“Crie rimas sobre as ferramentas do Google for Education e torne-se um Rap-baixador no Brasil”. É com esta chamada que o Google se dirige a professores, sugerindo que eles incentivem seus alunos a fazer rimas sobre as ferramentas do Google for Education e também que gravem suas manifestações. A proposta, entretanto, não explicita como e nem para quê os vídeos serão utilizados. Segundo especialistas, a falta de transparência e a ausência de informações detalhadas é exemplar do grau de liberdade com que as empresas de tecnologia têm atuado nas escolas brasileiras. No horizonte da empresa estaria a coleta de dados dos usuários norteada pelo capitalismo de vigilância.
As poucas informações que constam no e-mail enviado aos professores dizem respeito às orientações de envio das gravações, bem como a divulgação nas redes sociais. A empresa sugere os temas: inovação escolar, a importância da tecnologia e da alfabetização digital e experiências dos alunos utilizando as ferramentas do Google e Google for Education. “Mas é importante saber que não há limites: queremos suas músicas, ideias, danças, mensagens mais interessantes e originais!”, afirma.
Ainda de acordo com a comunicação, a escola cujos estudantes fizerem as rimas mais criativas será convidada para participar de um evento em Brasília, no dia 11 de junho, intitulado “Inovar para Brasil: Construindo a educação do futuro em Brasília”. Segundo o chamado, o evento irá reunir líderes educacionais do país. No entanto, uma pesquisa no próprio buscador do Google não apresenta resultados sobre este evento.
Para Jamila Venturini, que é membra da Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits) e do coletivo Intervozes e autora do livro Recursos Educacionais Abertos no Brasil: o campo, os recursos e sua apropriação em sala de aula?, a falta de transparência na proposta do Google é uma amostra de como as corporações atuam dentro das escolas no Brasil. “Elas vão atuar dentro da escola do mesmo modo que atuam fora, ou seja, orientadas por interesses comerciais. São corporações ligadas ao Norte Global, que não têm nenhuma relação com as políticas educacionais brasileiras e não compartilham as preocupações de proteção à infância e a adolescência no Brasil”, pondera.
A pesquisadora também aponta para uma “promiscuidade” na relação entre capital e Estado no que diz respeito à ligação entre as corporações e a educação no Brasil. “Além de terem a possibilidade de acumular dados que não sabemos como serão utilizados, eles estão sugerindo que os usuários façam propaganda de forma voluntária”, analisa. “É como se eles estivessem convocando uma massa de estudantes e professores para fazer propaganda para eles, gratuitamente. Isso também diz muito sobre o funcionamento dessas empresas, que acabam construindo seu valor a partir do trabalho não-remunerado dos próprios usuários”, completa ela.
Para Jamila, além de alimentar os bancos de dados das empresas, tornando-os mais acurados e precisos na formação de perfis de consumo (o que resulta em um aumento do valor de mercado), as parcerias entre corporações e educação configuram uma forma de expansão daquilo que é chamado de capitalismo de vigilância.
Jamila também destaca a importância de compreender o contexto de ascensão dos acordos entre grandes empresas e escolas. “No início do século XXI, com a expansão (desigual) das TICs e da Internet, novos agentes para além da academia passaram a pautar como deveria ocorrer a introdução dessas tecnologias no espaço escolar e com quais objetivos. O Banco Mundial adota a narrativa de que é necessário preparar a força de trabalho (dos países do Sul) para a ‘sociedade do conhecimento’ e cria-se uma oposição entre o que seria a ‘aprendizagem tradicional’ e a ‘aprendizagem permanente’”.
De acordo com ela, essas narrativas vão ser, posteriormente, base para o impulsionamento de propostas neoliberais para reformar a educação, em diversos países da América Latina. A pesquisadora acredita que a despolitização e instrumentalização das tecnologias abriram espaços para que os interesses comerciais permeassem em grande parte os projetos de uso educacional das Tecnologias da informação e comunicação (TICs).
A relação entre o Google e as escolas está circunscrita em uma série de acordos que a empresa tem feito com as secretarias de educação de estados e municípios. O governo de São Paulo foi um dos primeiros a contratar o Google e suas aplicações educacionais, em 2013. Em 2015, o mesmo aconteceu em Rio Grande do Sul. Em 2017, foi a vez do Pará. Esses acordos pavimentam a entrada dos alunos nas aplicações Google, com todas as questões de privacidade e uso de dados derivadas. A Lavits já vem há algum tempo acompanhando esses acordos.
