#20: Educação aberta, plataformas e capitalismo de vigilância: a pandemia como encruzilhada

Por Tel Amiel, Ewout ter Haar, Miguel Said Vieira, Tiago C. Soares*

 

Em julho de 1945, a revista The Atlantic publicou um ensaio chamado “As We May Think” (BUSH, 1945). Seu autor, Vannevar Bush, era, então, o Diretor do Departamento de Desenvolvimento e Pesquisa do governo norte-americano. Nesse cargo, tinha sido o responsável pela implementação e funcionamento do esforço tecnocientífico engendrado pelos EUA na escalada da Segunda Guerra Mundial – uma corrida que, em sua luta para neutralizar o poderio científico e militar da frente nazifascista encabeçada pelos países do Eixo, havia forçado o universo de pesquisa norte-americano a uma profunda reestruturação de suas redes de produção do conhecimento (TURNER, 2010).

Passada a Segunda Guerra Mundial, com a vitória dos Aliados sobre as forças de Hitler, Bush se viu frente a um novo, imediato, desafio: como redimensionar e reconfigurar, em tempos de paz, o aparato sociotécnico mobilizado pela guerra. Para além de motivos utilitários, essa nova questão trazia, latentes, os horrores do conflito que há pouco via seu fim. Como galvanizar de novo um mundo, livre das ameaças do fascismo, alicerçado sobre o respeito à liberdade e à emancipação pelo conhecimento? Numa sociedade que começava a ser reconstruída, como colocar em movimento uma nova estrutura de circulação e processamento da informação e da ciência?

Em seu ensaio, num longo salto para o debate da época, Bush propõe um radical modelo de catalogação, armazenamento e acesso à informação. Nesse projeto, a educação do futuro se organizaria em torno de terminais que viriam a acessar grandes repositórios do conhecimento humano, tornando públicas e reordenáveis, em níveis diversos de recuperação, obras e dados em plataformas múltiplas – impresso, áudio e filme. À sua proposta de uma nova biblioteca integrada – e, potencialmente, universal –, Bush deu o nome de Memex.

A noção de acesso e reorganização do conhecimento apresentada na ideia do Memex, com sua aplicação total da técnica a serviço da expansão do poder de elaboração e construção do conhecimento humano, pode ser encontrada, em maior ou menor grau, como subjacente ao que, universalmente, a Internet veio a mobilizar no imaginário público como ideia e como projeto.

Nas décadas que vieram a construir a segunda metade do XX, o acesso à informação, e às ferramentas de construção do conhecimento, cristalizaram-se como elemento central à ideia de desenvolvimento e emancipação cidadã. Em torno dessa proposta, se dará a emergência e o desenvolvimento das plataformas computacionais, e de suas variadas arquiteturas de uso e compartilhamento (dos grandes mainframes aos terminais individuais, conectados em rede e simbolizados na Internet). Dessas tecnologias, emerge um novo universo de possibilidades e dinâmicas, em camadas diversas do domínio da técnica e da elaboração intelectual. Em noções como o Software Livre, o Open Source, o Copyleft e o Remix, a reelaboração do conhecimento é retroalimentada pelo domínio de novas ferramentas técnicas tornadas disponíveis pelos avanços da computação. Uma percepção que se condensa, no debate público, em meio à emergência e expansão da Internet comercial, com a expansão da World Wide Web, na década de 1990 e na primeira década do século XXI.

A centralidade da Internet na circulação do conhecimento e na transformação de práticas pedagógicas é teorizada em autores que viriam a se tornar canônicos de uma leitura otimista sobre esse cenário, como Castells (2011), Levy (2007, 2010) e Negroponte (1995), entre outros. Um ethos que, em iniciativas como a W3C [1], viria a se institucionalizar, articulando setores da sociedade civil na guarda e sistematização dos protocolos de uso e das camadas diversas de arquitetura da rede.

