“Por que Lula precisa regular as Big Techs”, por Rafael Evangelista

Originalmente publicado no site do Outras Palavras, aqui.

Elas manipulam os algoritmos que deformam o debate nas redes sociais. Também capturam dados sobre a atividade de cidadãos e os fluxos principais das metrópoles. Não basta defender “direitos” nas plataformas. É preciso redefinir sua lógica

Há uma agitação recente sobre o que o governo Lula fará com relação à governança da Internet. Governança entendida em sentido amplo, que envolve não só a camada física e lógica, mas também a circulação dos dados e o papel das plataformas, que são hoje o principal ator a direcionar, vigiar e extrair valor sobre os dados que nós, usuários, produzimos.

O principal grupo a impulsionar o debate é aquele que gira em torno das comunicações. Não à toa, porque o assunto foi o calo no pé da campanha de Lula e das esquerdas em geral, com as notórias iniciativas de desinformação maquinadas pelo gabinete do ódio. Mas também impulsionadas pelas redes sociais, que ganham com os cliques e a atenção gerados pelo sensacionalismo e pelas teorias da conspiração. O contexto pandêmico agravou o problema, colocando em risco a vida da população, com a promoção de remédios falsos e ceticismo vacinal.

Mas há outros grupos sociais, com pautas importantes, que igualmente vêm tentando sugerir políticas, programas e regulamentações tendo por objeto o mundo digital que se estabelece a partir da rede. Dois deles escreveram cartas, dirigidas ao presidente Lula. O “programa de emergência para a soberania digital” foca no problema das infra-estruturas, dos servidores das Big Techs que hoje hospedam dados educacionais, científicos e de saúde dos brasileiros. “O conhecimento e as informações produzidos pelos cientistas brasileiros hoje correm pelas veias fechadas que irrigam o coração das empresas de tecnologia do Vale do Silício”, alertam, apontando que esses dados sustentam um modelo de negócios e o treinamento de inteligência artificial das Big Techs.

Outro desses grupos escreveu o “Plano de ação para Cooperativismo de Plataforma no Brasil”. Produzido a partir de um seminário sobre cooperativismo de plataforma e políticas públicas, o documento faz sugestões a partir de uma preocupação sobre como as grandes plataformas têm se colocado como intermediárias do trabalho, digital ou não, gerenciando e extraindo valor das atividades. O norte é a apropriação dessas estruturas de intermediação pelos trabalhadores organizados. A plataforma é a nova fábrica.

Possivelmente existem outras iniciativas. E há muita intersecção entre esses grupos e propostas, com alinhamento em torno de princípios gerais.

Exemplos do passado

Como acompanho há mais de 20 anos o debate político em torno dos impactos e oportunidades das tecnologias da informação, vou me dar a liberdade de fazer alguns paralelos históricos.

Lá no início dos 2000, antes mesmo da primeira eleição de Lula, dois fóruns foram extremamente importantes na definição de políticas que orientariam o resto da década: o Fórum Social Mundial e o Fórum Internacional de Software Livre. Ambos tiveram como “casa”, simbólica e real, Porto Alegre. A proximidade ajudou a fazer de uma pauta hermética e, em princípio exótica às discussões da esquerda, um ponto de apoio para causas relativamente díspares. Democratização da comunicação, acesso à cultura, educação emancipadora, trabalho justo, apropriação tecnológica, desenvolvimento e soberania tecnológica nacional. Tudo era possível com o software livre – ou a partir de sua filosofia de compartilhamento e colaboração. “Criei, tive como”, dizia o mote de um dos grupos, fazendo uma reapropriação muito mais significativa da expressão Creative Commons.

Como já argumentei (no meu livro, Para Além das Máquinas de Adorável Graça), penso que o fundamento do movimento passa por uma luta contra processos de alienação, tanto técnica como do trabalho. Nasce da revolta contra processos de apropriação de meios de produção dos desenvolvedores: os códigos, que tinham uso comum e compartilhado, e naquele momento viravam propriedade dos patrões donos das empresas de software. Aquilo que os desenvolvedores materialmente produziam, o software, até aquele momento não era um produto em si. Eles eram pagos para manterem grandes mainframes em funcionamento, estes sim o produto em questão. É como se o músico fosse pago para tocar, o entretenimento fugaz fosse o objeto de pagamento. Mas o produto da criação não seria objeto de compra de uma gravadora, que poderia fazer com a composição o que quisesse, até impedir a execução. A criação, o conhecimento, para a filosofia do software livre são um bem comum, até porque ela é sempre coletiva, feita de empréstimos, cópias, substituições, reinvenções.

