedades, seja em cooperativas de plataforma ou outros arranjos de trabalho e desenhos institucionais. Como demonstra Ursula Huws, em seu novo livro e em entrevista ao DigiLabour, é preciso combater a generalização da plataformização do trabalho com a sua ressignificação em prol dos trabalhadores e do bem público. Isso significa uma reinvenção de circuitos econômicos locais de produção e consumo por meio de plataformas que melhorem condições de trabalho e, ao mesmo tempo, promovam políticas de mobilidade, melhorias de transporte público, serviços de cuidados e com integração ao sistema de saúde.

Tomamos as plataformas de propriedade de trabalhadores como possibilidades prefigurativas – o que significa construir hoje experimentos das sociedades que imaginamos amanhã. Realisticamente, elas não substituirão a curto prazo as grandes plataformas de trabalho, pois há a forte pressão da concorrência – envolvida em capital de risco e possibilidades de lobby – e riscos de autoexploração, entre outras contradições, como apontam Callum Cant e Marisol Sandoval. Porém, como também afirma Sandoval em outro texto, é preciso enfrentar dialeticamente as contradições históricas em torno das cooperativas – entre constrangimentos e cooptações, por um lado, e possibilidades de reconfigurações em relação à emancipação dos trabalhadores.

Esses experimentos não têm fórmula pronta e nem se fazem da noite para o dia, como um aplicativo solucionador de todos os problemas. De fato, não há lugar para solucionismo tecnológico. Mas há construções interessantes de cooperativas de serviços de nuvem, plataformas de streaming audiovisual e distribuição de games, entre muitos outros exemplos. Há também uma cooperativa de motoristas que tem como foco a democratização de dados. Na Driver’s Seat, os trabalhadores usam o aplicativo da cooperativa para compartilhar seus dados. Então, eles coletam e vendem informações sobre mobilidade para órgãos municipais para que eles possam tomar as melhores decisões de planejamento em relação a transporte. Quando a cooperativa lucra com a venda de dados, os motoristas recebem os dividendos e compartilham a riqueza. Isso ajuda a pensar como as lutas por outras plataformizações do trabalho também envolvem os direitos dos trabalhadores sobre os seus dados, conforme argumenta Christina Colclough em texto do IT for Change.

Há também a emergência de uma série de coletivos e cooperativas de entregadores – na Europa, com apoio forte da federação CoopCycle, que criou um software CoopLeft. No Brasil, há cooperativas e coletivos mais antigos, como Pedal Express, e outros mais recentes como Señoritas Courier, TransEntrega e Levô Courier, circulando, a depender da iniciativa, sentidos de mobilidade, responsabilidade ambiental e social e lutas em torno da igualdade de gênero. Esses exemplos demonstram as possibilidades de construção, de baixo para cima, de iniciativas locais que desenhem outros circuitos de produção e consumo – e que há potenciais de desenvolvimento sem que haja instruções prescritivas ou normativas, em verdadeiros experimentos. Coletivos e cooperativas de entregadores, por exemplo, podem estar em intercooperação com cooperativas de programadores e agricultores, além de pequenos restaurantes, projetando valores de trabalho decente, design justice, desenvolvimento sustentável e alimentação saudável.

O cooperativismo de plataforma e as plataformas de propriedade dos trabalhadores também desafiam a ideia de que a economia de plataformas necessita de escala. No caso de trabalhadores, nem as famigeradas startups possuem muitos trabalhadores como regras. Um levantamento da Associação Brasileira de Startups mostra que 63% das startups brasileiras possuem até cinco pessoas. Da mesma forma, não podem esperar de cooperativas e coletivos de entregadores ou motoristas com 30 mil pessoas envolvidas. E não há argumentos para deslegitimar iniciativas autogestionárias com três ou cinco trabalhadores apenas por causa de seu tamanho. Uma das fortalezas das plataformas de propriedade de trabalhadores é justamente as suas capacidades de articulação e cooperação entre iniciativas.

Portanto, longe de uma solução fácil de construção de um aplicativo, as experiências de construção de plataformas cooperativas e de propriedade de trabalhadores envolve múltiplas dimensões, que estamos investigando em pesquisa em andamento, como, por exemplo, design e materialidades das plataformas, organização do trabalho e processos produtivos, organização dos trabalhadores, políticas e regimes de dados e algoritmos, intercooperação, estratégias midiáticas e consumo das plataformas – e suas relações com valores acima mencionados desde trabalho decente até design justice.

Entre as tentativas de radicalização da plataformização por parte do capital – com a taskificação e o trabalho que sustenta a inteligência artificial – e as potencialidades de enfrentamento a esse cenário e de organização de plataformas alternativas, residem os laboratórios do trabalho em plataformas em um mundo em que o velho já morreu e o novo ainda não nasceu, mas sempre vem.

 

*Rafael Grohmann é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e coordenador do Laboratório de Pesquisa DigiLabour, que mantém uma newsletter. Coordenador no Brasil do projeto Fairwork, vinculado à Universidade de Oxford, e pesquisador do projeto Histories of AI: Genealogy of Power (Universidade de Cambridge) a partir de um International Research and Collaboration Award.

 

Série Lavits_Covid19

A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.

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