É durante a expansão da malha da web e em meio a esse movimento de institucionalização de novos padrões, melhores práticas e objetivos conjuntos (que impactariam profundamente as práticas e plataformas de produção e circulação do conhecimento) que, em 2001, o Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos EUA, toma a decisão de tornar abertos a partir da plataforma oferecida pela rede, seus conteúdos de ensino (TAYLOR, 2007). A tendência institucional colocada em movimento pelo MIT levou à galvanização de atores envolvidos em práticas educacionais ao redor do mundo. Numa articulação promovida pela UNESCO (UNESCO, 2002), um fórum de 2002 sobre recursos educacionais cunhou-se a ideia que, por uma confluência de fatores, ficou conhecida como Recursos Educacionais Abertos (REA):

 

“Recursos Educacionais Abertos (REA) são materiais de aprendizagem, ensino e pesquisa em qualquer formato e meio que residam em domínio público ou estejam sob direitos autorais que tenham sido liberados sob uma licença aberta, que permitam acesso sem custo, reutilização, realocação, adaptação e redistribuição por outros.” (UNESCO, 2019).

 

O fenômeno dos REA se juntou a outras manifestações pela liberação e o acesso livre a informação, a cultura e ao conhecimento. Plataformas como Wikipedia e YouTube tornaram-se sinônimo de construção compartilhada do conhecimento e democratização do acesso a artefatos educacionais. O Creative Commons (CC), conjunto de licenças livres que rapidamente se tornaram o padrão global para a cultura livre, e quase sinônimo com ‘abertura’, é o modelo utilizado por essas ferramentas num movimento convergente entre expansão de plataformas e crescimento de iniciativas de licenciamento aberto.

No Brasil, o setor público, em níveis federal, estadual, municipal e institucional foi mobilizado para viabilizar políticas públicas em REA, com alguns sucessos.[2] De fato, em levantamento recente (AMIEL; SOARES, 2016), o Estado parece ser, ao menos na América Latina, o principal catalisador na construção de projetos, políticas e iniciativas para disponibilização de recursos educacionais.

Da cultura à educação, é difícil encontrar agentes cívicos que não defendam a ideia do ‘aberto’. Esse universo traz, porém, uma intensa disputa sobre seus sentidos, práticas, e protagonistas – um tensionamento que, em meio às rupturas do fluxo da vida impostas pela pandemia de Covid-19, parece se delinear, se aprofundando de modo acelerado. Há uma defesa de certa flexibilização do ensino[3] frente à pandemia, que se consolidou em torno do nome Educação Remota Emergencial (ERE). As formas de flexibilização também trouxeram consigo um renovado interesse em torno da educação aberta. Até onde, portanto, este movimento em torno do aberto se desenha como solução em si mesmo? Quais as possíveis aberturas suas múltiplas possibilidades de implementação, debate, e elaboração apresentam? E até que ponto esses métodos e ferramentas podem servir como instrumentos de libertação, ou, por outro lado, podem condicionar as práticas a dinâmicas e de controle e de capitalismo de vigilância, contrárias às realidades de elaboração em ensino desenhadas comunidade a comunidade?

 

A batalha do aberto

Em um livro de 2015, Martin Weller sugere que é possível enxergar uma ‘batalha’ pelo significado da palavra aberto no contexto de cultura mediada pelas tecnologias digitais e da internet (WELLER, 2015). Na medida que uma certa interpretação da expressão ganha força, atores com outros interesses tentam moldar a interpretação do conceito para que se curve em direção às suas finalidades. Como exemplo disso, cita o conceito de openwashing:[4] Aqui, faz- uso da expressão ‘aberto’, geralmente por atores do mercado e os que trabalham com fins lucrativos, mas sem aderir às práticas tipicamente colaborativas e transparentes associadas a essa expressão. Aqui podem ser incluídos casos de empresas de cursos ‘abertos’ que não permitem o uso verdadeiramente livre de seus recursos; ou empresas que publicam dados ‘abertos’ que podem apenas ser visualizados online, e nada mais.

Esses tensionamentos, com a emergência da pandemia de Covid-19, em 2020, parecem se impor como vetores a profundas, aceleradas transformações sobre os sentidos da abertura e suas manifestações. As restrições à circulação de corpos e às práticas comunitárias exigidas no controle à pandemia teve profundos impactos nas comunidades de educação, com a deslocalização do território da escola, e a transição da experiência da sala de aula para o território virtual da internet. A emergência das práticas educacionais mediadas por tecnologias digitais nos períodos de quarentena parece delinear uma queda de braço – uma disputa pelas comunidades de ensino, e pela infraestrutura tecnológica da educação pública e privada. Um cenário em que recursos e práticas educacionais abertas, que poderiam ser absorvidos e articulados às estruturas e agentes dos processos da educação, parecem se equilibrar entre a noção de “oportunidade” econômica e “teste de fogo” para suas potencialidades.

