Desde que o Ministério do Trabalho divulgou o auto de infração que prevê uma multa de R$ 1 milhão para empresa Rapiddo, o papel dos motofretistas nas atividades da empresa passou a ser algo em disputa. A multa tem como base o trabalho de fiscalização da Superintendência Regional do Trabalho de São Paulo, onde fica o maior mercado da empresa que realiza entregas de pedidos feitas por aplicativo de celular e também atua em outras capitais como Fortaleza, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
O motofretista Adalberto Bispo, um dos 3 mil que trabalham para a Rapiddo, também tem contrato com dois restaurantes onde “faz ponto”. Em uma rua onde a calçada é dividida entre mesas desmontáveis e motofretistas, também se encontram outros entregadores que chegam a disputar o mesmo frete da Rapiddo com os colegas nos períodos de menor movimento. “Quando tem um pedido da Rapiddo, toca nos celulares de todos os motoboys que têm o aplicativo. Às vezes, a gente tá conversando, eu e mais dois outros que ficam por aqui também, e chama nos três [celulares]. O frete fica com quem conseguir alcançar o celular e pegar primeiro”, diz. Para Adalberto, a internet mais rápida e o modelo do celular fazem diferença nessa hora.
Adalberto trabalha há dois anos com a Rapiddo, mas diz que no último mês trabalhou para a empresa menos de 10 dias. O motofretista não sabia que a Rapiddo tinha sido multada pelo Ministério do Trabalho, e entende que cobrar que os entregadores cumpram um determinado horário “gerou uma espécie de vínculo trabalhista”. Adalberto afirma que a empresa começou oferecendo “incentivos” para que os entregadores ficassem à disposição em certos períodos e cumprissem um número mínimo de entregas como estratégia para ganhar mercado. Depois de um tempo, no entanto, os motofretistas passaram a receber por entrega e o “incentivo” foi cortado pela metade.
Para o Ministério do Trabalho, montar escala para entregadores continua sendo prática corrente da Rapiddo, pois a empresa estipula quantos motofretistas seriam necessários para cobrir a demanda em determinado bairro em certos horários e abre vagas de acordo com esse número. Os motofretistas que ocupam essas vagas precisam realizar um número mínimo de entregas dentro da região determinada pela empresa que, em geral, cobre bairros ricos. O auditor fiscal, Sergio Aoki, enfatiza que a diferença nos valores do motofrete entre uma empresa que trabalha com motofretistas contratados em regime CLT e a Rapiddo já esteve em R$26 reais durante essa semana. Além de não registrar os motofretistas como funcionários regulares, a Rapiddo também não admite motofretistas como prestadores serviço, ao afirmar que atua como intermediadora de negócios. Em vez de pagar imposto sobre o valor integral do frete, a Rapiddo paga sobre a taxa de intermediação, que corresponde a 20% do total.
No entanto, para o Ministério do Trabalho, admitir que os motofretistas prestam serviço diretamente para a empresa não é suficiente, uma vez que a fiscalização observou que há uma relação de subordinação. Essa relação se faz explícita tanto nas interações obrigatórias com o aplicativo – o motofretista precisa usar a interface em tempo real para indicar que retirou o pedido, chegou no destino, entregou a encomenda – quanto por uma nota que a empresa atribui ao motofretista segundo seus próprios critérios, que não pode ser acessada nem influenciada diretamente pelo destinatário da encomenda ou pelo remetente.
Além disso, a empresa envia mensagens para o motofretista com ameaças de dispensa. “Avisar as etapas da entrega é importante para que seus [sic] clientes saibam onde você está. Não fazer isso viola os termos e encerra a parceria”, diz uma das mensagens analisadas pela fiscalização. O sistema de notas atribuídas aos motofretistas pela Rapiddo vai de 0 a 5, “Não tem como abrir o código do aplicativo e dizer o que ele está fazendo, porque não temos a capacidade de fazer a análise do algoritmo. A empresa diz que é um sistema justo, que vai conectar o cara que está mais perto. Só pela Rapiddo determinar o critério que faz a pessoa ser conectada, só por isso, já determina uma relação de subordinação”, diz Sergio.
