#11: violências contra as mulheres e o entrelaçamento com as tecnologias: complexidades e reconfigurações no contexto das crises e da pandemia de COVID-19

Por Daniela Araújo, Débora Prado e Marta Mourão Kanashiro*

 

Introdução

 

Desde o início das recomendações de isolamento social, necessárias para conter o contágio pelo COVID-19, organizações feministas e de defesa dos direitos das mulheres alertaram para os riscos no aumento do número de casos de violência contra mulheres no contexto doméstico e familiar. A casa não é sinônimo de segurança para muitas pessoas, especialmente para quem vive sob o mesmo teto que agressores. Logo no primeiro mês de quarentena, levantamentos de dados já apontavam para um crescimento dos casos e, ao mesmo tempo, uma redução dos pedidos de medidas de proteção pelas vias judiciais.

Em diversos textos recentes, é recorrente a ideia de que a situação de reclusão, isolamento e tensão proporcionada pelo contexto da pandemia agrava o problema da violência contra as mulheres e dificulta os pedidos de ajuda. Neste cenário, a busca por redes de apoio online se tornou mais frequente. As circunstâncias trouxeram um grande desafio para as organizações que se dedicam ao atendimento de mulheres em situação de risco, uma vez que questões como vigilância digital, privacidade e segurança online e offline se colocaram como preocupações de primeira ordem. Neste texto, apresentamos uma discussão sobre levantamentos recentes acerca do aumento de casos de violência contra as mulheres e ações que vêm sendo tomadas para o enfrentamento da questão, a mobilização de redes de apoio, o uso das tecnologias de informação e comunicação e o entrelaçamento desses temas com aspectos da vigilância.

 

O agravamento da violência e as soluções imediatas

 

Neste mês de junho, segue para sanção presidencial o Projeto de Lei 1291 da Câmara dos Deputados, que dispõe sobre medidas de combate e prevenção à violência contra mulheres (ver nota 1), previstas na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) e no Código Penal. A proposta deve estar vigente enquanto durar a declaração de estado de emergência de caráter humanitário e sanitário em território nacional. Proposto no final de março, o PL 1291/2020 tramitou em caráter de urgência e surgiu como resposta de várias deputadas ao aumento dos casos de violência, durante o período da pandemia, para propor, entre outros pontos, que serviços que atendam mulheres em situação de violência devem ser considerados essenciais.

Sublinhamos que o projeto de lei está voltado para o que deve ser tratado como um agravamento de uma situação preexistente, que é estrutural, histórica e vivenciada de forma diversa pelos diferentes grupos de mulheres. Esse destaque é importante para não chegarmos a falsa conclusão de uma relação direta de causa e efeito entre a pandemia e o aumento dos casos, o que poderia conduzir ao apagamento da persistência de um problema profundamente enraizado em nossa sociedade. A violência contra as mulheres têm raízes na estrutura machista e androcêntrica e é atravessada por múltiplas desigualdades de poder e discriminações baseadas em identidade de gênero e sexualidade, raça e classe social, que são historicamente invisibilizadas e socialmente naturalizadas.

A intensificação dos casos de violência tem sido observada por diferentes levantamentos de dados. Um monitoramento recente, realizado por uma parceria entre as mídias independentes Amazônia Real (Amazonas), Agência Eco Nordeste (Ceará), #Colabora (Rio de Janeiro), Portal Catarinas (Santa Catarina) e Ponte Jornalismo (São Paulo), permitiu acompanhar a situação da violência contra mulheres através de informações das secretárias de segurança pública de 20 estados brasileiros. Os dados reunidos apontaram para o aumento de 5% nos casos de feminicídio no país, quando comparados a igual período em 2019. Entre março e abril deste ano, 195 mulheres foram assassinadas. Nove estados registraram juntos um aumento de 54% dos casos, enquanto outros nove tiveram queda de 34%, e dois mantiveram o índice.

