#12: o dispositivo monitoramento como tecnologia política e seus usos na pandemia de Covid-19

Por Acácio Augusto*

 

“Se é certo que o desenvolvimento de tecnologias eficazes nos permite viajar de um lugar para o outro, que as comodidades tornaram fácil a nossa movimentação pelo planeta, também é certo que essas facilidades são acompanhadas por uma perda de sentido dos nossos deslocamentos.”

Ailton Krenak em Ideias para adiar o fim do mundo, 2019

 

Diversos estudos e pesquisas contemporâneas colocam questões e problemas relativos ao uso de novas tecnologias. Neles, há variadas maneiras de caracterizar e nomear como vivemos na sociedade contemporânea: sociedades de controle, Império, capitalismo de vigilância, capitalismo algorítmico, cognitivo e/ou de dados, sociedade de hiperconectividade, sociedade líquida, sociedade em rede etc. Apesar da diversidade de perspectivas de análise e de referenciais teóricos, o comum nessas diversas caracterizações é o foco nas tecnologias computo-informacionais como elemento decisivo de transformação, metamorfoses e, para alguns, até de determinação de nossa sociabilidade hoje (nota 1).

De fato, as tecnologias computo-informacionais ocupam e modulam todas as dimensões da existência de um vivente no século XXI. É muito difícil reconhecer e até imaginar algo que escape à mediação dos fluxos nas telas de aparelhos eletrônicos: mundo do trabalho, políticas de segurança, fluxo financeiro, redes sociais e de amizades, novos e antigos relacionamentos amorosos, produção e consumo de música e artes visuais, educação, comunicação, informação, entretenimento e mais um monte de etcs. que acontecem no ou por meio do chamado “mundo digital”, que em nada se opõe a que seria o “mundo real”, questão já superada. Inevitavelmente amplas dimensões da vida estão no arco de governo dos algoritmos. No entanto, não custa lembrar o truísmo de que não há tecnologia neutra e que, no caso da internet, sua história mostra que não se trata de disputá-la e/ou politizá-la. Desde suas procedências, derivadas da Segunda Guerra Mundial e seu tratado de paz com a Carta de São Francisco (1945), a internet se mostra afeita aos controles que transitam entre o militar e o civil, sempre atualizável por variações de zonas de segurança mediadas por protocolos – uma forma de diplomacia digital não necessariamente mediada por Estados-nação. Em suma: a análise crítica das tecnologias computo-informacionais implica, antes, uma análise histórico-genealógica das práticas e formas de governo das condutas como tecnologias políticas.

Este texto objetiva apresentar o dispositivo monitoramento (nota 2) como uma tecnologia política e seus efeitos em meio à pandemia de Covid-19. Ainda que as práticas de monitoramento estejam conectadas às tecnologias computo-informacionais, à internet e uma série de aparelhos inicialmente usados pelas Forças Armadas e posteriormente civilizados – como drones, GPS, mapas de calor para controle de corpos em movimento e banco de dados –, elas operam e acionam uma política bastante heterogênea e não exclusiva dos controles eletrônicos ou de ações militares. Trata-se de uma orientação de governo de condutas, pessoais e institucionais, que realiza o objetivo de controlar a céu aberto, regular em movimento, em fluxos, e modular formas de penalizações a céu aberto.

Por essas razões caracterizo o monitoramento a partir da noção de dispositivo elaborada por Michel Foucault. Segundo o filósofo francês, dispositivo é um termo que tenta “demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. (…) Entre esses elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes. (…) Entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante” (nota 3).

É cumprindo uma função estratégica de responder a uma urgência, portanto, referente aos novos controles a céu aberto, que o dispositivo monitoramento e seus desdobramentos como formas da democracia securitária e das condutas do cidadão-polícia será então localizado e apresentado. Diante do acontecimento pandêmico, sem dúvida uma urgência, observa-se uma intensificação oportuna para os controles do dispositivo monitoramento.