Tecnologias, especialmente tecnologias complexas como as que mediam a criação e disseminação de produtos culturais, não são meras ferramentas que podem ser usadas para o bem ou para o mal. Elas têm estrutura, facilitam determinados usos e desfavorecem outros. Do mesmo modo que a ideia de governo aberto pode beneficiar e ser utilizada para avançar modelos econômicos e políticos distintos, a ideia de ‘aberto’ na educação, e em particular o uso de licenças abertas, pode ser vista como uma técnica jurídica e precisamos analisar criticamente os pressupostos, muitas vezes tácitos, que regem o uso desta tecnologia.

Que os riscos não são meramente teóricos, é exemplificado com alguns casos em áreas que inspiraram o movimento REA, como acesso aberto, código aberto ou cultura livre em geral. O projeto Wikipédia é o exemplo canônico de como a internet possibilita processos colaborativos em rede, e seu sucesso é inegável em termos do volume de sua produção, embora apresente controvérsias quanto à qualidade do material produzido. Entretanto, investigações apontam que o projeto tem reconhecidos problemas com a falta de diversidade dos seus contribuidores, e, por tabela, do seu conteúdo, com viés para o que interessa a um perfil muito específico: homens jovens e brancos (SIMONITE, 2013). A mesma falta de diversidade é apontada entre contribuidores de projetos de software aberto, onde essa tendência aparenta ser mais intensa e presente do que no restante da área de tecnologia da informação (TI).[5] Nestes projetos, a igualdade das oportunidades de participação não resolve, nem somente reflete, mas positivamente amplia desigualdades existentes, pelo menos em algumas dimensões.

O sistema operacional GNU/Linux é outro exemplo de um projeto que, no início do século, era tido como um modelo de produção independente dos tradicionais direitos proprietários e mercados. Hoje, porém, a maioria das contribuições ao projeto é feita por profissionais de TI empregados por grandes e tradicionais corporações, refletindo os seus interesses (YEGULALP, 2014). O código aberto e as tecnologias da internet certamente trouxeram novos modelos de produção distribuída ao mundo corporativo. Mas, da visão original de produção do bem comum, o empresariado incorporou somente as partes que deixarem mais eficientes seus tradicionais processos de acumulação.

Um último caso, relevante especialmente para o movimento REA, é a subversão das ideias e propostas do movimento Acesso Aberto pelas editoras comerciais de literatura científica, que usaram seu monopólio de validação editorial para manter o controle sobre a produção da comunidade científica. Em colaboração com formuladores de políticas públicas no Reino Unido e da Holanda,[6] elas reconfiguram aos poucos seu modelo de negócio, articulando uma estrutura em que os autores e agências de fomento, para publicar seu trabalho, pagam preços mantidos artificialmente altos. Neste modelo onde a iniciativa privada continua intermediando o processo de publicação da literatura acadêmica, o preço pago pelo benefício das licenças abertas é a exclusão de autores com menor capacidade de conseguir financiamento para publicação. O modelo ‘autor-paga’ (para cobrir custos das editoras) também leva a conflitos de interesse no processo de revisão por pares, criando oportunidades para atores mal-intencionados e promovendo as chamadas revistas predatórias, que não passam de máquinas de publicação por pagamento, sem critérios rígidos de qualidade e mérito acadêmico. Neste caso, a ênfase dada pela comunidade de acesso aberto à tecnologia legal de licenças abertas trouxe um alheamento à tensão (ou a batalha) entre as esferas públicas e privadas, permitindo o controle desmedido de entidades privadas sobre uma produção acadêmica que, por ser construída largamente com financiamento público deveria idealmente ser um bem comum.

É importante notar que os efeitos colaterais e não-desejáveis dos movimentos ‘abertos’ descritos acima são independentes do caráter ‘aberto’ (do ponto de vista de uma visão de cultura participativa, não-corporativa e progressista) dos movimentos e projetos em si. O que os exemplos mostram é que, sem articular o sentido e o objetivo de seus valores ‘abertos’, movimentos ficam à mercê do status-quo, e licenças abertas por si só são insuficientes para promover a produção de bens comuns e justiça social (ou ainda,eficiência econômica). Ser meramente ‘aberto’ não é instalar-se automaticamente em um espaço progressista, neutro ou livre de tensões políticas.