O feminicídio é considerado uma morte evitável, já que muitas vezes acontece como desfecho de um histórico de violências que não aconteceria sem a conivência do Estado e da sociedade às discriminações e violências contra as mulheres que se perpetuam até o extremo da letalidade (Prado, Sanematsu; 2017). Em casos de feminicídio íntimo, homicídio que vitimiza a mulher no seu ambiente doméstico e familiar, a omissão do Estado é ainda mais evidente, já que a Lei Maria da Penha define deveres e caminhos para interromper o ciclo da violência antes que ele atinja o extremo do crime contra a vida de mulheres.

Apesar dos dados existentes hoje não traduzirem a extensão do problema em nível nacional, seja pela insuficiência de informações de alguns estados, seja pelas diferentes bases de dados utilizadas por levantamentos diversos ou mesmo pela limitação em relação a obtenção de bases de dados desagregadas, é inquestionável o agravamento do ciclo de violência contra mulheres, num momento em que está comprometida a capacidade de resposta dos serviços de proteção e acolhimento de mulheres em situação de risco. Importante considerar ainda, a frequente subnotificação dos casos, problema recorrente no enfrentamento do tema e que se acentua neste momento de pandemia, uma vez que as condições do isolamento social podem reforçar as formas de controle e vigilância por parte dos agressores.

Ainda que os canais telefônicos da Polícia Militar (190) e da Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (Ligue 180) tenham registrado um aumento no número de denúncias, houve queda na concessão de Medidas Protetivas de Urgência (MPU) pelos Tribunais de Justiça, medidas previstas na LMP que podem, entre outras ações, determinar o afastamento do agressor para garantir a proteção física, psicológica, moral e sexual da vítima. De acordo com um estudo realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e publicado em maio deste ano, diante do contexto de isolamento social, houve uma redução em 25,5% no registro de casos de violência doméstica nas delegacias de polícia, consideradas portas de entrada para acesso ao sistema de segurança e justiça por mulheres em situação de violência. Outro dado preocupante apontado pelo mesmo relatório é a redução em 28,2% dos casos de estupro, o que não indica necessariamente a redução destas violações, mas pode sinalizar para as dificuldades de acessar a polícia e denunciar o crime. Os impactos da pandemia ao sistema de saúde também dificultaram o acesso das mulheres a essa outra porta de entrada para a rede de proteção.

A situação de vulnerabilização das mulheres e a dificuldade de enfrentar a questão ou de formalizar queixa contra os agressores não é um problema exclusivo da realidade brasileira. Em abril deste ano, a diretora executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, publicou uma declaração apontando situação similar em diferentes lugares. Argentina, Canadá, França, Alemanha, Espanha, Reino Unido, Estados Unidos, Austrália, Singapura, Chipre estão entre os países citados na declaração. Nestes locais, autoridades governamentais e grupos de defesa dos direitos das mulheres também apontaram o aumento de denúncias de violência durante a pandemia de coronavírus. Em função deste quadro, a ONU tem recomendado aos governos que trabalhos de prevenção e enfrentamento à violência contra as mulheres sejam incorporados como parte das ações de resposta à pandemia, destacando os deveres do poder público e o papel-chave das organizações de defesa de mulheres e a importância de receberem, especialmente neste momento, respaldo e auxílio financeiro (ver nota 2). Além da ONU, outras organizações internacionais vem destacando a atual situação e promovendo ações, como é o caso da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da Anistia Internacional, entre várias outras.

O contexto latino-americano de violência contra mulheres durante a pandemia ganha relevância na pesquisa realizada pelo grupo de jornalistas Distintas Latitudes. Elas detectaram um aumento de telefonemas para denunciar situações de violência em ao menos 6 países: Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Paraguai, República Dominicana, e também destacam a inoperância de algumas dessas linhas telefônicas (como é o caso de El Salvador); a ineficiência da coleta de dados sobre a situação e de estratégias de enfrentamento por parte do governo (como é o caso do México). O aumento de casos de feminicídio também foi observado pela pesquisa no Chile, México, Nicarágua, República Dominicana e Venezuela.

Diante desse cenário, redes de apoio que conectam mulheres em situação de risco a organizações de defesa dos direitos das mulheres e a profissionais que ofereçam atendimento nesses casos, ocupam um papel importante no acolhimento de pedidos de ajuda. Mesmo antes da pandemia, a busca pelo apoio destas redes já seguia um movimento crescente.

