Práticas de Investigação: Como ver?

Texto originalmente publicado no site do Pimentalab

 

Depois de compartilharmos algumas reflexões sobre as formas do Comum urbano – suas expropriações e possibilidades emergentes – nos dividimos em 4 subgrupos (infraestruturas; corpo-cuidado; especulação imobiliária; securitização) para que pudéssemos criar uma conversa-escuta mais atenta de trabalho. Na semana anterior ao dia da pesquisa no território, as pessoas puderam trocar impressões sobre o tema (virtualmente ou presencialmente), pensar em formas de interrogá-lo na rua, assim como estratégias e dispositivos de pesquisa.

Nessa primeira etapa preparatória, a ideia era exercitarmos a capacidade de produzir perguntas, hesitações, mais do que encontrar “soluções” ou apresentar “denúncias”. Pensamos sobre o que seriam “perguntas-vinculantes” que pudessem não apenas abrir uma problemática, mas também nos implicar nela. Para facilitar essas trocas, os grupos utilizaram como ferramenta um PAD, uma plataforma livre para escritas compartilhadas.

No PAD, experimentamos uma outra temporalidade da comunicação virtual: mais lenta, mais reflexiva, menos adoecedora. Nos encontramos todes no dia 19/10, na Funarte, para que pudéssemos sair juntos, cada qual em seu subgrupo, em uma primeira ação de pesquisa. Alguns grupos optaram por fazer uma deriva no território, observando certos aspectos que lhes interessavam: tecnologias de vigilância, arquiteturas securitárias, enclaves urbanos e formas de territorialização; outros grupos optaram por permanecer em algum ponto, observar, criar uma ambiência de conversa/escuta (interessante como as duas naturezas de dispositivos que foram pensados para a investigação são também dois modos de ser/estar no espaço urbano: movimento e permanência).

Algumas reflexões emergiram ainda no processo de desenhar a pesquisa. Uma delas tem a ver com a relação sujeito-objeto que se desdobra no par especialista-amadores. Um dos esforços do Laboratório do Comum é justamente pensar nas relações de poder intrínsecas a uma certa forma colonial de produzir conhecimento e uma das respostas possíveis é criar dispositivos de pesquisa que sejam, ao menos, conscientes dessas relações de poder, buscando formas mais abertas e que se assentem em uma experiência compartilhada de produção de conhecimento.

As formas experimentais de produzir conhecimento no terreno imanente da vida sempre existiram e precisam ser retomadas em suas proposições epistemológicas e ontológicas. Se pensarmos, por exemplo, nas práticas de terreiro e o conhecimento produzido sobre plantas, alimentos, corpos, cuidados, múltiplas conexões entre mundos; na produção de conhecimento indígena sobre a terra, plantas, animais, a outreidade, a guerra e a festa; Na produção de conhecimento experimental de cozinhas coletivas, ocupações, formas de viver em regimes não proprietários; São modos de conhecimento que produzem igualdade na diferença; ao invés de sujeitos e objetos, nesses espaços temos mundos ontoepistemológicos de muitos sujeitos (pessoas, animais, plantas, muitos mundos, sabores, sensações, infortúnios, curas), muitas práticas de conversa, de composições, de variações.

É importante, no entanto, saber reconhecer as muitas armadilhas-epistemológicas coloniais: pensar para as pessoas e não com elas; convencer as pessoas e não nos associarmos em práticas do comum; pretender “salvar” as pessoas de suas condições “pouco conscientes”; transmitir conhecimento/informação ao invés de possibilitar um campo de afecções mútuas; planejar ao invés de permanecermos nas linhas frágeis, instáveis de nos perguntarmos mais um pouco, mudar de ideia.

Assumir a localização e parcialidade da pesquisa nos exige pensar de forma mais implicada os problemas de pesquisa que estamos convocando, como praticantes e não especialistas. Uma produção de conhecimento implicada nos obriga a nos situar, considerar que temos um corpo, um conjunto de inseguranças, marcas. O Comum parte do reconhecimento de que “Existimos pelas coisas que nos sustentam, assim como sustentamos as coisas que existem através de nós, numa edificação ou numa instauração mútua” (Lapoujade, 2017).

Antes de irmos à rua experimentar o dispositivo de conversa-escuta, uma questão fundamental emergiu: quais são os corpos que se sentem confortáveis em estar no espaço público com disponibilidade? Como lidar com um dispositivo de pesquisa que nos exige tamanha exposição? Começar uma conversa com um completo desconhecido na rua nos exige um certo preparo, disponibilidade emocional, habilidades afetivas. Foi importante abrirmos espaços para esse desconforto e intuirmos outras formas de estar nesse dispositivo como: fazer conversas coletivas e não entre apenas duas pessoas, por exemplo, ou apenas observar o conjunto das interações.

Outro conjunto de questões importantes veio de indagações sobre “o que ver?”; “o que estamos procurando”?  “Como ver”? A prática de pesquisa nos exige tempo, mas os muitos regimes de produtividade e rendimento não nos deixam confortáveis com esses espaços em aberto – afinal, o que “conta” como conhecimento? Se levarmos a sério a proposição de Donna Haraway e de muitas outras práticas filosóficas não coloniais, a produção de conhecimento mais se parece com uma conversa do que com a ficção da “descoberta” ou da originalidade. Mas também envolve um sentido forte da experiência.