A Lavits questionou o Google sobre para quê e como serão utilizados os vídeos que os professores enviarem, qual a finalidade deste chamado, se os participantes do “concurso” têm informações sobre as condições em que os vídeos serão apresentados, qual a idade dos alunos que serão filmados e se a empresa orienta os professores a pedir autorização dos pais desses alunos. Além disso, a rede solicitou informações sobre o evento “Construindo a educação do futuro em Brasília” e sobre quem são “os principais líderes educacionais do Brasil” mencionados na mensagem. Até o fechamento desta reportagem, as perguntas não haviam sido respondidas.
Outros contextos, questões semelhantes
O serviço educacional do Google foi lançado em 2007 e atualmente conta com mais de 70 milhões de usuários, entre alunos, professores e funcionários de instituições de educação escolar básica, técnica e de ensino superior, privadas ou públicas, em cerca de 190 países. No artigo Infraestruturas, Economia e Política Informacional: o Caso do Google Suite For Education,Henrique Zoqui Martins Parra (membro da Lavits), Leonardo Cruz (membro da Lavits), Tel Amiel e Jorge Machado indicam possíveis efeitos sociopolíticos da adoção de infraestruturas e serviços de tecnologias de comunicação corporativos no ambiente universitário no Brasil.
Para os pesquisadores, as escolhas políticas/tecnológicas feitas por instituições públicas de ensino devem ser refletidas criticamente, já que seus efeitos dão forma ao capitalismo de vigilância. “Os modernos telefones celulares possuem diversos sensores que mapeiam nosso ambiente e geram informações que são prontamente utilizadas pelo mercado para estabelecer padrões sobre nossos gostos, comportamentos, deslocamentos e hábitos de compra – e, se possível, predizê-los e controlá-los. Portanto, mais do que monitorar, essas informações dão amplos subsídios para que nosso comportamento – econômico, político e social – seja influenciado com diferentes fins”, alertam.
O artigo aponta para uma “naturalização” das escolhas técnicas e políticas. Quando uma plataforma/serviço passa a ser utilizada em massa, criando uma onda de adoção em rede, há uma construção “invisível” de uma infraestrutura, que possui implicações que não estão claras para o conjunto dos agrupamentos e da sociedade, de maneira geral. As opções ganham ares de “inevitabilidade”.
Para Parra, Cruz, Amiel e Machado, o estabelecimento de uma infraestrutura está apoiado em um processo que implica, ao mesmo tempo, em efeitos imediatos e no ocultamento permanente de alternativas. “Há dificuldade de apreender como as escolhas individuais participam da criação de um grande arranjo sociotécnico e os efeitos da adoção dessas tecnologias são raramente problematizados, numa aparente não-escolha, algo ‘natural’ ou uma ‘realidade’”, afirmam.
“Quanto vale o gratuito?” é um importante questionamento apresentado no texto, porque a gratuidade é um argumento bastante utilizado para a adoção de serviços/plataformas de grandes corporações como o Google e a Microsoft. As possíveis respostas incluem, de uma perspectiva crítica, refletir sobre o fato de que “(…) a principal fonte de renda da empresa é o marketing customizado para o usuário. Graças à enorme capacidade de coletar, agregar e analisar informações sobre padrões de busca, de navegação, das formas de visualização, deslocamentos, enfim, tudo que fazemos quando estamos conectados através da plataforma Google ou com os sistemas Android em smartphones, a capacidade de coleta de dados torna-se gigantesca”, como apontam os pesquisadores.
Estes dados vão servir para a criação de perfis de consumos, que são conjuntos de informações que interessam ao mercado. “Em resumo, através da análise do que fazemos online (e também offline) o Google, como outras empresas (Facebook), vende publicidade sob diversas formas para o perfil identificado dos usuários. Mas Google também faz fortuna de outras maneiras: venda de serviços pagos (aqueles gratuitos também são oferecidos comercialmente com algumas diferenças), venda de dados para outras empresas, serviços de mapas, análise de dados, dentre outros serviços”, completam eles.
“Esse conjunto de acordos reflete a vulnerabilidade especial dos países do Sul frente à expansão do capitalismo de vigilância”, afirma outro membro da Lavits, o antropólogo Rafael Evangelista, do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp. Segundo ele, os gestores públicos dos países mais pobres e em crise são pressionados a reduzirem os investimentos em educação num contexto de reformas neoliberalizantes. Assim, abdicariam de fortalecer infra-estruturas informacionais próprias e fazer investimentos em tecnologias em favor de soluções prontas e aparentemente gratuitas, o que só reforça a assimetria de poder entre o Sul e o Norte Global. Evangelista é autor de uma resenha do livro The Age of Surveillance Capitalism (A Era do Capitalismo de Vigilância), de Shoshana Zuboff, que explora o conceito de capitalismo de vigilância, e que foi publicada na revista Surveillance & Society.
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