No contexto do avanço da Covid-19 no Brasil, quando relações passaram por uma virtualização crescente em múltiplos setores, estas organizações também se viram diante do desafio de criar territórios de cuidado em meio a espaços povoados pelas tecnologias da vigilância. Como estabelecer espaços seguros não só para as mulheres acolhidas, mas também para as próprias voluntárias e organizações que assumiram esse papel?

Grupos e conversas via Whatsapp, formulários da Google, assistentes virtuais em redes sociais e “botões do pânico” em sites de compras são algumas ferramentas que têm ganhado força como “instrumentos de enfrentamento à violência contra mulheres”, muitas vezes promovidas por grandes empresas que aliaram estas ações às suas campanhas de marketing.

A popularidade e algumas facilidades de acesso (o Whatsapp por exemplo é oferecido “gratuitamente” por muitas operadoras de telefonia sem cobrança na franquia de dados móveis) são algumas justificativas para a adoção destes serviços como “canais de atendimento” online. Por trás dessa facilidade, contudo, há a quebra da neutralidade da rede, um intenso trânsito de dados, especialmente de informações sensíveis, através de plataformas controladas por grandes empresas cujo modelo de negócios é a monetização dos dados de usuários.

O sentido de urgência (Klein, 2008) acionado pela pandemia e associado a preocupações anteriores com situações de vigilância e perseguição sobre ativistas (Parsons, 2019) acenderam um alerta para que muitos grupos procurassem por alternativas tecnológicas e estratégias de segurança que, se não substituem e desafiam o uso das ferramentas digitais mais comuns, ao menos criam modos de apropriação das mesmas para a criação de espaços seguros para o autocuidado e o acolhimento.

De outro lado, todo esse contexto também impulsionou que coletivas e organizações feministas tecnoativistas se dedicassem a elaboração de materiais que disseminam as discussões políticas em torno das tecnologias digitais e orientam para táticas de segurança que possam fortalecer as comunicações e reduzir a exposição de dados sensíveis (ver nota 3).

Também fazem parte desse esforço, os processos formativos de construção de conhecimento e aprendizagem articulados por organizações feministas com o objetivo de discutir os desafios que se apresentam e de fabricar as ações coletivas de enfrentamento às violências e defesa de direitos. Essa experiência nos ajuda a delinear um cenário de complexidades e controvérsias, em que novos desafios emergem, violências e desigualdades se intensificam, mas que também é atravessado pela constituição de redes de apoio, autocuidado, solidariedades e por esforços conjuntos para explorar novas alternativas.

 

Romper com o retorno a generalizações

 

Como apontado anteriormente, a violência contra mulheres deve ser compreendida e combatida em suas raízes estruturais e considerando suas características interseccionais ou as diversidades que marcam sua incidência em diferentes grupos de mulheres. As campanhas de prevenção e enfrentamento à violência contra as mulheres, a ampliação de espaços de denúncia, ou as alterações na legislação visam um enfrentamento mais imediato e punitivo, que apesar de urgentes e importantes, incidem de forma limitada sobre esse caráter estrutural da violência.

A abordagem interseccional do tema é bastante potente para fazer emergir a naturalização e invisibilidade de desigualdades e discriminações, como o machismo, o racismo e a LGBTQIfobia, que constroem o desvalor da vida de mulheres, em que a precarização e hierarquização de vidas e corpos os tornam desigualmente suscetíveis a preconceitos, discriminações, explorações, violências e assassinatos em larga escala com alto grau de aceitação pela sociedade e pelo Estado (Prado; Sanematsu, 2017). No Brasil, por exemplo, diversos estudos apontam para a maior vitimização de mulheres negras e mostram a necessidade da perspectiva de gênero e raça para um enfrentamento mais eficaz à violência.

