Por Fernanda Bruno*
Quando a pandemia do novo coronavírus foi decretada e diferentes países começaram a implementar medidas de quarentena, muitos de nós lembraram imediatamente das lições de Michel Foucault sobre o nascimento da biopolítica. Por mais conhecidas que sejam essas lições, vale recordá-las brevemente, mas para ir além delas. Retomo dois modelos que Foucault trabalha em diferentes textos. Eles são especialmente úteis para entender as conexões históricas entre as políticas sanitárias e os aparatos de vigilância dos corpos e de seus movimentos cotidianos, pois são modelos de controle de epidemias. Diz Foucault: “Parece-me que, no fundo, no que diz respeito ao controle dos indivíduos, o Ocidente só teve dois grandes modelos: um é o da exclusão do leproso; o outro é o modelo da inclusão do pestífero.” (Foucault 2002, p. 55). Adiciono a esses modelos um terceiro, de modo ainda bastante provisório e experimental, que seria a hiperconexão do infectado pelo novo coronavírus.
Fundamentalmente, o que Foucault ressalta no modelo da lepra é o sonho de purificação alimentado por um tipo de poder que opera sobretudo por exclusão do indivíduo. O combate à lepra consiste na criação de um fora, além dos muros e dos limites da comunidade, para onde são conduzidos os indivíduos contaminados. Esse espaço exterior é o espaço confuso, misturado e terrível da morte. Ele não tem outra função além de garantir, por expurgo e distância, a purificação de um outro espaço, que é o da comunidade. Trata-se, portanto, de um poder que conduz à morte, agindo por exclusão e por distância, criando um exterior.
Leprosário de Saint Giles, Londres (1117)
O controle da peste alimenta, segundo Foucault, um outro sonho: não o de purificação pela criação de um fora, mas o de ordenação pela a criação de um interior continuamente vigiado e controlado. Quando a peste é declarada numa cidade, decreta-se a quarentena e o fechamento das fronteiras, de modo a se exercer sobre esse território uma análise contínua e um policiamento minucioso, com registros, contagens, controles de cada um, numa cadeia de vigilâncias hierarquizadas que chega ao nível individual – bairros, ruas, casas, ao ponto de cada habitante ser controlado por chamadas diárias, devendo apresentar-se nas janelas. Esse poder age por inclusão num espaço fechado e controlado, e não por exclusão. Ele age por proximidades sutis (e não por distância) e estabelece presenças controladas (e não ausências e banimentos) para gerir a vida e maximizar a saúde, em vez de conduzir à morte.
Qual seria o sonho político dos modelos de controle que se desenham na atual pandemia do novo coronavírus? A pergunta exige uma resposta muito mais extensa e complexa do que aquela que sou capaz de ensaiar aqui. Limito-me a tratar de uma pequena parte do problema através desse personagem, que é o infectado hiperconectado. Exploro brevemente três camadas desse controle que opera sobretudo por hiperconexão, mas elas não são, certamente, as únicas em jogo.
A primeira camada consiste na escala global dessa pandemia. Juntamente com a própria propagação do vírus, propagam-se em tempo quase real representações, dados, grafos, relatórios, projeções e simulações epidemiológicas que por sua vez influem na curva de contágio, nas respostas que os governos locais dão à pandemia, nas taxas de adesão às medidas de isolamento, no comportamento dos indivíduos, nos medos e angústias de cada um etc. Historicamente, a experiência concreta e local da pandemia não coincidia com a sua apreensão em escala global. Ainda não sabemos os efeitos concretos – locais e globais – dessa recursividade, seja sobre a própria pandemia, seja sobre nossa experiência. Sabemos, apenas, que tanto o contágio quanto o controle desta pandemia passam pela hiperconexão material e informacional dessa nova figura do infectado, que é objeto de uma vigilância epidemiológica e digital que opera em tempo quase real. Sabemos também que esse personagem global é simultaneamente uma imagem que de algum modo nos orienta e nos conforta, pois oferece um padrão que ameniza em parte a angústia diante do desconhecimento do vírus e seus efeitos.
Mas ele também nos inquieta, pois é uma representação abstrata com uma pretensa universalidade que não cabe na experiência material e situada da pandemia. Protocolos globais simples como lavar as mãos com água e sabão, usar máscaras e seguir medidas de distanciamento social são completamente inviáveis para uma parte expressiva da população no Brasil, por exemplo. Se a atual pandemia do novo coronavírus passa por essa hiperconexão viral-humana-algorítmica em escala global, ela também ancora-se em situações concretas e particulares, com “fricções locais” (para usar a expressão da antropóloga Anna Tsing) que muitas vezes ficam fora do campo de visibilidade e planejamento da saúde pública e coletiva.
A segunda camada de controle opera mais diretamente sobre os deslocamentos individuais. Por um lado, o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus envolve medidas muito próximas ao esquema da peste. Quarentena, isolamento domiciliar e distanciamento social, controle estrito das fronteiras e espaços. A diferença crucial, contudo, é a hiperconexão dos corpos e subjetividades. Aqui reside a encruzilhada a explorar.