No ano passado, outra empresa do mesmo setor, a Loggi, foi autuada pelo Ministério do Trabalho em uma fiscalização semelhante a essa, que avaliou uma amostra de 675 motofretistas. Ao mesmo tempo que exige reiteradamente confirmações do cumprimento de etapas de entrega e estipula tempo de entrega, assim como traça a rota a ser percorrida pelo motofretista, a empresa não oferece garantias ao trabalhador. “Como o conhecimento sobre a rota, entre outros, já foi apropriado pela máquina, a capacidade humana que se acumula ao longo do tempo na cabeça de um trabalhador (conhecer determinada rota, seus melhores horários etc) se torna dispensável. Como são muitos trabalhadores disponíveis, a baixo custo, fica economicamente viável substituí-los”, diz Rafael Evangelista, pesquisador da Unicamp e Lavits.
Paulo*, motofretista da Rapiddo, considera que a empresa fez um aplicativo com muitas falhas. “A plataforma deles deixa muito motofretista insatisfeito, precificação, GPS, tempo de espera e etc, mas aceita o serviço quem quer. Infelizmente tem motoboy que se submete a fazer os serviços mesmo não compensando, mas cada um cada um… Cada um sabe onde seu calo aperta, não é verdade? Então, fica difícil.”
A Rapiddo também não possui ponto de apoio, ou seja, um local de atendimento onde os entregadores podem ficar. A legislação obriga empresas de motofrete como a Rapiddo a ter um ponto de atendimento, um lugar onde os motofretistas possam se abrigar, por exemplo, em um dia de chuva. “A Loggi e a Rapiddo dizem que são intermediadoras, e a gente discorda. São empresas que oferecem produtos e serviços, e também por conta disso se caracteriza a relação de emprego, que independe de você trabalhar 8 horas do dia de segunda a sexta”, diz Sergio.
Conforme apurou a fiscalização, o preço para o cliente da Rapiddo chega a variar de 1% até 40%, conforme a demanda. Adalberto, que trabalha na região central de São Paulo, conta que o valor pago pela empresa ao motofretista para fazer o mesmo trajeto já passou também por variações significativas repentinamente, embora seja respeitado um valor mínimo de base. Trabalhadores da concorrente Loggi, por sua vez, chegaram a fazer greve e protestaram nas ruas em 2015 contra cortes nos valores de seus pagamentos. “A Loggi tinha um preço mínimo de R$ 18 por frete, e caiu para R$ 12. Ela buscava novos mercados. Teve uma greve, e quem estava fazendo greve foi sendo cortado. Todo mundo voltou para a plataforma. Mas, ainda assim, eles tinham uma reserva de trabalhadores que assumiram na greve. Todo mundo teve que trabalhar a R$ 12, mas foi muito a contragosto”, conta Sergio, que também foi auditor na fiscalização da concorrente da Rapiddo.
Para Rafael, trabalhadores estressados, precarizados e que se sentem descartáveis acabam tendo um efeito ruim para toda a sociedade. “Quando a empresa mascara uma relação de contratação de trabalho isso tem efeitos negativos também sobre as maneiras tradicionais de negociação coletiva com dos trabalhadores. O sindicato tradicional não consegue alcançar esse trabalhador, que perde seu poder de barganha, que se deve muito à ação coletiva. Soma-se a isso o desemprego, que joga no mercado uma grande quantidade de mão de obra desesperada e disposta a correr riscos e receber pouco por algum tipo de trabalho.”
A Rapiddo é uma empresa do Grupo Movile, que também é proprietário do iFood e do Spoon Rocket. Em 2017, o Grupo Movile anunciou o recebimento de um aporte de US$ 82 milhões. O aplicativo da Rapiddo, em sua versão para motofretistas, possui interoperabilidade com o app do iFood. Na versão do cliente, no entanto, o iFood e o Spoon Rocket são voltados para contratação do serviço de entrega de comida, embora a Rapiddo ofereça vantagens para empresas que utilizam mais de um aplicativo do Grupo Movile. A versão para clientes do aplicativo da Rapiddo tem mais de 1 milhão de downloads na Google Play Store. Sua assessoria de imprensa, quando questionada sobre a multa, respondeu apenas que “o Rappido Entregas afirma que tomará todas as medidas cabíveis no processo”.