A perspectiva interseccional nos ajuda a trazer à tona apagamentos e generalizações que são estruturantes na perpetuação de violências. Ela nos lembra da limitação de dados e de espaços participativos que nos permitam conhecer as manifestações da violência contras as mulheres e os impactos da pandemia e das medidas de isolamento em relações de poder que se estabelecem em diferentes realidades vividas por mulheres diversas no Brasil e América Latina. Crenshaw (2002) conceitua a interseccionalidade ao apontar como a materialização de sistemas de diferença prejudicava o acesso de mulheres negras a direitos civis e humanos, impondo limites e riscos estruturais, destacando que suas experiências não podem ser capturadas nem só pela perspectiva de raça, nem só pela de gênero sem que haja um apagamento. Desde uma perspectiva interseccional é preciso considerar simultaneamente as múltiplas desigualdades que se combinam a partir de diferenças como as de gênero, raça, classe, nacionalidade, idade. Ao lembrar que essas desigualdades acontecem em contextos que não são fixos nem universais, a lente interseccional nos lembra ainda a importância de manter o olhar aberto para compreender que no mesmo contexto em que vulnerabilidades e violências acontecem, há também afetos, negociações, alianças e transcendências.

A pandemia de COVID-19 e a combinação de crises sanitária, econômica, política e social terão impactos distintos em realidades diferentes e serão permeadas por intersecções e complexidades. Neste cenário, Barbosa (2020) propõe desnaturalizar o olhar que generaliza e considerar que um mesmo acontecimento, em contextos diferentes, pode afetar mulheres de formas diferentes, fazendo um convite a uma análise interseccional em tempos de pandemia. Além de lembrar diferenças e experiências de mulheres em situação de violência, essa perspectiva propõe olhar para o isolamento social como uma das categorias de intersecção (Barbosa, 2020: 13) e tomar a pandemia como um analisador histórico capaz de fazer emergir questões naturalizadas (Barbosa, 2020: 9). A pandemia neste sentido, não está causando violências contra as mulheres, mas gerando novas dinâmicas e vulnerabilizações.

 

Explorar possibilidades para resgatar a aposta na ação política

 

As perspectivas feministas resgatadas até aqui nos ajudam a pensar também as tecnologias digitais como um campo suscetível a contradições, em que normas hegemônicas são tanto reiteradas e construídas, quanto contestadas, e permitem também refletir sobre a multiplicidade de narrativas e experiências que escapam a essas normas (Oliveira, 2019).

Diferentes vertentes teóricas problematizaram a distinção tecnologia e política – rejeitando concepções como a de que tecnologia seria neutra ou objetiva e esquemas que separavam a ação humana (política) de artefatos e técnicas, que seriam apolíticos. Nesse campo, os Estudos Feministas em Ciência e Tecnologia (EFCT) ajudaram a colocar em primeiro plano a não neutralidade da tecnologia em muitas camadas, incluindo uma preocupação em afirmar que seus impactos não atingirão as pessoas e grupos sociais da mesma forma (HARDING, 1998; MAFFÍA, 2005; NATANSOHN, 2013; SARDENBERG, 2002). Redes sociais e aplicativos de mensagem não são ferramentas que só adquirem sentido político no uso por pessoas, nem são simples formas de comunicação – são tecnologias que incorporam e carregam novas dinâmicas de poder que, inclusive, reconfiguram vários aspectos da organização econômica e social na contemporaneidade e trazem preocupações crescentes com a concentração de poder e a amplificação da vigilância.

Essa reconfiguração tecnopolítica está associada a debates em torno de problemas como a digitalização crescente da atividade humana e não humana em gigantescos bancos de dados; o controle desses dados por poucas empresas que concentram imenso poder; os usos e trocas monetárias que são feitos com os dados de forma nada transparente; a capacidade de influenciar comportamentos para gerar novas formas de concentração de poder, lucro e acumulação; sua cooperação com aparatos governamentais e seu papel em disputas políticas que parece estar, em alguma medida, associada a emergência de lideranças autoritárias em diferentes países (Oliveira, 2019).