Por toda parte, países implementam uma série de dispositivos, a maior parte deles via aplicativos de smartphones, voltados para o rastreamento de corpos e dados, buscando monitorar deslocamentos, controlar acessos, identificar sintomas, rastrear contatos e contágios, certificar imunidade, calcular riscos de infecção, níveis de adesão à quarentena etc. Os aplicativos de contact-tracing, em especial, portam a questionável promessa de alertar cada um quanto ao risco de infecção, ao detectar, de modo automatizado, pessoas infectadas num raio de aproximadamente dois metros de proximidade de cada corpo. Estendendo ao controle de uma pandemia princípios similares àqueles já presentes em sistemas de recomendação, profiling, personalização e targeted advertising, esses aplicativos anunciam uma maior individualização do controle, operando seletivamente sobre saudáveis, portadores e doentes e ofertando graus modulados de mobilidade. Se o quadriculamento do espaço da cidade empesteada fornece o esquema do recorte analítico do biopoder nas sociedades disciplinares, o atual rastreamento do infectado e suas interações sociais, deslocamentos e conexões, ressoa e amplifica o já presente esquema de controle e vigilância que opera com detecção algorítmica de padrões de vida, predição de riscos, interesses e comportamentos futuros. O infectado em constante hiperconexão é o mais novo personagem de um ecossistema sociotécnico que já vem treinando máquinas a reconhecer padrões de vida, a analisar e prever condutas em largas escalas populacionais.
A terceira e última camada é a morada do infectado (daqueles que têm morada e podem manter-se nela durante a pandemia). Quando imaginávamos que a cultura digital já havia movido o suficiente as fronteiras entre o público e o privado, a pandemia em tempos de hiperconexão digital transforma o interior da casa burguesa num espaço multifuncional que concentra o escritório, a escola, a academia, espaços de lazer, de cultura, de luto etc. Acelerando, mais uma vez, um processo que já estava em curso, não se trata apenas de uma superposição espacial, amontoando todos os espaços no interior da casa burguesa. Numa ilustração quase caricatural da temporalidade 24/7 descrita por Jonathan Crary, os intervalos entre distintas atividades são suprimidos, instaurando um estranho ritmo de continuidade justo num momento de grande interrupção instaurado pela pandemia. Nesse mesmo movimento, reinventa-se o espaço doméstico, e com ele, modos de trabalhar, de aprender e ensinar, de estar junto, de cuidar de si e do outro, de sofrer e de alegrar-se.
Acelerou-se, portanto, a capacidade coletiva de inventar novas formas de tecer o social e o mundo num contexto de distanciamento social. Essa inventividade pode ser mais uma vez expropriada pelos grandes atores do capitalismo de vigilância e do extrativismo de dados imanentes às plataformas digitais, ampliando a produção de conhecimento sobre nossos modos de vida e a capacidade de influenciar nossos comportamentos. Mas talvez, o estado de urgência de uma pandemia seja uma oportunidade para tomar a sério a ideia de uma vida mediada por tecnologias digitais e avançarmos no debate de construir alianças humano-maquínicas capazes de criar um ecossistema digital menos asfixiante.
O infectado hiperconectado pode ser o personagem ideal do capitalismo de vigilância e do extrativismo de dados. Mas ele também pode ser o personagem que encarna a urgência vital das conexões digitais, e assim mobiliza uma outra imaginação sociotécnica e um cuidado coletivo com o ecossistema digital onde agora radicalmente vivemos.
* Fernanda Bruno é coordenadora do MediaLab.UFRJ e professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura e do Instituto de Psicologia da UFRJ.
** Para mais informações sobre essa temática, recomendamos o painel “Digital Surveillance and Hyperconnected Pandemic” do evento “2020 Loathing… Digital tensions, fragmentations and polarisations – in times of pandemic”, realizado em 26 de Junho de 2020, virtualmente pela universidade britânica King’s College London, com a participação dos pesquisadores da Lavits Fernanda Bruno e Rodrigo Firmino . O painel, gravado e em booklet, pode ser acessado neste link.
Referências
CRARY, Jonathan. 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Contraponto, 2014.
ENGELMANN, Lukas. #COVID19: The Spectacle of Real-Time Surveillance. Somatosphere, 2020. Disponível em: <http://somatosphere.net/forumpost/covid19-spectacle-surveillance/>
FOUCAULT, Michel. Aula de 15 de janeiro, 1975. Os Anormais. Curso no Collège de France, 1974-1975. Martins Fontes, 2002.
SEGADA, Jean. Covid-19: scales of pandemics and scales of anthropology. Somatosphere, 2020. Disponível em: <http://somatosphere.net/2020/covid-19-scales-of-pandemics-and-scales-of-anthropology.html/ >
TSING, A.. Friction: An Ethnography of Global Connection. Princeton University Press, 2011. Friction | Princeton University Press
WEIZMAN, Eyal. Surveilling the Virus. Março, 2020. Disponível em: <https://lareviewofbooks.org/article/quarantine-files-thinkers-self-isolation/#_ftn24 >
Série Lavits_Covid19
A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.