Moda contra a vigilância

No dia 8 de junho de 1949, foi publicado o romance 1984 de George Orwell que retrata uma sociedade vigiada e controlada pelo Grande Irmão (o Big Brother). Em 5 de junho de 2013, o jornal inglês The Guardian relata pela primeira vez as denúncias feitas por Edward Snowden sobre o monitoramento ilegal de ligações telefônicas e de dados pessoais na internet pela Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos. Com o slogan “Inspired by Orwell, Built for Snowden” (inspirada por Orwell, feita para Snowden), uma empresa especializada em transformar literatura em moda uniu o livro às denúncias para criar uma coleção de roupas que prometem proteger da vigilância quem as usa. A coleção se chama “1984 Stealth Fashion for the Under-Surveillance Society” e todas as suas peças possuem um bolso removível que bloqueia sinais de celular, wi-fi, GPS e radiofrequência para guardar o aparelho telefônico e outros dispositivos e documentos que permitam o rastreamento, tornando a pessoa “invisível”.

O projeto recebeu financiamento através do site Kickstater e em seu vídeo de apresentação o criador Zoltan Csaki conclama as pessoas a “mostrarem seu dedo do meio” ao Grande Irmão. A coleção fez sucesso e ultrapassou sua meta de financiamento, que era de 25 mil libras e alcançou 47 mil (mais de 183 mil reais).

Outros projetos semelhantes também pretendem proteger as pessoas dos sistemas de vigilância através da moda. O artista americano Adam Harvey desenhou agasalhos com capuz e burcas que limitam o reconhecimento feito por drones equipados com câmeras de visão infravermelha, capazes de captar o calor humano. Segundo o artista, a burca foi escolhida porque para a religião islâmica ela promove a separação entre o homem e Deus e a burca anti-drone promoveria a separação entre o homem e o drone.

  http://web.labjor.unicamp.br/comciencia/img/moda1.jpg Uma das burcas da coleção com demonstração da camuflagem térmica

Quando era estudante do Interactive Communication Program da Universidade de Nova Iorque, Harvey também criou uma técnica de maquiagem para confundir algoritmos de reconhecimento facial, usados pelo FBI e Facebook, por exemplo. A técnica se chama CV Dazzle, referindo-se à computer vision (visão do computador) e à camuflagem dazzle, que consiste em padrões complexos de formas geométricas em cores contrastantes. Esse padrão de camuflagem foi utilizado em navios durante a Primeira Guerra Mundial e dificultavam a definição do seu tamanho, velocidade e direção. De maneira semelhante, a maquiagem dazzle dificulta o reconhecimento de padrões através do desenho de formas coloridas e cortes de cabelo que escondem pontos chave do rosto.

http://web.labjor.unicamp.br/comciencia/img/moda2.jpg

Imagem do site cvdazzle.com

Curiosamente, a camuflagem dazzle utilizada na primeira guerra teve inspiração no cubismo de Pablo Picasso, da mesma forma que a camuflagem da segunda guerra inspirou-se no Surrealismo de Salvador Dalí, como é analisado no artigo de Jorge Dueñas Villamiel “Del camuflage en el arte contemporáneo a la privacidad en el Net-Art”, publicado na revista Teknokultura. Villamiel também aponta as contradições presentes nas obras de artistas digitais que exploram o tema da vigilância: para denunciar a perda da privacidade, o artista acaba expondo a si mesmo ou aos outros, como na obra Life Sharing, onde um casal deixou o acesso livre a todo o conteúdo de seu computador através de um site durante três anos. Ou da instalação Screening Reality, que transmitia imagens de mais de 800 câmeras de vigilância encontradas na internet e que não possuíam senhas para acesso.

Robinson Meyer, editor da revista The Atlantic, também experimentou a perda de privacidade, ou ao menos de seu anonimato, quando resolver testar a maquiagemdazzle em seu dia a dia. Eu seu artigo sobre a experiência, escreve que a maquiagem fez com que todos olhassem para ele: “você é tudo, menos invisível”. Constatou que aquilo que o fazia invisível aos computadores o tornava extremamente visível para outros humanos.

Mais do que chamar a atenção, sua aparência estranha poderia “excluí-lo” da sociedade. Esse pensamento lhe ocorreu em um dia em que andava pela rua usando a maquiagem, sentiu náusea, apoiou-se em um poste durante um tempo. Ninguém parou para socorrê-lo. Um efeito que também poderá ocorrer com quem possa vir a usar a burca de Harvey, ainda mais com todos os estigmas que essa roupa já carrega. Mais discreto é o bolso para celular. No entanto, para não ser rastreado, quem o usa acaba ficando inacessível também para as pessoas com quem gostaria de manter contato, como familiares e amigos.

Por Ana Paula Zaguetto

Publicada originalmente na revista eletrônica Com Ciência (22/10/2014)

Compartilhe