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Por que fazer uma sociologia da internet? Sobre o caso Cambridge Analytica e Facebook – Lavits

Por que fazer uma sociologia da internet? Sobre o caso Cambridge Analytica e Facebook

Por Bruno Cardoso*

Em março de 2018, foram revelados importantes detalhes de um escândalo político-digital com proporções semelhantes às revelações de Edward Snowden, publicadas em junho de 2013. Para se ter ideia do que está envolvido no intrincado caso que liga uma das mais prestigiosas universidades do mundo, uma empresa de consultoria política digital e a principal rede social contemporânea, dentre muitos outros atores, basta lembrar que essa composição bastante heterogênea vem sendo considerada como decisiva para importantes acontecimentos políticos no mundo, dentre os quais um dos mais impactantes e surpreendentes é a eleição de Donald Trump como presidente dos EUA. Mas como isso aconteceu? Vamos tentar uma versão estrategicamente reduzida, para fins didáticos, dessa longa história dos acontecimentos.

 

Cientistas (d)e dados

Em abril de 2013, dois professores de psicologia da Universidade de Cambridge (Psychometrics Center) e um pesquisador da Microsoft publicam um artigo afirmando, a partir de pesquisa realizada com “curtidas do Facebook”, que traços de personalidade e atributos pessoais são predizíveis a partir dos registros digitais deixados em redes sociais. Ou seja: seria possível adivinhar muito sobre quem somos e como nos comportamos a partir do mais básico dos rastros que deixamos na mais utilizada das redes sociais. Algo que todos que já passearam pelo perfil de um (des)conhecido já tinham percebido de alguma ou outra forma, mas que dessa vez estava sendo pensado e transformado em modelo por pesquisadores de uma das principais universidades do mundo.

Embora os pesquisadores envolvidos não tenham se mostrado interessados ou favoráveis a usarem seu método em marketing político, um outro membro do mesmo centro de pesquisa, e professor na mesma universidade, pensou de modo bastante diferente. Aleksandr Kogan, psicólogo e cientista de dados, partiu então do artigo publicado pelos colegas e desenvolveu softwares e algoritmos que permitissem a extração e a análise de dados, o estabelecimento de padrões comportamentais e de personalidade a partir desses rastros digitais e a classificação de um número elevado de usuários dentro desses padrões definidos. Um trabalho que misturou psicologia (psicometria) e mineração de dados (data mining). Um outro detalhe interessante, é que Kogan, que nasceu na Moldávia, como cidadão soviético, também assumiu um cargo de professor na Universidade de São Petersburgo e recebeu financiamento de uma agência de fomento estatal russa para desenvolver essa mesma pesquisa. Talvez isso ajude a explicar alguns pontos do xadrez geopolítico atual…

Juntamente com um sócio, Kogan monta uma empresa chamada Global Science Research (GSR) e fecha um acordo (financeiro) com o Facebook, para usar os dados de seus usuários e para instalar um aplicativo (myPersonality) de testes de personalidade, a ser realizado em grupos selecionados de usuários da rede social. O método científico aplicado chama atenção pela sagacidade e pela falta de escrúpulos dos elaboradores. Em banners em diversos sites, como Amazon, pessoas se deparavam com ofertas para que respondessem a um questionário sobre sua personalidade em troco de um pequeno pagamento (que variava de 2 a 5 dólares por pessoa). Aqueles que concordavam, deviam se logar pelo Facebook (permitindo assim que o aplicativo tivesse acesso às informações de navegação na rede social) e preencher seu número de registro eleitoral nos EUA, para restringir a pesquisa àqueles em condições de votar. Para ganhar esses de 2 a 5 dólares, 32 mil pessoas responderam o questionário/teste de personalidade. Tendo por base os questionários e as informações desses 32 mil usuários, algoritmos passaram a comparar as respostas e a definir correlações estatísticas entre os traços de personalidade e os traços deixados no Facebook por cada um, criando padrões e classificando cada um dentro deles. Com uma amostragem bastante considerável de 32 mil pessoas, a GSR podia montar um quadro consistente de correlações e inferir muitas “personalidades”, preferências e inclinações políticas a partir dessas correlações estabelecidas.

Contudo, isso era apenas o início da estratégia posta em funcionamento. Sem que isso fosse informado claramente aos usuários, o software da pesquisa acessava também as informações dos amigos de cada um daqueles que aceitava responder, fazendo com que fossem extraídas as informações de, no total, mais de 50 milhões de perfis. Embora esses 50 milhões não tivessem preenchido os testes de personalidade, eles também foram classificados a partir das correlações criadas com base na amostragem dos 32 mil usuários iniciais. A mineração de dados em cima do Big Data extraído desses milhões de perfis construiu um valioso banco de informações, com enorme potencial de uso político. Mais importante ainda, essas informações extraídas da internet, se corretamente tratadas, se mostram de grande utilidade para aqueles que pretendem intervir no comportamento e na subjetividade individual.

 

Intervindo no mundo a partir do Big Data

Após um acordo financeiro, a GSR vende as informações que extraiu e classificou a partir do esquema montado por Kogan para a empresa de consultoria política Cambridge Analytica (CA), num acordo que, como mostraram e-mails trocados na época e vazados agora para a imprensa, gerou considerável conflito entre Kogan e seus colegas de universidade. A CA, dirigida por um empresário conservador da elite britânica (Alexander Nix), passa então a usar esses dados garimpados e tratados por Kogan para atuar no ramo do marketing político. Desde então, obteve duas vitórias bastante consideráveis e contrárias aos prognósticos iniciais nas campanhas que realizou: o Brexit (na Grã-Bretanha) e a eleição de Donald Trump, nos EUA.