Ao sairmos da Funarte com certa intenção, sentimos que algo mudou no nosso regime de atenção em relação ao espaço urbano. Algumas pessoas se deram conta da escassez de espaços propícios para a permanência desinteressada; outras conseguiram ver algumas coisas que nunca haviam visto. Alguns comentários, nesse sentido, que apontam para  impressões sobre dificuldades: “Ter a atenção das pessoas; Fazê-las dizer. Ou seja, questões básicas que se tornaram/ tornam-se impossíveis na Urbe: Atenção, olhar, dizer, ouvir e parar”; “Dificuldade de escala entre problemas estruturais X escala de ação humana”; “A estrutura está em tudo, mas como chegar/eleger o específico/ponto/vivido/chão?

Essa primeira ação de pesquisa fez surgir uma série de outros novos problemas: como uma conversa na rua pode se transformar em conhecimento? Como responder à demandas de atenção e cuidado em uma experiência de cidade que é tão desigual e brutalmente devastadora? Como pensar o problema de escala de questões sistêmicas do capitalismo para uma escala menor da vida na cidade? “Como não ser enfeitiçada pela sensação de totalidade e inescapabilidade”? (Haraway)

Estar na rua coletivamente, com uma intencionalidade, ouvir histórias de vidas, aflições nos parece uma experimentação inicial de abertura de poros. Evidentemente, muitos dos problemas que ouvíamos (falo do grupo corpo-cuidado) eram atravessados pela desigualdade avassaladora e intensificação do empobrecimento que conformam a cidade e que acabam anestesiando nossa forma de lidar com essas feridas. Mas, por outro lado, muitas pessoas com quem conversamos narraram lugares afetivos e existenciais que nos mostram a dignidade da vida (e seu esforço de perseverar) diante de muitas adversidades: ouvimos sobre sentir saudade, sobre se apaixonar e sobre a dúvida de não ser correspondida, sobre um certo envenenamento das relações de confiança, sobre solidão; sobre o medo de fracassar diante das expectativas da boa maternidade, da boa paternidade; sobre como fazer um macarrão em companhia “com gosto e sabor” embaixo do Minhocão é mais digno e alegre do que “comer a comida sem gosto” dos abrigos.

Em uma passagem bonita e conhecida sobre a cidade de Nápoles, Benjamin escreve sobre sua experiência na cidade, uma descrição que poderia ser de um laboratório do comum:  “Em todos os lugares se preservam espaços capazes de se tornar cenário de novas e inéditas constelações de eventos. Evita-se cunhar o definitivo. […]. Em tais recantos mal se percebe o que ainda está sob construção e o que já entrou em decadência. Pois nada está pronto, nada está concluído. A porosidade se encontra […], sobretudo, com a paixão pela improvisação. […]. A porosidade é a lei inesgotável dessa vida, a ser redescoberta” (Benjamin,1997).

Por fim, ainda sobre a visão, sobre como ver o espaço urbano, as pessoas e o que nos cerca, nos parece interessante uma reflexão feita por Marina Gárcez. Gárcez retoma os conflitos entre “os olhos da carne” e os “olhos da mente” nos textos de Platão e Descartes. O problema compartilhado pelos dois filósofos seria precisamente em como combater ou superar a “instabilidade”, as “deficiências e distrações dos nossos olhos inundados de realidades sensíveis” se livrando então dos “olhos da carne” (2013:108).
Gárcez, assim como Donna Haraway também o faz, insiste no fato de que não podemos abandonar por completo a visão. A filósofa sugere então o conceito de “visão periférica” do arquiteto finlandês J. Pallasmaa (2006). Em seu livro de nome sugestivo, “os olhos da pele”, Pallasmaa comenta que “a visão focada nos faz enfrentar o mundo enquanto que a visão periférica nos envolve na carne do mundo”. (Pallasmaa, 2006: 10 apud Gárcez, 2013:112).  A visão periférica é aquela responsável por nos fazer enxergar o movimento, mais do que objetos em seus limites. “A visão periférica não é uma visão “do conjunto”, de um “todo”. Não é a visão panorâmica. Não sintetiza, nem sobrevoa. Bem ao contrário: é a capacidade que tem o olho sensível para inscrever o que vê em um campo de visão que excede o objetivo focalizado (…) E o faz em movimento, em um mundo que não está nunca diante de si, se não que o rodeia. A visão periférica é a de um olho involucradoinvolucrado no corpo de quem olha e involucrado no mundo em que se move”.  (Gárcez, 2013: 112)

É possível  ampliarmos as possibilidades da visão periférica, mais como um modo de vermos juntos e de nos tornarmoso presas menos capturáveis (pelas exigências da produtividade, do rendimento)? Como manter a visão periférica como “perspectiva” involucrada da pele em nosso caminho de investigação? A “visão periférica” nos forneceria não um lugar “privilegiado” para ver a realidade, não um lugar “essencializado”, mas um modo de sermos atravessados, uma certo regime atenção e de afecção? Como permanecermos um pouco mais com as perguntas para que possamos traçar linhas de pesquisa, ainda que no próximo momento, mais delimitadas? Como fazer um laboratório de arquitetura porosa e recursiva, mas que ao mesmo tempo possa recuperar os olhos da carne?

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