Na batalha pela definição do ‘aberto’ está em jogo a concepção do que é o bem comum. Uma resposta é criar definições rígidas que buscam separar o aberto do não-aberto[7]. Certamente as definições rígidas facilitam a implementação de políticas e dificultam a prática de openwashing. Mas por serem rígidas, criadas em locais e contextos políticos determinados e para certas finalidades, essas definições podem não atender às necessidades diversas de comunidades em momentos e contextos distintos. E como veremos, apesar das intenções, elas nem sempre conseguem impedir a subversão do bem comum em favor de interesses alheios às suas comunidades.

 

Educação ou vigilância?

O campo de tecnologia educacional é impregnado de um certo determinismo tecnológico e tecno-utopismo. A introdução de novas formas de tecnologia educacional, como plataformas online com videoaulas, “objetos de aprendizagem” ou Recursos Educacionais Abertos (REA) é, por muitos, tida como óbvia ou até inevitável – um sinal de progresso e avanço social. Para cada um desses discursos, porém, há contra-discursos. O deslumbramento inicial com a disponibilidade de material didático e aulas online de universidades renomadas rapidamente deu lugar ao reconhecimento de que educação é mais que transmitir aulas, por mais carismático que o professor possa ser. Críticos apontam que por trás da automatização da sala de aula por meio de ambientes online de aprendizagem, muitas vezes está o simples desejo de massificar os processos de aprendizagem e precarizar a profissão de professor, em prol de uma educação apenas instrumental voltada para o mercado de trabalho, e ainda, com base em teorias de aprendizagem voltadas ao treinamento em vez de uma formação de cidadania plena. É possível suspeitar que interesses comerciais de vendedores de tecnologia educacional tenham se engajado com um discurso menos que transparente sobre os seus propósitos.

Em meio a uma pandemia que oferece, em tese, uma equalização, um mínimo comum do que seriam as sociabilidades e práticas educacionais mediadas por tecnologias digitais, e as infraestruturas que serviriam a essa urgência em escala global, as nuances sobre o aspecto do aberto se apresentam escorregadias. E, se a pandemia de Covid-19 pede compromissos radicais tanto da sociedade civil como do setor público, as ações ‘disruptivas’[8] galvanizadas nas empresas do Vale do Silício talvez pareçam fazer especial sentido em tempos atípicos. Esse modo de ação hoje é caracterizado por um grupo de empresas que Smyrnaios (2016) considera um oligopólio perpetuado através do grande capital, poderio econômico e propriedade intelectual: Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft (GAFAM). Suas investidas na esfera educacional pública são visíveis tanto no ensino básico como no ensino superior, ao redor do mundo. Não se deve subestimar a escala das mudanças. Essas empresas se voltaram para o mercado da educação com afinco não visto desde o início dos anos 1980 (CUBAN, 2001).

Esse modelo de negócios e desenvolvimento tecnológico parece, enfim, se galvanizar num maquinário de capitalismo de vigilância pronto a capturar o universo da educação. Singer (2017) aponta que, de acordo com o Google, mais da metade de todos os alunos do ensino básico nos Estados Unidos (na época, já mais de 30 milhões de crianças) usam aplicativos do Google, criticando o que chama de “Googlification” (Googlificação) da sala de aula. No Brasil, o movimento é similar. Acordos com governos têm ampliado e promovido o acesso a esses sistemas em suas redes de ensino. A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo faz, por exemplo, promoção de sua parceria com a Microsoft, que oferece de maneira gratuita o Office 365[9] a alunos, professores e gestores, bastando que criem um e-mail através de um canal oficial (portal da Secretaria Escolar Digital; SED), acessível somente com utilização de conta cadastrada na Microsoft.[10] A Secretaria Estadual também estabeleceu parceria com o Google[11] para oferecer, através de cadastro de e-mail na mesma SED, acesso ao serviço Google na Educação. E o alcance dos acordos desse tipo não se restringe ao espaço virtual: para usar os laboratórios de computadores da escola (espaço denominado Acessa Escola), é necessária a criação de um e-mail institucional, Microsoft[12] — ou seja, há um cerceamento do acesso a um espaço e equipamentos públicos, em uma instituição pública; ou no mínimo, a imposição da cessão de dados pessoais a uma empresa estrangeira para usufruto de um bem público.