 

O dispositivo monitoramento na pandemia

 

As tecnologias políticas e computo-informacionais contemporâneas guardam suas procedências no final da Segunda Guerra Mundial, quando aparecem os primeiros investimentos em pesquisas e desenvolvimento tecnológico que, nos 30 anos seguintes, irão transformar decididamente as formas de nascer, produzir, amar e morrer. É também na metade do século XX que os investimentos militares voltados para a guerra e a defesa nacional começam a se deslocar em direção à busca por segurança e a produção de uma segurança internacional, com a emergência dos Estudos Estratégicos como campo de investigação e de saber não restrito aos militares (nota 4). Nesse momento da história do planeta, dois acontecimentos se tornam decisivos para as transformações seguintes e que chegam até nós: a capacidade técnica real de destruição de todo o planeta, com o desenvolvimento das bombas atômicas com ogivas nucleares, e as viagens espaciais e o lançamento de satélites que permitem, a partir de então, observar toda vida do planeta de “fora”, de cima.

Em um breve texto de 1990, o filósofo Gilles Deleuze delineia um quadro de análise bastante preciso, e ao mesmo tempo amplo, dessas transformações e mutações das tecnologias políticas e de governo das condutas. Partindo da caracterização das tecnologias políticas modernas de poder feita for Michel Foucault acerca das sociedades disciplinares, Deleuze traça um histórico, uma lógica e um programa do que seriam as tecnologias contemporâneas de poder e de governo das condutas, as quais nomeia de “sociedades de controle”, em referência a uma obra de William Burroughs. Primeiramente, descreve uma história que nos informa que sociedade disciplinar é o que estamos deixamos de ser em meio a uma “crise generalizada de todos os meios de confinamento [característicos da sociedade disciplinar], prisão, hospital, fábrica, escola, família” (nota 5). Essas novas forças, que vão se instalando em meio à crise, não operam por moldes, mas por modulações; são digitais e, portanto, numéricas, algorítmicas. Suas máquinas correspondentes são as da informática, “cujo o perigo passivo é a interferência, e o ativo, a pirataria e a introdução de vírus”. No entanto, a mutação nas tecnologias políticas não são causadas por essas novas máquinas, pois “não é uma evolução tecnológica sem ser, mais profundamente, uma mutação do capitalismo” (nota 6). E decorre disso todos os efeitos políticos e sociais como resposta às crises dos meios de confinamento: predominância dos serviços sobre a produção que faz da dispersiva forma-empresa a resposta ao confinamento e concentração fabril; a propaganda torna-se instrumento de controle social; o controle se dá de forma rápida, descontinua e infinita; a formação continuada atravessa o confinamento escolar; a família é modulada em suas formas e arranjos como resposta às novas relações amorosas – importa apenas que a família se constitua como centro de investimento em capital humano; a riqueza não se mede mais pela capacidade de acumular e/ou poupar, mas pelo poder de crédito, capacidade de prometer, projetar um futuro que é o mesmo que o presente, só que pretensamente mais rico; por fim, a produção subjetiva do vivente que passa de um espaço de confinamento a outro se metamorfoseia em um sujeito controlado em trânsito, em meio aberto, que acumula dívidas – importância, nas sociedades de controle, do homem endividado. Alguém poderia argumentar que as coisas mudaram muito nos trinta anos seguintes ao texto de Deleuze, mas o que vimos foi muito mais a intensificação dessa lógica e ampliação dessa programática do que propriamente uma transformação, seja no que diz respeito às máquinas algorítmicas, seja em relação às tecnologias políticas e de governo das condutas dos viventes em todo planeta.

É neste plano estratégico das tecnologias políticas contemporâneas de governo das condutas que o dispositivo monitoramento está localizado. E se, como aponta Foucault, um dispositivo é o que responde a uma urgência, vemos no texto Deleuze a qual urgência o dispositivo monitoramento responde contemporaneamente. Ao final da breve exposição sobre a lógica das sociedades de controle, e antes de descrever seu programa, o filósofo coloca um problema que, antes de ser da ordem das tecnologias computo-informacionais, é um problema político e social do capitalismo, pois ele “manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas” (nota 7). O dispositivo monitoramento emerge como resposta a esse enfrentamento que se colocou diante do controle.