Daí a transversalidade, o poder de influenciar políticas tão diferentes. O fundamento da injustiça do sistema capitalista e colonial tem a ver com a capacidade de uns de controlarem e extraírem valor do trabalho (e os corpos) de outros. O software livre (e seus derivados, como o movimento pela cultura livre) ganhou protagonismo e influência porque sintetizou um horizonte utópico de lutas pautado por uma perspectiva de desalienação. Pode ser do artista, que teve como criar; pode ser do Estado, que teve como desenvolver sua autonomia tecnológica; pode ser do programador, que não teve que escrever todo o código a partir do zero; pode ser do incluído digital, que não foi adestrado no Word, mas aprendeu como funciona a lógica dos programas de escritório assim como a máquina que faz aqueles softwares funcionarem

E hoje?

Os problemas atuais são igualmente transversais. A desinformação, por exemplo, é uma questão tanto das comunicações como um problema econômico. Se a internet foi de uma utopia de acesso ao conhecimento e igualdade, para uma distopia infodêmica de assédio, perseguição e vício em telas, foi porque o modelo de negócios que hoje a sustenta subverteu os valores. As plataformas se sustentam tanto pela exploração do trabalho mais evidente (como o dos entregadores e motoristas), como pelo que é pouco reconhecido, como nossas atividades de produção de conteúdo e interações nas redes sociais. As bases de dados, hospedadas nos servidores das Big Techs, servem para treinar sistemas de inteligência artificial que serão utilizados para explorar as vulnerabilidades de consumidores e cidadãos.

Se as questões hoje se complexificaram, e a adoção de software livre não funciona mais como solução coringa, a questão da alienação continua presente. O mundo digital hoje se estrutura a partir de injustiças, assimetrias de poder e extração de valor que precisam ser reconhecidas para serem combatidas. Nem tudo se resolve com transparência, por exemplo, das plataformas e dos algoritmos. É um primeiro passo, mas é preciso caminhar no sentido de retomar o controle social das infra-estruturas.

O poder das plataformas precisa ser combatido tendo em vista o modelo de negócios que operam e o gigantismo que adquiriram. Não dá para uma poucas empresas internacionais serem proprietárias ocultas de tudo e fazerem todas as funções, de hospedagem de dados e conteúdos a recomendações de consumo; de publicidade programática a financiamento da produção cultural; de intermediação de serviços de transporte a gerenciamento urbano. Elas passaram de provedoras de serviços pontuais a agente mais poderoso para o planejamento de políticas públicas, por serem detentoras de uma imensidão de dados/informações. Ninguém sabe mais sobre a saúde física e mental, sobre a educação, sobre o deslocamento nas cidades, sobre as posições políticas, entre outros, do que as grandes plataformas.

Se desalienação é uma palavra muito complicada e hermética para ganhar tração pública, direitos digitais é uma conceito passivo e insuficiente. É preciso basear as lutas e as futuras políticas públicas na realidade de que processos de extração de conhecimento, trabalho e energia mental estão fundamentando injustiças digitais. As plataformas não são entidades neutras, que colocam pessoas em contato com pessoas e pessoas com conteúdos. Em Animal Spirits: a bestiary of the commons, Matteo Pasquinelli classifica essa relação como assimétrica, em que “a troca de energia entre organismos nunca é inteiramente igual, mas sempre envolve um parasita roubando energia e a produção excedente de outro organismo”.

A governança da Internet, ou do mundo digital, deve ter a busca por relações mais justas como perspectiva. Bem lá atrás, a “descoberta” da mais-valia foi importantíssima para que os trabalhadores conseguissem mínimas condições decentes de vida. É algo análogo ao que precisa orientar as políticas de agora. O problema é de natureza transversal e a desinformação é só um dos subprodutos poluentes que deve ser combatido. Esses processo extrativos, parasitários, implicam também tanto numa perda de agência dos cidadãos sobre si mesmos, como do Estado democrático, que vai se apequenando frente à plataforma que tudo sabe e tudo pode.

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