No ensino superior, parcerias similares estão sendo esboçadas com o apelo de oferecer, de maneira gratuita, acesso a serviços de empresas como Google e Microsoft. O acesso a essas plataformas é promovido como mais uma opção, um serviço gratuito, e um benefício aos entes universitários; passando ao largo, no entanto, de uma reflexão sobre o significado das contrapartidas ao uso de um sistema ‘gratuito’, do seu impacto no ecossistema de software vigente nas instituições, e das consequências da indução ao uso de plataformas corporativas estrangeiras, muitas vezes em conflito com as políticas internas das universidades (PARRA, et. al, 2018). Os serviços oferecidos vão além do e-mail, e incorporam os conhecidos aplicativos de produtividade na nuvem (planilhas, editores de texto, etc.) além de ferramentas específicas para a educação, como notas dos alunos, calendários compartilhados, submissão de atividades e tarefas, dentre outros.[13]

Se ainda é cedo para uma avaliação de como a atual pandemia teria aprofundado essa tendência no Brasil, os dados relativos ao período recente apontam a uma escalada da captura, pelos grande conglomerados de tecnologia, das infraestruturas técnicas e de dados no universo do ensino superior brasileiro. Segundo pesquisa realizada pelo projeto Educação Vigiada, uma da Iniciativa Educação Aberta, “mais de 70% das universidades públicas e secretarias estaduais de educação no Brasil estão expostas ao chamado “capitalismo de vigilância”, termo utilizado para designar modelos de negócios baseados na ampla extração de dados pessoais via inteligência artificial para obter previsões sobre o comportamento dos usuários e com isso ofertar produtos e serviços.” (EDUCAÇÃO VIGIADA, 2020)

Temos, então, dois cenários potenciais que, no contexto da pandemia, parecem se aprofundar. Para algumas instituições, a parceria com empresas coloca à disposição ‘mais um recurso’,[14] ou seja, uma alternativa competindo com outras soluções ofertadas.[15] Em outro cenário vemos a cessão total e apropriação de fato das estruturas de comunicação por empresas como Google e Microsoft, quando são adotadas soluções dessas empresas como mecanismos de acesso, verificação e hospedagem, em detrimento a soluções públicas ou pagas, mas sob controle da administração pública. Em ambos os casos, dado o poderio econômico e a oferta gratuita de serviços ofertados por GAFAM, não há espaço para competição efetiva com entes públicos, multiplicidade de ofertas ou sustentação de diversidade de plataformas e serviços. Um resultado quase inevitável dessa terceirização de serviços educacionais é a atrofia, nas instituições ou empresas locais na área de educação, da capacidade de desenvolver e manter soluções de tecnologia educacional adequadas às realidades locais. Como aponta Taplin (2017), por exemplo, as ideias antitruste dos anos 1960 e 1970 não se transferem bem para a realidade de mercados informacionais no século 21; quando produtos são oferecidos de modo gratuito para o consumidor, o custo real dos monopólios é mais difícil de ser enxergado.

Nos servidores dessas empresas parceiras vemos, então, espaço para todo tipo de conteúdo: partindo das mensagens sigilosas entre pesquisadores, dados de pesquisa, dados pessoais de alunos e professores, notas de alunos, resultados de trabalhos acadêmicos, bem como recursos educacionais dos mais variados tipos. Empresas como Google afirmam que não fazem uso dos dados em contas educacionais, no entanto essa afirmação já foi duramente contestada.[16] As políticas de privacidade e de direitos autorais são notoriamente desconhecidas pelos usuários quando, de maneira individual e voluntária,[17] fazem uso dessas plataformas. E o cruzamento entre políticas institucionais e empresariais torna esse terreno ainda mais complexo e de difícil navegação. Quando, no entanto, a parceria é institucionalizada, não há sequer escolha, e a adesão às políticas se dá por obrigação.

Vale lembrar também que, para além da mineração e coleta de dados, existem outras maneiras para as empresas em questão ‘monetizarem’ o grátis. O uso contínuo de ferramentas e plataformas fomenta um ciclo de familiaridade e um legado de conteúdo que leva usuários a buscar as mesmas plataformas e ferramentas em outras esferas de ação, gerando assim fidelização desde a mais tenra idade.