Isso vale para a condição dos Estados-nação com a “dissipação das fronteiras” e os correspondentes novos protocolos diplomáticos para fluxo de pessoas; as formas contemporânea da guerra com os chamados “conflitos de baixa intensidade”, os “ataques cirúrgicos”, as “guerras de quarta geração” e os “estados de violência”; os controles via satélite e seus aparelhos vários, como GPSs, para a produção de mapas georrefenciados, mapas de calor e programas de espionagem eletrônica; além de toda a discursividade em torno do que se  nomeia, no âmbito das Relações Internacionais, de “novas ameaças”, que vão do combate ao chamado narcotráfico ao combate do terrorismo transterritorial. A resposta do dispositivo monitoramento também atinge “a explosão de guetos e favelas” e os programas de “negócios sociais”. Esse dispositivo atravessa esses espaços junto às inúmeras ferramentas produtoras de “mapas de vulnerabilidades”; programas de polícias comunitárias e de pacificação; programas culturais de empoderamento, de empreendedorismo social e de si e de controle de consumo de drogas; enfim, uma série de iniciativas que visam manter as pessoas em seus locais e/ou regular seus fluxos de deslocamentos. Uma forma de manter contingentes humanos em locais definidos, mas móveis e, ao mesmo tempo, controlar seus fluxos, sejam eles puramente informacionais, sejam deslocamentos com virtual rastreamento e, se necessário, interceptação.

O que se vê com a imposição surpreendente da pandemia em 2020 é que já havia capacidade tecnopolítica suficiente para esses controle em fluxo, via a rede de elementos que foram o dispositivo monitoramento. Para além disso, como mostra Naomi Klein em texto de maio de 2020 (nota 8), a pandemia foi rapidamente percebida como uma janela de oportunidade por gente como Eric Schmidt, diretor executivo da Google, conselheiro no DefenseInnovationBord, do Departamento de Defesa dos EUA (nota 9) e presidente da NSCAI(Comissão de Segurança Nacional para Inteligência Artificial), que assessora o congresso no mesmo país. Vê-se que as chamadas corporações do Vale do Silício não esquecem as procedências político-militares de seus negócios. Ao lado de Andrew Cuomo, governador de Nova Iorque, Schmidte e outros CEOs de empresas como Oracle, Amazon, Microsoft e Facebook, viram na pandemia a oportunidade de emplacar três pontos que já estavam na cartela de prioridades dos negócios e lobbys governamentais: 1) o reconhecimento da importância geoestratégica das empresas de tecnologia computo-informacionais; 2) a intensificação dessas tecnologias em serviços educacionais; 3) a ampliação do uso dessas tecnologias nos controles urbanos.

Por essas características que o dispositivo monitoramento pode ser descrito como forma de governo das ruas na cidade contemporânea, agora com novas potencialidades abertas pela pandemia. Se nas relações estratégicas de poder e governo das condutas da sociedade disciplinar a cidade era a cidade carcerária, na qual os perigosos eram vigiados de perto, na sociedade de controle ou de seguranças de governo das condutas, estamos entre a cidade carcerária e a cidade monitorada. Inversão do panóptico acontecendo, se colocando como nova tecnologia política. Todos ou quase todos os cidadãos e quase-cidadãos são suspeitos, rastreáveis pelos cálculos algorítmicos. Todos são virtuais terroristas, sediciosos, focos de perigo e, agora, de contaminação viral. Mas, também, todos devem participar dos monitoramentos e serem monitorados: do smartphone no bolso ao satélite no espaço que orienta os GPSs de carros, do colega ao vizinho, ao morador de rua, o virtual infrator, os escolares, os que não respeitam o distanciamento social…(nota 1o)

Muitos deles possuem um equipamento eletrônico ou estão capturados em tecnologias de poder que monitoraram as ruas e vielas. Os equipamentos eletrônicos do dispositivo monitoramento encontram-se, hoje, devidamente profanados, e sua utilização estendida ao uso comum dos homens, mulheres, jovens, crianças e velhos. Encontra-se mais do que disponível. O dispositivo monitoramento é compartilhado e compartilhável; um comum na partilha dos controles e da segurança dentro e fora da cidade, do país, dos continentes. A emergência do ingovernável não está, portanto, na atitude que inverte seu uso eletrônico para ativar a revolta. Será que a resistência talvez esteja em sua destituição, desativação, numa atitude de desistência ou desengajamento?

