Dados biométricos dos paulistanos são coletados no metrô sem consentimento nem debate das implicações

Quão longe as empresas podem ir para tentar medir o efeito de um anúncio sobre potenciais consumidores? Rastrear toda a navegação de uma pessoa após a exibição de um banner na internet é aceitável? E capturar expressões faciais do passageiro quando ele embarca no transporte público para mensurar reações a um anúncio? O reconhecimento facial começou a ser implantado dentro dos ônibus das cidades brasileiras ainda em 2012 se valendo do cadastro dos usuários que são beneficiados com algum tipo de desconto ou isenção para identificar possíveis fraudadores do sistema. Esses dispositivos, em geral, analisam as imagens captadas do beneficiário por uma câmera instalada na catraca comparando-as com fotos do banco de cadastros estatal.

Ao se valer do reconhecimento facial não necessariamente para comparações de dados biométricos dos passageiros do transporte público com bancos de informação estatais, mas para explorá-los com fins eminentemente comerciais, a ViaQuatro – concessionária da operação da linha 4 do metrô de São Paulo – abre precedente para a captura desses dados em grande escala contando com o aval do governo do estado. Para o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana (PUCPR), Rodrigo Firmino (Lavits), a atitude do governo do estado de autorizar o tratamento desses dados é questionável. “Os traços faciais, como qualquer outro dado biométrico específico de cada pessoa são, justamente por essa característica de individualidade e mínima possibilidade de duplicidade, dados pessoais.”, diz.

Apenas cinco dias antes da data prevista para que as “portas interativas digitais” começassem a funcionar na linha 4 amarela do metrô de São Paulo, a novidade foi anunciada pela empresa concessionária da operação. No release amplamente divulgado pela imprensa o presidente da ViaQuatro, Harald Zwetkoff, afirma que a implantação do dispositivo seria feita “visando mais efetividade na troca de mensagens importantes ou mesmo o incremento em vendas”. Não é mencionado no release o que impediria o dispositivo de mensurar as reações dos passageiros aos anúncios a partir de dados biométricos caso que eles tenham sido informados sobre e negado consentimento para tal uso das suas informações pessoais. “Se a intenção é usar dados pessoais comercialmente sem o consentimento do usuário, a violação me parece clara”, defende Firmino.

Atualmente, são ofertados no mercado softwares que fazem reconhecimento facial se valendo de fotos de referência pré-incorporadas em um sistema para, por exemplo, rastrear a frequência com a qual uma pessoa vai até a igreja.  Uma empresa russa afirma que consegue reconhecer pessoas tomando como referência suas fotos de perfis nas redes sociais com 70% de precisão. Google e Facebook, interessados em tagueamento automatizado de pessoas em fotos por reconhecimento facial, estariam atentos tanto à aceitação dessas tecnologias quanto nas iniciativas legislativas que dizem respeito à proteção de dados e da privacidade encaminhadas de formas diferentes em cada país. Assumindo uma relevância cada vez maior para a publicidade – que até então tinha que necessariamente contar com a incerteza sobre seu público-alvo ter ou não de fato visto um anúncio–, essas tecnologias se valem de traços de comportamento cada vez mais sutis no ímpeto de direcionar refinadamente as peças publicitárias veiculadas.

O pouco que se sabe sobre os equipamentos que foram implantados nas plataformas das estações Luz, Paulista e Pinheiros já preocupa. Foram instaladas quatro unidades em cada estação, duas por plataforma. O dispositivo consiste em uma tela fixada na barreira de proteção dos trilhos – portanto, entre as portas que dão acesso aos trens – que, segundo a assessoria de imprensa da ViaQuatro, tem a capacidade de mensurar reações aos anúncios veiculados na tela se valendo de expressões faciais dos passageiros e contabilizar quantas pessoas viram o anúncio e/ou passaram por ali. Além disso, a empresa afirma que os equipamentos podem “indicar se um rosto é masculino ou feminino”, assim como estimar sua idade.

