Secretarias de educação entregam alunos de bandeja como clientes para gigantes da tecnologia

Google vai abocanhando os dados da educação pública nos estados e municípios sem nem mesmo prestar assessoria técnica. Termos de uso também não são adequados à realidade brasileira

 

Como adultos, muitas vezes optamos por dizer sim aos termos de uso de grandes empresas de tecnologia, firmando relações contratuais que são explícitas e, até certo ponto, típicas e tradicionais. Cabe às crianças que estudam nas escolas públicas das redes estaduais tomarem o mesmo tipo de decisão sozinhas? Os governos estaduais do Rio Grande do Sul, do Pará e de São Paulo parecem achar que sim.

O governo de São Paulo foi um dos primeiros a firmar um acordo com a Google para a inserção de suas aplicações educacionais nas escolas públicas da rede estadual, em 2013. Em 2015, foi a vez da secretaria de educação do Rio Grande do Sul fazer o mesmo por meio de uma empresa intermediária, a MSTech. Já no ano passado, a administração pública paraense fechou um grande acordo que orquestra Google, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e uma startup local de tecnologias educacionais, a Inteceleri. Há notícias sobre acordos semelhantes envolvendo o Google e o BID no Amazonas.

Esses acordos abrem as portas das escolas para a entrada dos alunos nas aplicações Google, com todas as questões de privacidade e uso de dados derivadas. O acesso é feito via login institucional no formato [nome do aluno]+[sobrenome]@aluno.educacao.[estado].gov.br. Há pequenas variações entre os estados e os professores também podem receber logins semelhantes.

A secretaria da educação paulistana fornece o login automaticamente em seu próprio ambiente digital, criado para alunos e a comunidade escolar, a Secretaria Escolar Digital (SED). Ao se criar um login institucional (de aluno ou professor) para acessar a SED, é gerado automaticamente uma conta institucional Google e outra Microsoft, em função do governo de São Paulo ter acordos com as duas empresas.

 

Privacidade frágil

O sistema tem evidentes vulnerabilidades de segurança. Não é preciso ir até nenhuma esquina escura da internet para encontrar manuais “não oficiais” voltados para professores que revelam que a senha do aluno na SED é a data de nascimento do estudante – que este pode alterar depois do primeiro login. Até o fechamento da reportagem, a Secretaria da Educação não respondeu às perguntas enviadas sobre o manual e sobre as condições de acesso às aplicações Google. As instruções nada seguras de acesso à plataforma continuam disponíveis a partir de uma busca simples.

No Pará, a decisão de criar uma conta institucional Google não é automatizada e as condições de acesso são um pouco menos obscuras. Os alunos menores de 18 anos precisam retirar uma cópia ou fazer o download de uma autorização para os pais ou responsáveis assinarem e entregar esse papel na secretaria de sua escola para, então, sua conta ser criada. No Rio Grande do Sul, por outro lado, a secretaria de educação (Seduc) afirma que não há um formulário padrão para pedidos de autorização aos pais. Há um modelo de autorização disponível online timbrado com a identidade visual da Seduc direcionado para pais e responsáveis dos estudantes, mas ele é apontado pela assessoria de imprensa como uma iniciativa independente de uma das 29 Coordenadorias Regionais de Educação gaúchas.

Entre os alunos e professores das escolas estaduais do RS há 146 mil logins institucionais ativos Google. Já no Pará, o número é de 35.712 contas. O site da Seduc paraense divulga que estão sendo “ativados” logins institucionais de mais de 800 mil pessoas entre gestores escolares, educadores e alunos da rede pública de ensino fundamental e médio estadual para acesso às aplicações Google.

O contrato do BID com a empresa local terceirizada, a Inteceleri, vai até o final de 2018. Por isso, a meta do acordo com a secretaria estadual é, na verdade, criar contas para 120 mil alunos e professores, assim como capacitar 20 servidores estaduais da área técnica a prestar assessoria. O plano então é encarregar 100 “agentes multiplicadores” de ficarem responsáveis por atingir mais de 600 mil pessoas a partir de 2019. Até lá, a Inteceleri também concentra o serviço de atendimento para dúvidas e dificuldades técnicas, embora seja apenas uma empresa consultora.

Walter Júnior, sócio-diretor da Inteceleri, acredita que o fim do contrato não significa o fim do programa porque “a licença para a plataforma e as aplicações Google é eterna para a Secretaria de Educação”. Os logins dos alunos, diz Júnior, também seriam “eternos”, com 5TB disponíveis para cada aluno ou professor para armazenamento voluntário de mensagens, arquivos e contatos nos servidores Google. Não há, a princípio, material didático disponibilizado online que possa ser acessado via login institucional. Fica a cargo dos professores escolherem, se assim desejarem, produzir, selecionar e enviar conteúdos a cada uma de suas turmas.

 

Regras específicas… às vezes em inglês

A Google empacota suas aplicações de diversas formas para atender necessidades de gerenciamento de trabalho dos seus clientes organizacionais, sejam eles escritórios (G Suite for Business), instituições sem fins lucrativos (G Suite for Nonprofits) ou escolas (G Suite for Education). A sua aplicação mais característica para o ensino é a Google Classroom (Sala de Aula, em português) que tem como funcionalidade básica para o professor a montagem de uma sala de aula online na qual é possível disponibilizar conteúdos, exercícios e agendar tarefas. Qualquer usuário Google pode, mesmo sem conta institucional, ter acesso ao Google Classroom. Somente o acesso ao Classroom via G Suite for Education é que se encontra restrito por login institucional porque esse seria um ambiente Google onde os dados dos usuários são tratados por regras um pouco diferentes das que regem as contas comuns.