O dispositivo monitoramento é uma tecnologia política e de governo das condutas que não se resume aos controles eletrônicos, câmeras de circuito interno, mapeamentos georreferenciados por celulares, mapas de calor computo-informacionais e panorâmicas de setor feitas por drones. Trata-se de uma tecnologia política que opera pela “convocação à participação” (nota 11), produzindo um pastorado horizontal de governos de todos sobre todos. As denúncias, os acionamentos de autoridades policiais e judiciárias e as regulações voluntárias das condutas vão compondo a forma subjetiva das democracias securitárias (nota 12): o cidadão-polícia.

Se o dispositivo monitoramento passa, inevitavelmente pelo governo dos algoritmos, é como tecnologia política de governo das condutas que faz funcionar a democracia securitária e responde aos desejos do cidadão-polícia. Assim, ainda que opere na imaterialidade dos controles computo-informacionais, o dispositivo monitoramento faz funcionar um programa assassino que atinge a materialidade dos corpos. O que é possível verificar, no caso do Brasil, pela distribuição desigual das condições para a prática do distanciamento social e o engajamento das forças de segurança na gestão da epidemia. Mais do que falhas ou descaso, o que se observa no Brasil é uma distribuição racional do deixar morrer e uma entrega do poder civil das instituições governamentais aos militares, inclusive o Ministério da Saúde. Essa distribuição desigual das mortes e das formas de lidar com elas está sendo mapeada pelo Boletim Extraordinário CAAF-Unifesp de enfrentamento da covid-19 (nota 13). O engajamento dos militares no governo civil e democraticamente eleito do Brasil, um dos elementos das democracias securitárias, intensificado no contexto da pandemia, está sendo registrado pelo Boletim extraordinário semanal do LASInTec sobre os efeitos securitários da atual pandemia (nota 14). Nesse sentido, não há exatamente descaso ou incompetência do governo brasileiro no trato dos efeitos da pandemia no Brasil, mas uma forma específica, racional e radical de combinação entre expansão de controles variados, intervenções violentas e distribuição de mortes orientada.

Tá dominado, tá tudo dominado?

 

Breve nota sobre a revolta contra os monitoramentos na pandemia

 

A pandemia é uma relação social, muito mais do que um mero dado biológico e/ou viral, por isso seu acontecimento se impôs como como uma encruzilhada social e política. Da mesma maneira, o dispositivo monitoramento é viabilizado pela expansão dos controles computo-informacionais, mas se operacionaliza como uma tecnologia política. O encontro desses dois elementos tem apontado até o momento para uma intensificação dos controles e a colonização definitiva de como amamos, nos relacionamos, aprendemos, fazemos sexo, vivemos e morremos.

Como coloca o texto já referido aqui de Naomi Klein, “demorou algum tempo para ela se formar, mas algo parecido com uma Doutrina de Choque da Pandemia está começando a aparecer. Chame de ‘Screen New Deal’. Muito mais high-tech do que qualquer coisa que vimos nos desastres anteriores, o futuro que está surgindo à medida que os cadáveres ainda se acumulam está tratando nossas últimas semanas de isolamento [ela fala de Nova Iorque] não como uma necessidade dolorosa para salvar vidas, mas como um laboratório vivo para um futuro permanente — e altamente lucrativo — sem contato físico” (nota 15). Mas é sempre bom lembrar, na esteira de autores mobilizados nesse breve texto, que não relação de poder sem resistências, pois trata-se de uma relação agonística.