Alguns estudos feministas de vigilância voltados para questões de gênero observam ainda o reforço da violência contra mulheres a partir do uso de tecnologias de vigilância. Mason e Magnet (2012) abordam as stalking technologies como partícipes da perpetuação de comportamento obsessivo de abusadores que invadem a privacidade e ameaçam a segurança pessoal das vítimas. O tema também é analisado em um extenso relatório feito por pesquisadores do CitzenLab (Parsons, 2019), conectando a atuação de perseguidores (stalkers) à lógica de desenvolvimento dos próprios dispositivos e aplicativos (stalkerware application industry), e deslocando a possibilidade de vigilância para outra esfera e escala.

A pandemia, além de impactar nas dinâmicas de poder associadas à dificuldade de se romper o ciclo de violência, traz novos contornos para o debate sobre o uso de tecnologias já existentes, que podem auxiliar de forma imediata, mas que retroalimentam questões urgentes, como o fornecimento de dados para empresas e governos em processos pouco transparentes.

Nesse sentido, ao pensar as tecnologias como uma rede tramada entre pessoas e máquinas, em que escolhas e decisões políticas acontecem o tempo todo, apontamos a importância de refletir sobre esse entrecruzamento entre pandemia, tecnologias e violências discriminatórias a partir de acúmulos preexistentes que nos ajudam a afastar perspectivas enganosas, como 1) pensar as tecnologias como algo neutro ou ambíguo dependendo do uso que se faz dela; 2) adotar posturas paralisantes, como a negação completa do uso de tecnologias já existentes para auxílio imediato e emergencial; 3) recair na construção romantizada de tecnologias que escapem completamente a discriminações e relações de poder e que possam se apresentar como soluções mágicas para problemas estruturais e complexos.

A ideia de capitalismo do desastre de Klein (2008), quando acontecimentos catastróficos são tratados como oportunidades de mercado para a intensificação de determinadas vertentes políticas e econômicas, conecta-se bem com a expansão de tecnologias de vigilância durante a pandemia de coronavírus. Essas tecnologias têm surgido como solução imediata e atravessado os mais diferentes campos. A área de educação (Parra, 2018), por exemplo, já vinha se caracterizando pelo uso de plataformas educacionais baseadas em mecanismo de controle e vigilância de dados. A pandemia de coronavírus intensificou esse uso (Oliveira, 2020) criando uma espécie de solução imediata única para a realização de atividades de ensino a distância. Ao mesmo tempo que aprofunda as dinâmicas do capitalismo de vigilância, a adoção rápida e pouco questionada das tecnologias que permitem coletar, armazenar, cruzar e comercializar dados pessoais, faz emergir a assimetria dos atores para criar e sustentar soluções alternativas, e traz à tona a alienação tecnológica e uma relação despolitizada com as tecnologias (Vicentin; Kanashiro, 2019) prevalentes em nossa sociedade.

Stengers e Pignarre chamam de ‘alternativas infernais’ o “conjunto de situações que parecem não deixar outra escolha senão a resignação”, por um lado, ou conduz, por outro lado, a realização de uma “denúncia sonora”, que é impotente na medida que conclui de forma genérica que “todo o ‘sistema’ que tem que ser destruído”, paralisando também a ação (Pignarre; Stengers, 2011:24). A noção de alternativas infernais carrega a hipótese de que o modo de funcionamento do capitalismo pressupõe um sufocamento da ação política e que sua perpetuação é sustentada pela limitação das alternativas possíveis e pela imposição de falsas escolhas que levam a uma narrativa de sacrifícios necessários e de resignação (ver nota 4).

O apagamento da dimensão política das escolhas e a redução das possibilidades de invenção é algo que também se expressa nos “canais de atendimento” via Whatsapp, formulários da Google, e “botões do pânico” em sites de compras mencionados anteriormente.

Da mesma forma como é necessário compreender a dimensão estrutural da violência contra mulheres, também há essa necessidade com relação às tecnologias. Construir as redes de apoio (e de afeto) requer, portanto, pensar as raízes do problema, as relações construídas com a tecnologia e as infraestruturas tecnológicas como parte integrante/constituinte destas redes e não puramente como intermediárias em uma conexão. Passa ainda por entender que habitar essas redes integra a dimensão do cuidado de si e do outro.

É nesse sentido que entre as organizações feministas engajadas com as discussões sobre gênero e tecnologias crescem as articulações que buscam construir estratégias de proteção e resistência nas redes.