Para Rodrigo Firmino (Lavits), a mensuração de expressões faciais como reações a um anúncio é considerada dado pessoal porque além de ser um identificador da pessoa, revela um estado emocional dela. “Todos os dados cujas características podem ser associadas exclusivamente a um indivíduo, devem ser considerados dados pessoais pois podem ser utilizados para incluí-lo ou excluí-lo de certas classificações e agrupamentos discriminatórios, mesmo sem a necessidade de identificação e correlação a dados de cadastros oficiais tradicionais (nome, documentos de identificação, endereço, etc.)”.Os dispositivos funcionam durante todo o horário de operação da linha, que transporta em média 700 mil passageiros diariamente, segundo informações da própria ViaQuatro divulgadas em fevereiro.

“Porta interativa” na plataforma da estação Paulista da linha 4 amarela

 

Procurada para responder questões sobre as portas interativas digitais para a matéria, a assessoria de imprensa da Secretaria dos Transportes Metropolitanos (STM) confirmou que o governo do estado de São Paulo autorizou a instalação dos equipamentos pela concessionária que opera a linha 4.

Para Firmino, o governo não deveria ter autorizado a instalação. “Os dados coletados não estão sob a custódia do governo; estão sendo coletados diretamente das fontes, os cidadãos acessando um serviço público. E mesmo que os dados já estivessem sob a custódia do governo (como estão, por exemplo, fichas criminais ou cadastros de saúde), tais informações são pessoais e só seria possível admitir tal autorização ou compartilhamento se houvesse consentimento por parte dos próprios cidadãos, com total conhecimento dos propósitos e possíveis desdobramentos de tal uso.”, alerta.

A Eletromídia, empresa que comercializa publicidade na linha 4 amarela, disponibiliza em seu site alguns números sobre os passageiros para anunciantes. No seu mídia kit consta que 42% dos passageiros têm entre 16 a 25 anos, por exemplo, sendo que essa informação foi disponibilizada no dia 11 de abril e, portanto, precede a implantação das portas interativas digitais. A fonte da informação apontada no mídia kit é a própria empresa concessionária, sem maiores esclarecimentos sobre métodos empregados para chegar nesses números. “Os dados de fluxo e acesso de passageiros no transporte público são informações importantes para a gestão deste serviço, e podem servir na melhoria, frequência e distribuição de veículos e linhas no sistema. Entretanto, há diversas formas de se obter essas informações sem qualquer violação de privacidade ou necessidade de coleta de dados pessoais” diz Firmino.

O Metrô de São Paulo (Companhia do Metropolitano de São Paulo), por exemplo, também disponibiliza dados estatísticos semelhantes àqueles da ViaQuatro presentes no mídia kit publicado pela Eletromídia. Entre os passageiros da linha vermelha, por exemplo, 56% estão na faixa dos 18 a 34 anos. No entanto, o Metrô especifica que os números foram obtidos a partir de entrevistas com uma amostra de passageiros feitas para a pesquisa “Caracterização Socioeconômica do Usuário e seus Hábitos de Viagem” em 2014.

Não há no mídia kit da Eletromídia nenhuma informação sobre como os dados obtidos a partir das portas interativas serão tratados e comercializados. Questionada, a ViaQuatro se recusa a responder se há alguma forma dos passageiros saberem para quais fins estão de fato sendo usadas essas informações e que tipo de consequências estão implicadas no tratamento dos seus dados.

Dados pessoais têm mais relação com reconhecimento de indivíduos por suas características próprias e individuais, do que com a identificação (ou identidade) destes indivíduos.”Rodrigo Firmino

Se um passageiro teve seu rosto reconhecido, por exemplo, já seria possível associar a esse primeiro reconhecimento um segundo e assim progressivamente mensurar individualmente a frequência com que o mesmo embarca naquela estação e plataforma. Caso o dispositivo tenha mensurado as reações individuais do passageiro, essa mensuração pode ser decisiva para a exibição de um determinado anúncio em vez de outro na próxima vez que ele estiver na plataforma. Os efeitos da exposição da população à mensuração de suas inclinações e suscetibilidades, deixando-a vulnerável frente ao comércio, se dão sem o comprometimento da ViaQuatro de informar aos passageiros da linha que a empresa administra e mantém como estão sendo tratados os seus dados pessoais.

O próprio desprezo pelo debate público tanto por parte da empresa quanto por parte da STM, que autorizou a instalação dos dispositivos mesmo com um intervalo de poucos dias entre a divulgação e implantação da medida, também contribui para que esse tratamento dados biométricos se dê de forma compulsória, ou seja, à revelia da população.

 

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