Se a pandemia é antes uma relação social e o monitoramento, uma tecnologia política, também a vida não se resume a uma fato biológico. Há sempre a possibilidade de alguém, em algum lugar, em algum momento, produzir um desacerto, uma revolta. Neste instante a tela se apaga. Pisca-se o olho, engole-se a saliva na boca seca, engasga-se e o fogo se alastra. O fogo consome e produz, depois vira brasa ardente a ser avivada em outro momento de enfretamento… Responde ao intolerável dos controles e monitoramentos, desnorteando-os. Na eficácia tecnológica, multifacetária e polivalente do dispositivo monitoramento, desativá-los totalmente é uma quimera, talvez uma utopia conservadora e democrática dos dias de hoje. Mas enfrentá-lo é sempre uma possibilidade. Enfrentar essa máquina de controle e morte é provocar o ingovernável, uma revolta antipolítica.

Provocar o ingovernável é desorientar, deixar, ao menos por um tempo, as práticas de governo sem saber o que fazer, para onde apontar, o que registrar e o que apagar, qual direção seguir ou estancar, o que valorizar e que desproteger. Aí, talvez, se possa, não desativar ou destituir os controles, mas quebrá-los. E até que alguém conserte os dispositivos, é possível experimentar um (des)concerto inventivo que provoque mais que um pouco de liberdade no espaço da cidade monitorada, quando ela fica desgovernada. Não há tecnologia de poder e governo das condutas, reitero, sem práticas de resistências, e essas também não se resumem às tecnologias computo-informacionais. E mesmo que muitas vezes implique quebrá-las, não se confunde com uma forma de tecnofobia, primitivismo ou mesmo um neo-luddismo, mas ato da vontade de ser livre, mesmo que por pouco tempo (nota 16). Abertura de potência em ato e gesto.

Durante a situação de pandemia esse gesto apareceu em diversos momentos, desde a disseminação de práticas de autocuidado, que liberam pessoas e grupos da gestão governamental da saúde, até enfretamentos e protestos de rua que se se reinventaram diante da necessidade de cuidados mútuos (nota 17). Diante dos exemplos mobilizados nesse texto dois atos dão mostras disso.

O primeiro ato se dá nos EUA, da Google e de Donald Trump: a execução de um homem negro, George Floyd, pela polícia, disparou uma onda de protestos que tomou as ruas de diversas cidades do país, inclusive da Nova Iorque de Cuomo. Mesmo com os riscos de contágio, milhares de pessoas foram às ruas, tomando os cuidados que achavam necessários, para dizer que “vidas negras importam”. Para além disso, colocaram algo que até então era inimaginável: a abolição da polícia. A mesma polícia na qual a cidadania das democracias securitárias se espelha e que constitui, entre os dispositivos de segurança, a procedência genealógica do contemporâneo dispositivo monitoramento.

O segundo ato, ocorreu aqui, no Brasil de Jair Bolsonaro e sua ruidosa minoria de fascistas que, desde o início da chegada da pandemia nessas terras, foram às ruas para dizer que o novo coronavírus era um invenção do globalismo e fazer ameaças de todas sorte. E por um tempo foi assim, até que uma manifestação antifa, chamada por torcidas de futebol, resolveu enfrentar, nas ruas, a presença dos fascistas. Esse gesto, ainda que muitos possam dizer que outros fatores concorrem junto a ele, foi decisivo para que ameaças de golpe de Estado, regulamente sugerido pela militância bolsonarista e membros do governo junto ao presidente, arrefecessem e que diversas forças da oposição se movessem. Além disso, a decisão de dar a esses atos um caráter antifascista colocam em evidencia a política de morte ainda curso do governo brasileiro.

Um leitor mais pragmático poderá dizer que esses dois exemplos, sinteticamente mobilizados aqui, em nada muda na marcha de expansão dos controles intensificada pela pandemia. E ele pode até ter razão, mas o fato é que foi a mobilização dos corpos nas ruas da cidade monitorada que veio lembrar aos atento que nem tudo está dominado. Resistir, mesmo em meio aos controles dão sofisticados, é um ato de saúde.

 

*Acácio Augusto é professor no Departamento de Relações Internacionais da UNIFESP e coordenador do LASInTec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento). Pesquisador no Nu-Sol/PUC-SP e professor no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da UFES. Autor de Política e polícia: cuidados, controles e penalizações de jovens, Rio de Janeiro: Lamparina, 2013, Anarquía y lucha antipolítica – ayer y hoy, Barcelona:NoLibros, 2019 e coautor de Ecopolítica, São Paulo: Hedra, 2019. Coordenador da COLEÇÃO ATAQUE, Editora Circuito, Rio de Janeiro, desde 2018.