As crises sanitárias, política, econômica e institucional que se acentuam no contexto da pandemia, reforçam desigualdades, mas também as tornam mais evidentes. Aumentam vulnerabilidades e violências, mas também reforçam a importância de redes de apoio e alianças por transformações necessárias. Expandem a mediação computacional para soluções imediatas, mas reforçam a importância de escaparmos de alternativas infernais e retomar a aposta na ação política para destravar múltiplas possibilidades.

A própria arquitetura e usabilidade de aplicativos, sites de redes sociais e inúmeras outras aplicações na Internet, são pensadas para estarem “prontas para o uso”, deixando escapar os detalhes de políticas de privacidade, termos e condições de serviço e as configurações de segurança e privacidade. Estas escolhas não são meramente técnicas e tomar ciência delas colabora para imaginar outros caminhos, estratégias e táticas no uso dessas ferramentas. Trata-se de um processo de aprendizagem pensado a partir da sensibilização, com o intuito de alcançar uma amplificação progressiva de mudança de postura. Também de um processo de negociação permanente, em que urgências imediatas se combinam com a necessidade de ampliar as possibilidades e as ações políticas que as narrativas de resignação, as alternativas infernais e os choques tentam apagar.

 

Notas

 

1) Apesar de refletirmos sobre impactos do confinamento com agressores, é importante expressar que a violência doméstica e familiar contra as mulheres e o feminicídio íntimo são questões públicas, estruturais e urgentes. Não se trata, portanto, de questões do campo privado, concepção que sabemos ser recorrente nos meios de comunicação, em uma parcela do imaginário da população e reivindicadas mesmo por representantes políticos para ‘justificar’ violações do Estado e/ou sua omissão perante o dever de oferecer políticas públicas e serviços para materializar o direito de viver sem violência. Ressaltamos ainda que a demarcação na violência doméstica e familiar contra mulheres não desconsidera as violências também sofridas por crianças, adolescentes, idosos, pessoas com diferentes opções no que tange a gênero e sexualidade e pessoas com necessidades especiais, que muitas vezes coabitam com seus agressores. É preciso pensar, inclusive, como essas violências e discriminações podem acontecer de modo combinado, como aponta a perspectiva interseccional explorada neste artigo.

2) Ainda que as autoras e referências deste texto não necessariamente se alinhem com as perspectivas políticas e epistemológicas da ONU no que se refere a promoção da igualdade entre os gêneros, é importante vislumbrar atuações importantes da organização ao destacar as situações de violência vividas pelas mulheres em nível global e demandar a ação direta de instituições públicas e privadas no enfrentamento de tais violações. Além disso, a ONU Mulheres também tem realizado chamadas para apoio a projetos oriundos de organizações de mulheres e divulgou recentemente os telefones para denúncia em pelo menos 185 países.

3) Alguns desses materiais podem ser conferidos nos links: https://www.marialab.org/category/cuidados-durante-a-pandemia/ e https://www.navegandolibres.org/

4) Em entrevista recente, Isabele Stengers explica o conceito de “alternativas infernais” como um conjunto de situações formuladas e agenciadas de modo que elas não deixam outra escolha senão a resignação, pois toda alternativa se encontra imediatamente taxada como demagogia. «O que se afirma com toda alternativa infernal é a morte da escolha política, do direito de pensar coletivamente o futuro. Com a globalização estamos em regime de governança no qual trata-se de conduzir um rebanho sem o fazer entrar em pânico, mas sob o imperativo ‘não devemos mais sonhar’”. Disponível em: http://revistadr.com.br/posts/o-preco-do-progresso-conversa-com-isabelle-stengers/

 

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Autoras

 

*Daniela Araújo é doutora em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp e integrante da organização feminista MariaLab.

Debora Prado é jornalista e mestre em Divulgação Científica e Cultural pela Unicamp (Labjor/IEL).

Marta Mourão Kanashiro é doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Divulgação Cientifica e Cultura da Unicamp (Labjor/IEL) e membro fundadora da Rede Lavits.

 

Série Lavits_Covid19

 

A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.

 

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