A agressividade com que empresas como Google e Microsoft (e outras como Amazon,[18] mais particularmente no âmbito de REA) promovem suas plataformas nos leva a considerar de que maneira plataformas ‘gratuitas’ (e não abertas) se beneficiam do conteúdo produzido por usuários em suas interações nesses sistemas. Primeiro, nos leva a perguntar: o que podemos considerar como recurso educacional? Certamente, planos de aula, ementas, perguntas e respostas, apresentações, questionários e todos os tipos de insumos que constituem o conteúdo das aulas em plataformas proprietárias podem ser considerados recursos educacionais. Portanto, cabe a indagação: de que maneira a produção e disseminação de recursos educacionais — e, em muitos casos, explicitamente REA — em plataformas fechadas ou ‘gratuitas’ de grandes empresas contribui para a consolidação desses oligopólios? Tendo em vista a abertura e transparência estimuladas por REA, há de se questionar até que ponto seus promotores contribuem com o status quo ao sugerir, induzir ou não questionar a adesão a essas plataformas. Como exemplo, podemos mencionar a indução reversa de plataformas conhecidas do movimento REA, como Currwiki[19] e OER Commons[20], que promovem a sua integração técnica com o Google Classroom.

Ainda não é possível aventar com clareza o impacto da pandemia de Covid-19 para o universo da educação no longo prazo, e as definitivas consequências dessas estratégias e seu papel na consolidação de oligopólios vigentes, e quais os impactos (privacidade, controle, transparência) dos novos modelos de parceria e negócios envolvendo abertura e REA. Sabemos que as tecnologias digitais e da internet em geral, os recursos educacionais abertos não são neutros ou apolíticos. Caso não explicitem e conscientizem-se sobre suas premissas, projetos e movimentos nesse âmbito correm o risco de ficar à deriva, deixando-se levar pelos ventos do poder vigente. Muitas vezes, não nos prestamos a investigar cenários e casos concretos onde a relação tecnologia e política se fazem visíveis. Se as tecnologias devem proporcionar benefícios educacionais e sociais, e não somente ganhos de eficiência ou lucro, elas devem ser explicitamente configuradas para tais fins. Há riscos de uma aplicação ingênua das ideias em volta do conceito ‘aberto’, especialmente do modo como é definido por atores do mercado especulativo. Um commons global estruturado nos termos de organizações e corporações transnacionais não atenderá as necessidades de todas as comunidades de escolas, educadores e estudantes ao redor do mundo.

Apontamos alguns exemplos do movimento ‘aberto’ para indicar que, sem explicitar seus valores políticos, movimentos pela abertura correm o risco de ter seus valores subvertidos. Seguimos transpondo essa discussão para o universo dos REA. Se um determinado projeto envolvendo REA busca promover justiça social, por exemplo, é preciso levar em conta as relações de poder na sociedade. Sem reconhecer desigualdades sociais existentes, ações como prover acesso à tecnologia, dar igualdade de oportunidades ou ‘democratizar’ podem ser inócuas ou, no pior caso, podem amplificar estas desigualdades.

Os REA e as ideias defendidas pelos variados movimentos abertos (como os de Acesso Aberto, Ciência Aberta, Transparência e Dados Abertos) podem e devem ser usados para promover a autonomia, diversidade de ideias e a criação de espaços colaborativos. Como apontam Peters e Britez (2008), os REA implicam liberdade, cidadania, conhecimento para todos, progresso social e transformação do indivíduo. A pandemia e suas aceleradas, profundas transformações no universo educacional nos ajudam no entendimento das possibilidades, tensões e horizontes de uma educação mais aberta. Cabe a nós continuar a luta para garantir o tipo de educação aberta que queremos.

 

Notas

[1]                World Wide Web Consortium (https://www.w3.org/)

[2]                Confira a trajetória de projetos de lei e outras ações institucionais brasileiras no Iniciativa Educação Aberta (http://aberta.org.br/).

[3] Veja Parecer CNE/CP nº 9/2020, aprovado em 8 de junho de 2020

[4]                Expressão derivada de greenwashing, utilizada para descrever empresas que se fazem parecer ecologicamente corretas, mantendo práticas que não o são.

[5]                Para uma análise geral dessa questão, ver Nafus (2012). Três estudos (GHOSH et al., 2002; DAVID; WATERMAN; ARORA, 2003; KUECHLER; GILBERTSON; JENSEN, 2012) encontraram uma participação feminina de 1 a 2% em projetos de software livre; um quarto chegou ao número de 11%, mas apresentava viés de seleção admitido no próprio trabalho (ARJONA-REINA; ROBLES; DUEÑAS, 2014). Os números são pequenos mesmo quando comparados às (já baixas) participações femininas na área de TI em geral (estimada em 26% nos EUA [ASHCRAFT; MCLAIN; EGER, 2016]), ou nas graduações da área (14% dos concluintes em 2013 no Brasil eram mulheres [MAIA, 2016]).

[6]                Com base no chamado Finch Report (https://www.acu.ac.uk/research-information-network/finch-report), o governo do Reino Unido, assim como o governo Holandês (http://openaccess.nl/en), promovem o modelo ouro de acesso aberto em periódicos existentes controlados pelas grandes editoras como Elsevier ou Springer.

[7]                Por exemplo o conceito de http://opendefinition.org, ou para os REA, os critérios “5R” criado por um dos pioneiros do movimento para definir o que significa um recurso ‘aberto’ (http://www.opencontent.org/definition/), ou ainda identificação de ‘aberto’ somente com o uso de uma licença CC-BY do Creative Commons (http://creativecommons.org).

[8]                Para uma crítica do conceito, veja: https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2014/10/the-disruption-myth/379348/

[9]                http://www.educacao.sp.gov.br/noticias/alunos-e-professores-podem-baixar-o-pacote-office-365-da-microsoft-gratuitamente

[10]             Em acesso no dia 12 de julho de 2017, a link da SED para maiores informações levava a uma tela de login do Office 365 com imagem da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo e URL de servidores externos (https://login.microsoftonline.com).

[11]             http://www.educacao.sp.gov.br/noticias/google-na-educacao-conheca-a-nova-parceria-da-secretaria-com-a-gigante-da-tecnologia

[12]             Este parece ser um conhecimento somente dos atores escolares e dos que fazem uso dos laboratórios. A mudança parece ter se dado através da Resolução SE 17, de 31-03-2015 (veja, http://www.educacao.sp.gov.br/acessa-escola) que levou um novo sistema operacional aos computadores do Acessa Escola (Windows 10) e uma nova política de acesso. A informação advém de experiência de um dos autores e de confirmação com um técnico de uma Diretoria de Ensino.

[13]             Como exemplo, veja-se a suíte ofertada pelo Google Apps for Education (GAFE), disponível em: https://edu.google.com/products/productivity-tools/

[14]             Argumento utilizado pela Unicamp em sua parceria com Google e Microsoft. Veja: https://googleapps.unicamp.br/tutoriais/privacidade.html

[15]             Vale destacar, porém, que se trata de ‘competição’ claramente desigual.

[16]             Veja ampla cobertura em: https://www.eff.org/issues/student-privacy/. Veja também

Educação, Dados e Plataformas: Análise descritiva dos termos de uso dos serviços educacionais Google e Microsoft. http://doi.org/10.5281/zenodo.401253

[17]             Também conceito atribulado, dado que é tarefa árdua fazer uso de um dispositivo criado pelas GAFAM (celulares, leitores de livro, tablets ou computadores) sem a criação de contas em suas respectivas plataformas.

[18]             A Amazon promove o Amazon Inspire: https://www.amazoninspire.com. No âmbito do programa governamental estadunidense #GoOpen, há menção clara ao uso de aplicativos do Google no guia de implementação. Veja em: https://tech.ed.gov/open/

[19]             http://www.curriki.org/curriki-oer-library-is-now-lti-compliant-and-has-integrated-the-google-classroom-share-button/

[20]             https://www.oercommons.org/authoring/13855-share-your-oer-with-google-classroom/view

 

Referências

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* Tel Amiel, professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), coordenador da Cátedra Unesco em Educação a Distância, e um dos responsáveis pela Iniciativa Educação Aberta;

Ewout ter Haar, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP);

Miguel Said Vieira, professor no Núcleo de Tecnologias Educacionais e nos cursos de Políticas Públicas e Ciências e Humanidades da Universidade Federal do ABC (UFABC);

Tiago C. Soares, pesquisador associado aos grupos de pesquisa Educação Aberta (UnB) e Informação, Ciência, Tecnologia e Sociedade (Unicamp).

** Este texto é uma adaptação resumida, atualizada ao contexto da pandemia, do artigo “Who Benefits from the Public Good? How OER Is Contributing to the Private Appropriation of the Educational Commons“, publicado pelos autores no livro Radical Solutions and Open Science, organizado por Daniel Burgos e publicado pela editora Springer, em 2020, sob atribuição CC BY 4.0.

 

Série Lavits_Covid19

A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.

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