Rodrigo Firmino, professor do Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana e do curso de Arquitetura e Urbanismo da PUCPR e pesquisador membro da Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits), participou, na última quarta-feira (27), do evento IAU.USP em casa – ciclo de palestras, organizado pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da Universidade de São Paulo (USP), com a apresentação intitulada “Uma epistemologia digital do urbano… territórios de exceção”. A discussão também contou com a contribuição do professor Ruy Sardinha, do próprio IAU, como debatedor.
Firmino abordou temas como controle, territórios de exceção, resistência pelo digital, dados e narrativas da margem. Ao iniciar suas colocações, o pesquisador afirmou que é preciso compreender a ideia de territórios de exceção situada no momento histórico vivenciado no Brasil.
“Nós nunca fomos tão desiguais, nunca fomos tão injustos, mesmo com um breve respiro que tivemos ao longo de 14 ou 15 anos de um governo que tentou fazer políticas de mais justiça social. Estamos em um país comandado pelo pior grupo de pessoas que uma democracia poderia permitir ascender ao poder”, ponderou ele. “Nós vivemos claramente a implementação de um projeto de eliminação étnica-social”, completou.
Ao descrever seu percurso de pesquisas nos últimos anos, Firmino afirmou estar interessado em entender os processos pelos quais determinadas tecnologias são apropriadas, como partes de arranjos sociotécnicos que definem a vida em sociedade e afetam a vivência no espaço. Nesse sentido, elucida, o território é paradigmático na constituição de dispositivos de controle e resistência.
Uma de suas publicações sobre o tema, o texto “Securitização, vigilância e territorialização em espaços públicos na cidade neoliberal”, compõe o livro Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem, publicado em 2018 pela editora Boitempo, organizado por Fernanda Bruno, Bruno Cardoso, Marta Kanashiro, Luciana Guilhon e Lucas Melgaço. A coletânea de textos contempla os resultados das pesquisas e dos debates promovidos pela Lavits nos últimos anos.
No texto, Firmino destaca três níveis de compreensão sobre as relações entre os temas mencionados no título. O primeiro diz respeito às condições do urbano mediado por tecnologias digitais. Em outro nível aborda a constituição de territórios urbanos a partir de aparatos tecnológicos e legais, que levam a um maior controle de fixos e fluxos nas cidades, resultando em um aumento de processos de segregação e discriminação. Por fim, fala de uma possível desintegração de natureza coletiva do espaço público, ocasionada pelo avanço da privatização e da lógica privatista.
Sobre a noção de arranjos sociotécnicos, Firmino pontua a necessidade de uma compreensão da imbricação das tecnologias digitais e uma variedade de transações e relações humanas da contemporaneidade. “Nem preciso dizer isso diante do momento que vivemos e da dependência desse tipo de interação. O nosso modo de vida é, de vários modos, dependente de dados, sistemas e algoritmos para funcionar”, afirma.
“Há essa dependência cada vez maior, cada vez mais evidente. Nós mesmos nos tornamos uma combinação de números e códigos, a partir da mediação pela identificação. Essas informações são determinantes em várias situações de inclusão ou exclusão de acesso a oportunidades na cidade, por exemplo”, explica o pesquisador.
De acordo com ele, esse processo pode ser exemplificado pela dificuldade que um grande número de pessoas têm enfrentado, no contexto da pandemia de covid-19, para ter acesso ao auxílio emergencial de R$ 600, pago pelos governo federal. A mediação pelo código (que neste caso nos representa nas relações financeiras com o Estado) fica clara quando o cadastro regularizado do CPF, por exemplo, se sobrepõe às situações materiais (e corpóreas) de precariedade e sobrevivência, como condição para o recebimento do auxílio.
Na segunda parte de sua fala, Firmino se dedicou ao que chamou de um deslocamento de seu interesse para outros objetos de pesquisa, com foco nas possibilidades de criação e reorganização de arranjos sociotécnicos por uma valorização do olhar da margem, na resistência. Destacou sua pesquisa em parceria com Andres Luque-Ayala (Durham University), e financiada pela British Academy, sobre ativismo digital e geração cidadã de dados em favelas e periferias.
Para explicar o contexto da atual pesquisa, ele descreveu o resultado de um levantamento para mapear casos de hackers cívicos no Brasil, que apontaram para dois tipos principais de atuação: “o digital como forma de ativismo” (intervenções movidas a dados); e o “encontro do digital com formas pré-existentes de ativismo” (intervenções situadas), a partir da convergência entre lutas históricas por direitos e infraestruturas urbanas e o suporte de tecnologias digitais e o trabalho com dados. Este segundo tipo (intervenções situadas) aproximou a pesquisa de um coletivo de jovens do Complexo da Maré (Rio de Janeiro), chamado data_labe, que veio a se tornar estudo de caso e parceiro de pesquisa-ação no território.
Há uma conjunção de fatores interessantes presentes na essência deste grupo, segundo Firmino, que representam um arranjo sociotécnico capaz de reunir diversas pautas temáticas relacionadas à gestão das cidades e ao território a partir do uso de dados, tecnologias digitais, ativismo de mobilização, conexões em rede com outras organizações, e construção de narrativas contra-hegemônicas. Além do próprio data_labe, este arranjo sociotécnico de resistência, é simbolizado por uma das iniciativas de maior visibilidade do coletivo, CocôZap, um projeto de mapeamento, incidência e participação cidadã sobre saneamento básico no Complexo da Maré a partir de queixas dos moradores por meio de um canal no WhatsApp.
“A relevância de se entender o CocôZap está nas relações entre dados e narrativas, e a apropriação de fluxos ecológicos urbanos (saneamento) para a compreensão de formas de ativismo político e um reposicionamento epistemológico das questões urbanas no corpo e no território da margem”, explica Firmino.
Dados e narrativas territorializadas em tempos de pandemia global
Os temas abordados pelo pesquisador Rodrigo Firmino no debate organizado pelo IAU estão relacionados com os que foram apresentados no episódio #7 da série Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância, escrito por Firmino, Debora Pio (doutoranda do MediaLab/UFRJ) e Gilberto Vieira (coordenador do data_labe). No texto, eles apresentam resistências e alternativas construídas nos territórios, frente aos inúmeros problemas e desigualdades acirrados pela pandemia.
‘A pandemia extrapolou o que muita gente já sabia: as desigualdades históricas que o Brasil atravessa desde sua “fundação” só ficaram mais evidentes em um contexto excepcional. Para os moradores de favelas, que sempre tiveram que lutar para garantir o mínimo, não foi diferente’, diz a publicação.
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