Uma das diferenças principais é que os dados originalmente gerados ou armazenados a partir do login em conta institucional no G Suite não seriam usados para refinar os anúncios que a Google veicula para aquele usuário em particular. As aplicações da empresa acessadas a partir dessas contas específicas teriam ambientes online livres de propaganda. Isso, porém, não significa que as informações dos usuários não sejam coletadas e processadas pela empresa em suas análises de inteligência.

Outra diferença, pelo menos no caso das contas dos alunos da rede estadual paulista, é que o administrador do domínio – a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo – “tem acesso às informações da sua conta, incluindo os dados que você armazenar com essa conta nos serviços Google”. Em uma das poucas páginas sobre privacidade e proteção de dados disponíveis em português o site da empresa diz especificamente: “para os usuários do G Suite em escolas dos ensinos fundamental e médio, o Google não usa informações pessoais, ou informações associadas a uma Conta do Google, para segmentar anúncios.”

Os termos do G Suite for Education para os usuários com logins de instituições de ensino em geral, segundo Leonardo Ribeiro da Cruz, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e pesquisador da Lavits, seriam melhores do que os termos que regem os logins comuns da Google. Isso porque atendem às exigências e garantias presentes nas leis e acordos de proteção aos estudantes dos Estados Unidos, em especial o Student Privacy Pledge . Os termos do G Suite for Education foram atualizados recentemente com emendas que contemplam a lei europeia de proteção de dados (GDPR, na sigla em inglês). Um pedido de consentimento à parte, específico para esses itens complementares emendados aos termos originais, é recolhido online junto aos usuários que já utilizavam a plataforma desde antes da vigência da GDPR.

 

 G Suite teve início ainda nos anos 2000

 O G Suite, anteriormente chamado “Google Apps for Your Domain”, foi lançado em 2006. A Student Privacy Pledge foi lançada e assinada pela Google apenas em janeiro 2015, como uma campanha na qual os signatários deveriam se comprometer publicamente a cumprir certas regras ao lidar com dados de estudantes dos Estados Unidos. A carta expressa um compromisso público dos signatários em não expor os dados dos estudantes a tratamentos não autorizados pelas escolas e pais/responsáveis, que excedam os propósitos escolares ou educacionais.

Em dezembro de 2015, a instituição sem fins lucrativos Eletronic Frontier Foundation (EFF) registrou queixa de que a Google estaria desrespeitando a SPP, porque as configurações administrativas que a empresa fornece para as escolas incluíam a permissão para a troca de informações dos estudantes com sites de terceiros. Ainda que a empresa esteja sujeita à aplicação de outras regulações nos EUA, como a Family Educational Rights and Privacy Act (FERPA), a Google já se mostrou disposta em outras ocasiões a desdenhar aquilo que os usuários tem em vista quando se valem de suas aplicações, mesmo quando essas intenções são explícitas.

Por exemplo: a pesquisadora de Harvard Shoshana Zuboff destaca a mudança histórica na metodologia das operações da Google que se deu entre 2001 e 2004, registrada na patente do serviço de busca da empresa. “A grande novidade dessa metodologia era que eles estavam habilitados a acessar dados comportamentais independentemente das intenções dos usuários, e mesmo quando essas intenções dos usuários eram explicitadas. Desde então esses dados adicionais de centenas de milhões de usuários estariam sendo usados para analisar e definir padrões preditivos. (…)Esses métodos foram inventados e então primeiramente empregados de 2001 a 2004. Foi só a partir da oferta pública da Google, em 2004, que o mundo começou a ficar a par do que estava acontecendo.” (tradução minha). O sucesso dessa investida, para Zuboff, dependeria de fatores específicos, entre eles a possibilidade de ela ser realizada em um território desregulado. A pesquisadora investiga a concentração de esforços atuais da Google em desenvolver “produtos preditivos desenhados para prever e moldar comportamentos agora, em breve, mais para frente”. Ao usarem os seus serviços, as pessoas geram dados comportamentais que a Google troca “com outras empresas, clientes que aprenderam a fazer dinheiro com apostas de baixo risco em futuros comportamentos dos usuários”. 

Mesmo que seja controverso o potencial da empresa em realizar sua declarada pretensão de conhecer seus usuários melhor do que eles conhecem a si mesmos, a operação da Google seria em função disso caracterizada por desestabilizar princípios como o do consentimento explícito e (previamente) informado. Como efeito, os riscos imiscuídos nos contratos ou termos de uso firmados entre a Google e o usuário das suas aplicações ficariam todos a cargo de apenas uma das partes, ou seja, a empresa estaria vantajosamente se isentando de sofrer qualquer percalço nessa relação.[1] 

No Pará, a autorização entregue aos pais dos alunos é muito semelhante aos termos de uso comuns e tem nove links para sites com conteúdo em inglês. Além disso, está presente repetidamente o termo “K-12”, usado nos EUA para se referir ao ensino primário e secundário. Essa é uma denominação que também se usa na Austrália e no Canadá, mas estranha aqui no Brasil. Rafael Zanatta (USP), pesquisador da Lavits, destaca que nos EUA há uma lei federal e leis estaduais que definem regras para privacidade dos estudantes que devem incidir sobre os termos do G Suite for Education em território americano. “Isso ainda não é nem uma questão aqui, pois o Estatuto da Criança e do Adolescente foi criado em 1990 e não prevê regras para proteção de dados pessoais”, diz Zanatta. O projeto de lei de proteção de dados, que foi aprovado recentemente, possui artigo específico sobre informações de crianças.

 

Informações vendidas a terceiros

Zanatta ressalta fato de que, mesmo que a autorização recolhida dos pais ou responsáveis seja baseada em um referente legal dos EUA, isso não anula sua validade como contrato. