#4: uma intrusão viral convoca novos saberes e novos modos de saber

Nos primeiros meses de 2020, o Brasil e o mundo foram acometidos pela pandemia do novo coronavírus. A intrusão viral fez surgir impulsos múltiplos: negação da ciência, criação de falsos dualismos entre manutenção da vida e economia, vigilância corporativa e entre pares, cuidado coletivo, discussão sobre papel do estado, solidariedade, desejos de explicação e temor foram apenas alguns dos sentimentos, discursos e práticas que emergiram, e seguem vivos, nesse período.

Habitar o acontecimento covid-19 foi a vontade que motivou a convocação da Zona do Contágio, um laboratório situado, de prática coletiva de uma ciência do risco, espaço de convergência de saberes e atores sociais diversos, que deseja mobilizar uma inteligência coletiva alternativa à vigilância e ao controle.

“Com o acontecimento COVID-19, o Laboratório Zona de Contágio instaura-se como um dispositivo de pesquisa e intervenção na medida em que a produção coletiva de conhecimento sobre as atuais possibilidades de fabricação de uma vida não-fascista torna-se urgente. Se o fortalecimento de governos autoritários já era uma ameaça à vida comum, a intrusão viral potencializa a disseminação de uma cultura imunitária e securitária de contornos fascistas no tecido da própria vida social”, descreve a convocatória.

Coordenado por Henrique Parra (Unifesp) e Alana Moraes (doutoranda no Museu Nacional – UFRJ), pesquisadores do Pimentalab – Laboratório de Tecnologia, Política e Conhecimento – da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membros da Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits), o Laboratório Zona de Contágio é uma iniciativa de confluências, um híbrido do coletivo Tramadora, Projeto Laboratório do Comum do Pimentalab/Unifesp e Lavits. O Laboratório recebe o apoio da Lavits/Fundação Ford. A equipe da Zona de Contágio conta com a colaboração da antropóloga Bru Pereira e da cientista social Jéssica Paifer.

Através da internet, os pesquisadores convidaram a todos que se sentissem interpelados pelas questões apresentadas a participar de um percurso coletivo de investigação e de criação, formas de expressão sobre o experienciado, fragmentos coletados do mundo, situações vividas, sentidas, relatos, hesitações que ajudassem a estabelecer conversações sobre a pandemia. Além disso, o laboratório promove um ciclo de leituras e “Conversações Febris” online. O primeiro encontro, realizado no dia 23 de abril de 2020, discutiu o livro No tempo das catástrofes, da filósofa da ciência Isabelle Stengers.

É possível participar da iniciativa e/ou acessar informações por meio do twitter, instagram, facebook, telegram, e-mail e site.

Fernanda Bruno, pesquisadora do MediaLab.UFRJ e membra da Lavits, entrevistou Henrique Parra e Alana Moraes sobre a iniciativa. O diálogo está transcrito a seguir e integra o quarto episódio da série Lavits_covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância.

 

Diálogos com Alana Moraes, Henrique Parra e Fernanda Bruno

 

Fernanda Bruno: meu primeiro convite é que vocês apresentem brevemente a trajetória do Laboratório do Comum ao Zona do Contágio, e a partir daí começamos a conversa.

 

Henrique Parra: ano passado estávamos desenvolvendo o projeto Laboratório do Comum: tecnopolíticas, corpos e territórios, focado em um conjunto de questões relacionadas às disputas no território do Campos Elíseos, região central na cidade de São Paulo. Estávamos observando um conjunto de reconfigurações nas formas de exercício do poder – seja através das tecnologias digitais, mas também em processos relacionados à gentrificação, à militarização, à securitização da vida, atravessadas pelas formas de vida neoliberais – e como isso está em tensão com as dinâmicas de vida existentes no território.

A investigação também se debruça sobre o próprio desenho do Laboratório. Como fazer uma pesquisa situada, coletiva e aberta, a partir de um convite, uma convocatória aberta para pessoas interpeladas por problemas comuns?

Desenvolvemos esse projeto ao longo de seis meses e, no início de 2020, ele teria uma nova fase, quando fomos atravessados pelo covid-19, o que nos obrigou a repensar o cronograma de ações, mas ao mesmo tempo a observar as questões que já se manifestavam no percurso anterior do trabalho e que, em razão do coronavírus, ganham contornos mais intensos. Como fazer pesquisa em tempos de pandemia?

 

Alana Moraes: o Laboratório do Comum e agora a Zona de Contágio confluem nessa aposta epistêmica de convocar e insistir em uma certa inteligência coletiva. É sempre um experimento de uma prática científica que se pretende ao mesmo tempo aberta e coletiva. Então ela é sempre precária por um lado, porque do ponto de vista institucional, de algumas exigências acadêmicas, nós nos colocamos de uma maneira um pouco mais livre. Ao mesmo tempo, essa instabilidade precisa ser o tempo todo repensada, cuidada, sustentada de algum modo, ela só funciona a partir de um engajamento entre todos.

Uma outra convergência importante e que a gente quer seguir experimentando é essa ideia de uma transdisciplinaridade. Nossas práticas acadêmicas foram se conformando em lugares muito especializados e muito disciplinarizados. Então, a partir de uma chamada aberta, que tem a ver com o território, com a vida no território, havia essa ideia de que nós pudéssemos experimentar uma ciência que fosse mesmo contradisciplinar, no sentido de que as questões que ela enuncia não são propriamente da sociologia, ou da antropologia, ou da arquitetura e do urbanismo, mas que seja uma esquina contradisciplinar.

 

Fernanda Bruno: a minha primeira questão tem a ver com essa condição, com esse convite que vocês fazem, que é o de habitar o limite, habitar uma certa zona de incerteza. Eu acho que no Lab do Comum já tinha esse movimento, que se fazia, como destacou a Alana, a partir de uma contradisciplinaridade, mas que também implicava um deslocamento territorial, com a ocupação de espaços da cidade em que tradicionalmente a universidade não estaria presente, ou não estaria presente de um certo modo, que é o modo com que vocês seguem desejando habitar.

Então, me parece que já havia o desejo de habitar essa fronteira entre a universidade, a rua, a cidade e o mundo, e agora essa fronteira se desloca, se encerra um pouco nesse ambiente da casa, que é essa célula individual, familiar e burguesa, onde a maioria dos  pesquisadores que estão na universidade agora habita quase que integralmente. Vocês reinventam um movimento para retomar a própria vida acadêmica, em um certo sentido, e também, de novo, a rua, a cidade, o mundo. A contradisciplinaridade envolve também uma explosão de fronteiras, que já estava presente no Lab do Comum, entre o próprio saber acadêmico e os saberes que estão sendo produzidos pelas diversas formas de habitar e viver a cidade.

A pergunta, enfim, é se vocês já têm algum germe de entendimento – não de respostas, de explicações – do que é esse novo desenho do laboratório que habita o limite de um outro modo. Uma coisa que acho interessante é essa ideia de um laboratório que vai se fazendo, que é ao mesmo tempo o ambiente onde se faz a pesquisa, se produz o pensamento, mas ele também é objeto, no sentido de que vocês também estão tentando entender ou desenhar o laboratório no próprio movimento de fazer a pesquisa. Acho que isso mais do que nunca está presente.

 

Alana Moraes: eu queria voltar para uma questão que você colocou no começo, Fernanda, que eu acho que também serve muito para a gente pensar esse lugar de implosão das fronteiras, ou pelo menos para gente experimentar um pouco mais essa suspensão das fronteiras disciplinares, ainda que seja uma prática de pesquisa super difícil, que nos exija o tempo todo um certo sentido de risco, de assumir esse risco da suspensão de algumas bordas.

Mas esse risco do instável e do precário vem nos empurrando, desde o Laboratório do Comum, a encontrar questões muito simples. As questões com as quais a gente se depara, a partir desse encontro entre múltiplos e heterogêneos saberes e corpos, são simples no sentido de que conseguem enunciar problemas muito complexos, mas de um lugar reconhecível por qual todos nós passamos.

Por exemplo, no Laboratório do Comum, a gente estava muito interessado, inicialmente, em pesquisar esse tema das novas tecnologias de vigilância, que hoje são muito presentes no território. Mas a gente acabou se dando conta de que existia uma camada para além de todo o arranjo técnico dos poderes que era o fato de as pessoas, nossos vizinhos, desejarem ter uma câmera de vigilância nas suas casas. O fato é que existe um certo desejo compartilhado de segurança, que é muito simples, que é muito reconhecível para além de todo novo ordenamento sociotécnico, pode ser constatado por qualquer um e no entanto ele nos exige um esforço brutal de pesquisa e reflexão.

Ele faz a gente se perguntar o que significa vizinhança, o que significa fazer um bairro, a partir de outros sentidos de pertencimento que não seja esse da segurança. Esse problema, no fundo, a gente demorou muito tempo pra chegar nele, mas ele é muito simples, né? Ele pode ser compartilhado por qualquer pessoa que a gente encontrava em uma praça quando estávamos fazendo um almoço aberto e coletivo. Encontrar essas questões, que no fundo são questões simples, nos dizem sobre esse encadeamento que está entre a casa, a rua, as relações de confiança, as novas tecnologias e as novas mediações sociotécnicas.

Um desafio para a Zona de Contágio tem a ver com essa investigação sobre como criar um desenho de uma pesquisa contradisciplinar; um desenho que permita com que diversos saberes, experiências se contaminem no processo de pesquisa coletiva, mas também tem muito a ver com essa ideia persistente de encontrar esses lugares que são muito simples, mas que também são os lugares em que se cruzam a casa, como uma tecnologia da domesticidade, e essas novas mediações tecnológicas, o corpo, o que entendemos como saúde coletiva. Esse lugar do cruzamento, da encruzilhada, é um lugar importante nesse desenho agora do Laboratório Zona de Contágio.

 

Henrique Parra: a situação que estamos vivendo evidencia um conjunto de elementos relacionados ao funcionamento das infraestruturas da vida ordinária, da vida cotidiana, que estão absolutamente invisibilizadas, naturalizadas na paisagem.

Um elemento importante no desenho do laboratório é como criamos estratégias de visibilização das infraestruturas da vida comum e que, por diversas razões, tornam-se invisíveis à nossa percepção. Quando experienciamos o acontecimento covid-19, surge de forma mais aguda uma percepção sobre diversos mecanismos que participam da produção de diversas assimetrias sobre, por exemplo, os nossos deslocamentos, as infraestruturas de comunicação (qual a qualidade do meu acesso à internet), como ficam as relações dentro da sua casa, a divisão do trabalho, como a gente se alimenta, como trabalhamos, como cuidamos das crianças, e tudo muito mediado pelas tecnologias digitais.

Se por um lado o acontecimento covid-19 permite uma intensificação, um avanço dos mecanismos de produção de várias assimetrias de classe, gênero, raça e de novas formas de controle, ao mesmo tempo a gente consegue perceber esses elementos que estão inscritos na paisagem.

Outra dimensão importante do desenho do laboratório é tomar o ser humano como sensor, um sensor de percepção que é sempre singular diante do está sendo vivido. Partimos da ideia de um corpo-sensor. O corpo que percebe, que sente e que produz a possibilidade de uma nova evidência, um novo elemento que pode abrir ou instalar uma controvérsia sobre a realidade.

Algo que nos atravessa a todos é a nova sensação e percepção de risco e  vulnerabilidade. A vulnerabilidade não como elemento negativo, da falta ou da exclusão, mas como esse elemento que produz nossa interdependência, e ao mesmo tempo que instala a possibilidade de ação política a partir dessa vulnerabilidade, porque ela é reveladora da nossa condição de interdependência na produção do comum.

Uma contraste teórico/político importante no desenho desse laboratório é investigar como o acontecimento covid-19 instala uma disputa em torno dos sentidos dessa experiência: por um lado temos as enunciações, práticas e tecnologias que produzem um tipo de sujeito que se imagina autônomo, autossuficiente, eficiente no trabalho, que só tem uma “gripezinha”, versus outras possibilidades que sustentam uma política do Comum, nossa condição de seres interdependentes (inclusive com entes não-humanos) e de um risco comum.

Claro que as situações de risco são diferentes para cada um (sobretudo numa sociedade altamente desigual em termos raciais, de classe e gênero), mas a possibilidade de experienciar essa vulnerabilidade como uma condição política permite interrogar a ideia do indivíduo soberano, de cidadão que estão imunizado das relações com seu entorno, em que o outro é visto como uma ameaça.

 

Fernanda Bruno: me parece que esse corpo-sensor passa a ser um indicador ainda mais essencial. A conexão entre as formas de vida e as possibilidades de pensar ganha uma nova urgência. Me parece que há também uma outra vulnerabilidade: a pandemia muito rapidamente disparou uma eloquência explicativa que, de alguma maneira, silenciava ou resolvia muito rápido essa experiência de poder habitar essa zona de incerteza por um tempo mais alargado, de uma forma um pouco distinta, que vocês chamaram na convocatória de dimensão experiencial, que me parece estar super conectada com esse corpo-sensor.

Agora eu gostaria de fazer uma outra associação, ainda sobre a questão do risco e a dimensão da vulnerabilidade. Eu super me afino com a ideia de pensar o risco não na chave ou contorno da atitude individual, de uma prudência individual, tampouco de uma lógica securitária mais ampla e coletiva, que pensa na segurança no sentido de uma eliminação do risco e do perigo. Vocês estão trabalhando com a ideia da vulnerabilidade como interdependência que supõe, também, suportar uma certa margem de perigo, uma certa margem de risco.

Em vários momentos vocês falam em uma ciência do risco. Eu vou ler um trechinho aqui sobre o qual me paira uma certa dúvida. Vocês dizem: “uma ciência de risco é sempre uma ciência que hesita, uma ciência de retomada de uma inteligência coletiva, que funciona apesar e contra os chamamentos da pátria ou da grande ciência e seus regimes de autoridade e de verdade”.

A provocação que eu queria fazer tem a ver com a “grande ciência” e com esse momento singular que estamos vivendo. Se por um lado há essa proposta de uma ciência do risco, nós (professores universitários) estamos fazendo isso desde as nossas casas. Não estou sugerindo que não deveríamos estar em casa, mas há um risco bem concreto que está sendo vivido por muitas pessoas e também por parte da “grande ciência”, por profissionais de saúde e pesquisadores que estão na linha de frente. Eu fico me perguntando se essa oposição, nesse momento, não rateia um pouco ou se ela não merece ser pensada com um pouco mais de cuidado.

 

Henrique Parra: você tem razão, não só com relação à “grande ciência”, mas também com relação ao Estado. A provocação que a gente faz não é contra a ciência. Não há “a grande ciência”, mas disputas em torno dos modos de produção de verdades, em que, aparentemente, o que está em jogo seria qual a evidência ou o dado “mais verdadeiro”. É um debate que também se relaciona às discussões sobre fake news e pós-verdade.

A situação é que, diante de um mundo que parece desmoronar, onde as versões não podem mais ser verificadas, há um movimento de tentar restabelecer uma forma de produção de evidências, inclusive com a volta de um argumento digamos, científico, como se as coisas passassem apenas por uma questão de produção de informações ou evidências de melhor qualidade, quando o que está em jogo, parece-nos, é uma guerra de mundos.

Não é suficiente a gente falar em termos de dados e evidências. É claro que elas são fundamentais para as tomadas de decisão, para organizar a nossa ação no mundo, mas há uma preocupação em deslocar o debate para além do falso e do verdadeiro, sair dessa dicotomia, e dizer “olha, o que seriam as formas de produção de cuidado para a manutenção da vida, para além do que está disponível como forma-Estado? (no sentido de uma biopolítica maior)”.

Nós estamos em uma situação de absoluta urgência, de perceber o que temos disponível como formas de resposta a um problema de saúde coletiva. Precisamos muito de toda a estrutura e de políticas fortalecimento da saúde pública. Não é suficiente entrar em uma investigação que está simplesmente preocupada em produzir mais evidência da mesma forma, mas pensar também que a forma de produção dessa informação está, de alguma maneira, situada e implicada na produção de mundos, de formas de vida. Do contrário, não somos capazes de comunicar outra experiência de vida, de dizer ao outro como ele participa da produção da saúde coletiva.

Quando pensamos no debate sobre a produção de conhecimento científico, quais são as formas de produção de conhecimento científico, diante dessa situação, que interrogam as formas hegemônicas de conhecimento tecnocientífico orientados por normatividades econômicas e políticas de caráter privatista, corporativo e mercadológico?

Observamos, nesse momento, o fortalecimento de formas de produção colaborativa/aberta que confrontam inúmeras limitações relacionadas ao regime proprietário-autoral, organizado em torno de uma concepção do conhecimento como propriedade intelectual e mercadoria.

 

Alana Moraes: essa convocatória parte, de fato, de um lugar bem irrigado de controvérsia. Por mais ataque e ameaças que a prática científica esteja recebendo agora, e por mais que tenhamos que defender essas práticas, não queremos abrir mão de olhar criticamente para alguns enunciados de uma ciência que sempre se sustentou a partir de um privilégio epistemológico, a partir dessa ideia de que o enunciado de autoridade do fazer científico bastava para que os fatos científicos se convertessem em verdade.

A gente está colocando um pouco em suspensão esse pressuposto para tentar experimentar uma ideia aberta e engajada de fazer ciência. Então não queremos abrir mão de fazer ciência, de pensar junto, de pensar uma prática investigativa que produza conhecimento objetivo sobre a realidade. Não tem a ver com uma luta da experiência contra a teoria. Muito pelo contrário, a gente acha que esses dois lugares não são opostos e não devem ser opostos. Queremos experimentar o que seria essa prática científica que se sustente a partir das relações de implicação que ela tem com o mundo, uma ciência que está no mundo.

Eu tenho dado um exemplo que tem a ver com o embate sobre isolamento horizontal ou vertical. Muito do pensamento progressista tem respondido a esse embate afirmando que o isolamento horizontal deve ser feito porque ele é um fato científico e o isolamento vertical não é um fato científico. No entanto, quando a gente defende o isolamento horizontal, nós estamos defendendo porque ele pressupõe uma certa concepção de vida a ser defendida, porque nos importa viver em companhia no mundo em que a gente habita, porque ele contém uma ideia sobre o que é saúde coletiva. Obviamente que ele é um fato científico, mas ele é um fato científico que mais pode ter efetividade a partir do momento em que ele se mostra em sua construção ética, a partir dos seus lugares de implicação.

 

Fernanda Bruno: quando vocês estavam falando, eu lembrei daquele texto da Donna Haraway, que é uma inspiração para todos nós, dos saberes localizados. Agora está muito ativa essa ideia de um saber que pode responder pelo mundo que cria. É um pouco nesse sentido, me parece, que você está falando, Alana. Para além da verdade científica, que mundo a gente cria quando a gente propõe um determinado modelo de controle epidemiológico?

Eu queria voltar um pouco no tema da vigilância e do controle, que também aparece na chamada de vocês e está presente desde o Laboratório do Comum. Estamos vendo como uma série de tecnologias de biovigilância começam a entrar em obra. A minha pergunta é menos sobre elas e mais sobre ao que você estão atentos nesse campo. Quais são as perguntas que estão se fazendo? No que vocês estão prestando atenção nesse espectro das tecnologias de vigilância, dentro do acontecimento covid-19?.

 

Henrique Parra: há alguns temas em que estou mais envolvido. Um deles é sobre as práticas de educação tecnicamente mediada. Há uma aceleração na adoção, por parte de secretarias estaduais da educação e universidades (públicas e privadas), e na incorporação de tecnologias digitais para a educação à distância. Elas são permeadas por inúmeros problemas que estão relacionados à vigilância, à economia informacional, a precarização do trabalho docente, etc. Como essas questões estão presentes na Zona de Contágio, a partir da experiência de cada pessoa com o conhecimento, a informação e a educação nessa situação de isolamento?

Outro tema é sobre a relação das tecnologias de comunicação digital com as formas de rastreabilidade, monitoramento, quantificação e o que emerge como possibilidade de Big Data e governamentalidade algorítmica. Há um enorme campo de perguntas que ganham novos contornos porque, de certa medida, há um desejo, amparado na urgência sanitária, de fazer uso de tudo que estiver disponível. Outra entrada é no universo do trabalho: como as tecnologias do trabalho remoto introduzem novas possibilidades de vigilância e controle sobre as atividades do trabalhador?

 

Alana Moraes: retornando aos problemas das plataformas e das mediações tecnológicas no que tem se chamado de “educação à distância”, o que elas inserem de mais importante são novos sistemas de metrificação e controle. Agora, para dar aula, você liga um cronômetro, muitas vezes você grava a sua aula para deixar para os alunos que não puderem entrar online no momento em que você está dando a aula. Você perde uma relação muito importante no que diz respeito ao ensino e aprendizagem, que é relação de confiança entre professor e aluno dentro daquele espaço da sala de aula. As plataformas de EaD estão sendo inseridas como se não houvesse outras formas possíveis, “temos que nos acostumar, daqui pra frente vai ser assim”. A partir do momento em que você grava sua aula e ela circula por lugares que você não sabe muito bem, esse pacto, essa confiança, que tem a ver com essa experiência da sala de aula, ela se perde também.

Vemos ainda como o capitalismo da biovigilância é também o do biodesempenho e como ele atua produzindo uma certa culpa pelo tempo fora do trabalho. A gente está em casa, mas ao mesmo tempo em que está culpado por não estar trabalhando do jeito que a gente deveria trabalhar. Precisamos dar provas cotidianas de que não estamos “aproveitando” o tempo livre.

Eu acho que tem um último aspecto que merece uma reflexão nossa, que é pensar como habitar em companhia esse problema, que também é o outro lado da moeda.  Existe uma recusa por parte das pessoas que estão nesse campo progressista, de modo geral, em debater o problema da tecnologia e os seus usos. Uma recusa da esquerda de entrar nesse debate, como se toda tecnologia fosse uma tecnologia predadora, que fosse sempre piorar as experiências de aprendizagem ou intensificar a subjetivação neoliberal. Outras vezes a esquerda se interessa por esse debate mas sempre na chave da “resistência” e contenção, o que é importante, mas nos deixa sempre muitas casas atrás.

Na verdade, acho que há toda uma questão que é como a gente pensa, primeiro, as tecnologias para além das tecnologias digitais, como é que a gente recupera as tecnologias menores (ou tecnologias de desaceleração, tecnologias de encontro, tecnologias de pertença), pensar como a gente pode produzir outros tipos de associação mais potentes das nossas relações, das nossas experiências de aprendizagem e pesquisa, dos nossos desejos de revolta se associando também às formas tecnológicas. Superar essa recusa também vai ser importante para a gente construir caminhos mais interessantes, disputar os rumos, fazer funcionar nossa inteligência coletiva.

 

Henrique Parra: para complementar, um outro ponto que talvez seja mais transversal nas discussões sobre vigilância e que ganha relevo na experiência da Zona de Contágio, é poder pensar e investigar de que maneira essa situação propicia um tipo de experiência tecnomediada em que ocorre a produção de um modo de subjetivação, onde uma certa experiência cultural de vigilância passa a participar de diferentes instâncias da nossa vida.

Basta pensarmos no modo, por exemplo, com que passamos a olhar para o outro como uma possível ameaça de contágio. Quais são os mecanismos que passo a adotar para me proteger de um possível risco de contágio? Como dentro da casa, na família, passamos a adotar procedimentos e protocolos que podem gerar mais segurança?

Há uma certa ideia de segurança, de reações imunitárias que colocam em movimento uma cultura de vigilância, que pode ser economicamente vantajosa e politicamente eficiente para uma certa produção de mundo (neoliberal, racista, machista, antropocêntrico, etc). Quando essas duas dimensões se entrelaçam através de uma mediação tecnológica que se apresenta como a solução neutra, mais “eficiente” e mais desejada, esse dispositivo ganha muita força.

Preocupa a todos nós a maneira como a experiência de autoconfinamento e do isolamento social nos prepara e educa para uma vida sob estado de sítio. Acho que essa é uma condição muito transversal. Como, diante disso, estamos a criar e experimentar outras formas de vida que, orientadas por princípios de solidariedade e emancipação, criem linhas de fuga da alimentação deste regime da dominação?

É muito interessante ver nas redes de consumo de alimentos, por exemplo, como vão aparecendo outras iniciativas que criam novas cadeias de distribuição para a produção da agricultura familiar, da produção do MST. Como é possível fazer isso em outras áreas de nossas vidas, utilizando tecnologias que não potencializam as formas de controle sobre os usuários?

 

Fernanda Bruno: vou passar para a última questão, que tem a ver com o coletivo, com o “nós”, o habitar junto esse acontecimento, essa situação limite, e que é, de novo, um tema recorrente no trabalho de vocês dois, e se torna absolutamente urgente em uma situação de isolamento, ao mesmo tempo em que há grupos que estão extremamente vulneráveis e onde as possibilidades de ação comum estão bastante ameaçadas pelo fantasma do contágio e pelas medidas efetivas da contenção da pandemia.

Hoje fiz uma contribuição no site da Zona de Contágio e vi que já há um material bastante rico. Tem música, poesia, relato, fotografias, e uma série de expressões da experiência desse tempo. E a conversa sobre o livro da Isabelle Stengers, que rolou na semana passada, sobre o livro No Tempo das Catástrofes, foi extremamente diversa. O fluxo da conversação febril tocou em muitos temas: educação, China, autonomia, sabão de coco, moradia de albergues, coletivos artísticos na Bolívia, receitas, acupuntura, tecnologias sociais, poesia, etc.

Que primeira impressão vocês têm desses dois movimentos: a chamada de envio de materiais em torno de experiência da pandemia e o grupo de estudos? Gostaria de ouvir vocês sobre o primeiro contorno que  esse “nós” ou esse coletivo ganhou.

 

Alana Moraes: a nossa pergunta inicial, que tem sido uma pergunta que acompanha todo o processo da investigação no Laboratório do Comum e também agora na Zona de Contágio, é como constituir um grupo de pesquisa. Como é que a gente faz esse “nós” que está pensando junto e que está pesquisando junto. Esse é um tema que segue com a gente durante todo o percurso. Obviamente que ele tem um risco, que pode ser a própria dissolução do grupo. O risco justamente é esse, de ser tão heterogêneo, tão particular e tão singular, que se torna incapaz de construir um lugar mais estabilizado.

Pensando um pouco a partir desse desafio sobre que tipo de desenho de pesquisa seria possível, a gente propôs um primeiro movimento, que talvez seja um movimento de abertura total que começa assumindo o fato de que toda produção de pensamento é também uma produção de experiência a partir de corpos sensores. Queremos saber de que forma as pessoas estão sendo afetadas por esse acontecimento e como elas elaboraram formas de narrar esse acontecimento, seja em um forma mais poética, uma imagem, um texto, um áudio…a gente está experimentando essa abertura completa.

A gente queria entender de onde as pessoas estavam falando e como elas queriam falar, ou seja, talvez tentar experimentar esse parlamento de corpos-sensores, que também é uma abertura radical. A partir de agora, nos próximos movimentos do laboratório, o que a gente vai tentar é justamente produzir certos contornos, algumas bordas, vamos dizer assim, que são zonas de confluência.

Essas zonas de confluência vão tentar desenvolver temas que estão dentro dessa pesquisa e que tem a ver com a biovigilância, com a ideia do desempenho, com esse cruzamento entre tecnologias da domesticidade e as tecnologias digitais em suas inúmeras formas de mediação, e tem a ver com esse pano de fundo maior que é pensar o que significa isso de biopolítica e de biopoder na situação como essa que a gente está atravessando agora.

 

Henrique Parra: acho há um diálogo entre a experiência do site, esse grupo de estudos e algumas iniciativas que foram lançadas de maneira relativamente independente. É legal ver como a Zona de Contágio vai acontecendo. Acho que a gente tinha algumas ações organizadas, colocamos elas “na rua”, começamos a praticá-las e começamos a visualizar como elas estão acontecendo e como elas podem criar linhas e tramas entre elas.

No próprio site Zona de Contágio, o primeiro movimento que a gente fez foi passar a publicar coisas que nos interessavam, ler e compartilhar com outras pessoas, textos que já estavam em circulação, textos que servem de inspiração e que, de alguma maneira, ajudam a nortear um pouco a forma como a gente está querendo habitar esse problema.

A gente tinha também uma vontade, que estava organizada para esse semestre, que era fazer um ciclo de estudos, que estávamos chamando de ciclo de estudos insurgentes. Com a Zona de Contágio virou um ciclo de conversações febris, que a princípio poderia correr paralelo ao processo de investigação, mas a medida que as coisas acontecem, nós repensamos. A gente lança um texto para conversar, mas a coisa que acontece a partir desse texto traz uma outra diversidade de debates, o que faz com que a gente tenha um inflexão para ver como vai alinhando e tramando essas coisas. É muito a partir do retorno que a gente recebe, que nós compreendemos melhor a maneira como a gente está elaborando e e comunicando um problema de pesquisa.  O fato de que a gente tenha recebido muitas respostas de pessoas que fizeram uma produção poética é um dado importante.

A proposta de que um Laboratório do Comum deve ser permeada por um conjunto heterogêneo de perspectivas é outro elemento importante. Claro que quando a gente divulga algo pela internet, isso já exclui um monte de gente. Claro que a maneira como escrevemos um texto faz com que algumas pessoas se sintam mais interpeladas que outras. Ainda assim, parece importante produzir um problema que possa ser transversal e experimentar criar um espaço em que pessoas de diferentes perspectivas possam estar juntas.

A partir daí surge um outro problema que é como a gente constitui um coletivo de investigação e como que a gente vai criando protocolos, infraestruturas, acordos, perguntas, que podem dar sustentação a uma prática coletiva. Há uma preocupação na criação de um laboratório do Comum, que é como que a gente desenvolve essas tecnologias de pertencimento em torno de uma mesma prática, uma saber-fazer habitar.

Saber qual é o conjunto de perguntas e implicações que atravessam essas diferentes histórias e interesses dessas pessoas, mas que podem, gradualmente, ir ganhando um contorno que também nos interessa (“interesse” como aquilo que diz respeito a “estar entre”. Então não é que a gente não tenha perguntas que organizam isso. Temos e, de alguma forma, elas participam da criação dessa borda.

Uma preocupação nossa, desde o início, em fazer uma chamada de pesquisa que está acontecendo nessasituação de pandemia, em que as pessoas estão em isolamento e parte dessa interação vai acontecer a partir de uma mediação tecnológica, é como a gente evita uma certa prática de pesquisa tecnicamente mediada, que é de ordem extrativista, em que a gente elabora a pergunta, define os problemas e quer saber como as pessoas estão dialogando com essa pergunta que a gente tem.

No fundo, a gente também está atrás da criação de outras perguntas, outros problemas para olhar para essa situação. Evitar também uma prática de uma pesquisa que desconhece ou não se relaciona com o contexto dessa pessoa que está respondendo também nos parece importante. Por isso que um ponto de partida na arquitetura do laboratório e na ideia do corpo-sensor, é como criar uma infraestrutura de pertencimento. Isso se tornar uma parte do problema da pesquisa, pensar como a gente vai dando sustentação coletiva a uma prática de investigação. A ideia de um Laboratório do Comum funda uma certa comunidade, não no sentido do unitário e homogêneo mas no sentido de um coletivo de afetados por aquelas mesmas questões.

 

Fernanda Bruno: essa questão do pertencimento me parece essencial. Hoje, dando uma olhada nas contribuições enviadas ao site, vi algo comum: me pareceu que quase todo mundo desejou expressar algo que era da ordem de uma interrupção, um intervalo, uma brecha, algo que estava fora das respostas imediatas que esse momento nos exige, seja de trabalho, seja de pensamento articulado ou de segurança.

Me pareceu que estavam todos tentando expressar momentos de respiro, de interrupção de um certo automatismo cotidiano ou de fuga dessa culpa de não estar trabalhando, não estar produzindo. Capacidade de criação mesmo. Tudo que apareceu ali, apareceu um pouco como brecha, respiros, invenções dentro desse contexto que é muito asfixiante. Essa foi a minha sensação e também o meu desejo. Não quis enviar nada que fosse, por exemplo, uma reflexão intelectual que pudesse ser confundida com trabalho, no sentido mais convencional, mas  sim algo que escapasse das demandas que estão colocadas, as demandas dos nossos aparatos de trabalho, de saúde, de poder, de vigilância. Enfim, a impressão foi de um tom recorrente, apesar da heterogeneidade dos materiais.

 

Henrique Parra: voltando um pouco nesse comentário que você fez, acho que esse é um desafio dessa proposta de laboratório: como a gente vai modulando e incorporando novos elementos. Uma coisa que chamou atenção no perfil das pessoas que entraram em contato conosco é que quase todas estão desenvolvendo, de alguma forma, ações de pesquisa, seja de maneira informal ou não, mas elas estão interessadas, estão praticando uma forma de reflexão sobre o que está sendo vivido.

Também surge para nós a pergunta sobre de que maneira a Zona de Contágio pode ser tanto uma investigação coletiva, a partir de um conjunto de questões que a gente constitui como borda desse percurso mais coletivo de investigação, mas também uma zona de confluência entre essas diferentes iniciativas de pesquisa (informal ou formal) que as pessoas estão fazendo.

Estou imaginando como é que a Zona de Contágio pode ser as duas coisas: ela cria a possibilidade de realizarmos o percurso coletivo de investigação, a partir de perguntas que estão balizando e da “arquitetura” da forma laboratório, mas ao mesmo tempo ela pode ser atravessada pelas novas perguntas e investigações que as pessoas estão criando e que podem compartilhar, fazendo da Zona de Contágio uma caixa de reverberação.

 

Fernanda Bruno: esse atravessamento me pareceu acontecer mais vigorosamente na conversa em torno do texto da Isabelle Stengers do que na chamada. Na chamada, talvez tenha que haver uma segunda onda, novos movimentos para que essa dimensão da pesquisa apareça mais. O que senti, muito de fora, foi um desejo de fuga de um certo lugar da pesquisa. Não da pesquisa em si, mas de um certo lugar de pesquisa.

As pessoas estão querendo habitar um outro lugar nesse momento e alimentar outros fluxos de pensamento, de expressão, de narrativa etc. É fundamental que esse cruzamento com a pesquisa, para usar a imagem da encruzilhada que vocês utilizam também, seja feito. Vai ser muito rico quando isso acontecer e vai acontecer, com certeza.

 

Alana Moraes: eu queria agradecer pela conversa. Achei muito importante sua observação final desse primeiro material que a gente recebeu na Zona de Contágio. Ela conflui muito para uma coisa que nós estamos pensando juntos, que talvez seja justamente sobe pensar essas tecnologias de frenagem ou como a gente produz infraestruturas que possam sustentar coletivamente esses momentos de frenagem, esses momentos de respiro.

Nos últimos anos eu tenho estudado com os sem-teto as ocupações de terreno também como tecnopolíticas de habitar a exceção. Uma coisa que aparece muito, nessa experiência, é como as pessoas chegam nos acampamentos, nas periferias aqui de São Paulo, a partir desse relato de cansaço e de esgotamento. As pessoas falam muito que a ocupação é um lugar de descanso, um descanso da casa, da domesticidade, mas um lugar de descanso em relação ao trabalho, às virações, à essa ideia de que você tem que estar sempre trabalhando ou procurando um trabalho. Ela se torna potente justamente porque ela se constitui como uma tecnologia de frenagem, de respirar junto e de pensar em companhia.

 

Série Lavits_Covid19

 

A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.

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