 

Notas

 

[1] Algumas dessas discussões e análises nesse sentido podem ser encontradas na coletânea organizada por Fernanda Bruno et. al. (orgs.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018.

[2] Esta noção foi desenvolvida no interior do Projeto Temático FAPESP Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle (Disponível em: https://www.pucsp.br/ecopolitica/index.html). Sua consolidação pode ser consultada no livro: Edson Passetti, Acácio Augustoet. al.Ecopolítica. São Paulo: Hedra, 2019, pp. 259-298.

[3] Michel Foucault. “Sobre a história da sexualidade”. In: Roberto Machado (org. e trad.). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 244.

[4] Cf. Barry Buzan e Lene Hansen. A evolução do Estudos em Segurança Internacional. Tradução Flávio Lira. São Paulo: Ed. UNESP, 2012, pp. 33-50.

[5] Gilles Deleuze. “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. In: Conversações. Tradução de Peter PalPelbart. São Paulo: Editora 34, 1992, p. 220.

[6] Idem, p. 223.

[7] Ibidem, p. 224.

[8] Naomi Klein. “Coronavírus pode construir uma distopia tecnológica”, In The Intercept Brasil, 13 de maio de 2020. Disponível em https://theintercept.com/2020/05/13/coronavirus-governador-nova-york-bilionarios-vigilancia/ Consultado em 5/07/2020.

[9] Cf.DefenseInnovationBoard, in:https://innovation.defense.gov/Media/Biographies/Bio-Display/Article/1377390/eric-schmidt/ Consultado em 5/07/2020.

[10] Sobre essa adesão policial dos cidadãos ao controle da conduta do outro em meio a pandemia no Brasil, ver: Marie Declercq. “Pandemia: ‘santa ceciliers’ fiscalizam e vaiam pedestres do Minhocão”. In TAB UOL, 27 de março de 2020. Disponível em https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/27/coronavirus-santa-ceciliers-fiscalizam-e-vaiam-pedestres-do-minhocao.htm Consultado em 4/5/2020.

[11] Ver Edson Passetti. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo: Ed. Cortez, 2003.

[12] Esta noção é desenvolvida pela pesquisa em andamento no LASInTec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento): Políticas de segurança: a conformação transterritorial das democracias securitárias (2019-2021) (Disponível em: https://lasintec.milharal.org/pesquisa-ensino/).  A pesquisa não possui financiamento e integra o programa de extensão LASInTec do Departamento de Relações Internacionais da EPPEN-UNIFESP Campus Osasco. Sobre algumas elaborações iniciais a respeito da democracia securitária, ver: Acácio Augusto e Helena Wilke. “Racionalidade neoliberal e segurança: embates entre democracia securitária e anarquia”. In: Margareth Rago e Mauricio Pelegrini (orgs.). Neoliberalismo, feminismos e contracondutas. Perspectivas foucaultianas. São Paulo: Intermeios, 2019, pp. 225-245.

[13] A coleção de boletins do CAAF pode ser consultada em https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/boletim-caaf-unifesp/158-boletim-caaf-unifespConsultado em 2/7/2020.

[14] A coleção de boletins do LASInTec pode ser consultada em https://lasintec.milharal.org/boletim/ Consultado em 2/7/2020.

[15] Naomi Klein, op. cit., 2020.

[16] Sobre o embate entre revolta como antipolítica e o dispositivo monitoramento, ver Acácio Augusto. Política e antipolítica: anarquia contemporânea, revolta e cultura libertária. Tese de Doutorado. São Paulo: PUC-SP, 2013.

[17] Para um inventário extenso dessas práticas anticapitalistas e antiestatais em todo o planeta, consultar os dossiês “A Luta é Pela Vida” partes I e II, com textos e relatos diversos. Disponível em https://faccaoficticia.noblogs.org/post/2020/04/13/a-luta-e-pela-vida-parte-ii/ Consultado em 1/7/2020.

 

Série Lavits_Covid19

 

A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.

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