O objetivo da CA é desenvolver e usar métodos digitais para influenciar pessoas a agir de determinadas maneiras. Um desses métodos é a disseminação de diversas tipos e níveis de “fake news”, discursos de ódio e boatos, não diferentes dos disparados no Brasil na campanha de difamação pos-assassinato da vereadora Marielle Franco. Por conta do banco de informações criado por Kogan e vendido à Cambridge Analytica, e com base em teorias da psicologia comportamental sobre como influenciar o comportamento das pessoas, a campanha política e de disseminação de boatos passou a uma escala quase personalizada e micro-direcionada, utilizando estratégias diferentes em relação a cada grupo e restringindo a circulação das fake news a um âmbito no qual houvesse uma possibilidade maior de que fossem bem sucedidas em circular sem serem desmentidas. Foi posto em funcionamento uma máquina de propaganda baseada em mentira e trollagem, de maneira ultra personalizada e muito bem direcionada. Como declarou Christopher Wylie, um dos ex-empregados da CA que resolveu denunciar as práticas da empresa, “nós exploramos o Facebook para colher o perfil de milhões de pessoas. E construímos modelos para explorar o que sabíamos sobre elas e mirar em seus demônios internos. Essa é a base sobre a qual a empresa foi construída”.

 

E o Facebook nisso tudo?

Em primeiro lugar, o Facebook vendeu acesso a informações pessoais de, indiretamente, 50 milhões de usuários, sem que essas pessoas tenham acordado isso, ou mesmo que estivessem cientes dessa possibilidade. Entre 2007 e 2014, uma quantidade imensa e não regulada de dados pessoais foi extraída da rede social e cedida a “parceiros comerciais” da empresa, assim como à NSA, como já havia mostrado Edward Snowden em 2013. Se não bastasse isso, quando as primeiras reportagens sobre a CA foram publicadas por jornais britânicos, em dezembro de 2015, o Facebook as negou terminantemente e ameaçou processar a repórter responsável pela investigação, Carole Cadwalladr.

Posteriormente, o Facebook admitiu as acusações, mas ainda assim tentou de todas as formas se desresponsabilizar pelo ocorrido. Uma das estratégias foi afirmar que Kogan teria acordo para usar as informações apenas acadêmica e cientificamente, logo que ele seria o responsável pela manipulação política em questão. Outra foi se desculpar pela falha em assegurar a segurança das informações pessoais de seus usuários (Zuckerberg admitiu que milhares de aplicativos tiveram acesso a enormes quantidades de dados sensíveis dos usuários) e afirmar que, desde o fim de 2014, mudanças no código da rede social diminuíram consideravelmente a possibilidade de extração de dados por terceiros de forma inadvertida. Foi prometido também que novas mudanças buscariam restringir ainda mais esse acesso. De qualquer maneira, uma das reações que se seguiram foi o movimento, encampado por várias celebridades, #DeleteFacebook, no qual as pessoas propunham abandonar a rede social com mais esse limite tendo sido ultrapassado.

Outra consequência foi a queda brutal no valor das ações do Facebook (12% de seu valor de mercado em dois dias) nos momentos que se seguiram às revelações sobre a Cambridge Analytica. Se parte dessa queda pode ser auferida à quebra de confiança entre empresa e usuários, ou à demora da empresa em admitir o ocorrido, possivelmente um outro fator pode também explicar essa desconfiança. O próprio modelo de negócios sobre o qual o Facebook se erigiu pode passar, então, a ser questionado. Como disse Jonathan Albright, do Tow Center for Digital Journalism: «Este problema faz parte do Facebook e não pode ser separado como um exemplo infeliz de abuso». «Foi uma prática padrão e incentivada. O Facebook estava literalmente correndo para construir ferramentas que abrissem os dados de seus usuários para parceiros de marketing e para novos negócios verticais. Então isso é algo inerente à cultura e ao design da empresa».

Mas para além da quebra de confiança e da violação de acordos de privacidade pelo Facebook – assuntos de grande gravidade – e da queda do valor de mercado da empresa, uma outra questão se sobrepõe como central a partir desse caso. A rede social mais utilizada, e também o terceiro site mais visitado do mundo, vem sendo duplamente utilizada – como campo de colheita e classificação de dados e como veículo de disseminação de mentiras e discursos de ódio – para fazer com que seus próprios usuários sejam induzidos a comportamentos políticos que há uma década pareceriam impossíveis de ocorrer, ou que eles próprios julgariam como irracionais. O uso de Big Data e algoritmos na política é hoje uma das principais ferramentas à disposição dos grupos em disputa e dos atores envolvidos, estejam buscando legitimidade nas urnas ou nas ruas. Por enquanto a vitória de grupos conservadores, a disseminação de mentiras e o prevalecimento de discursos de ódio parecem ser incontestes. A questão é se esse jogo já está decidido de antemão ou se é possível uma virada. De qualquer forma, parece que ele só está começando.

* Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia (IFCS/UFRJ) e coordenador do Laboratório de Estudos Digitais.

Texto originalmente publicado no site do Laboratório de Estudos Digitais (LED/UFRJ) no dia 25/03/2018.

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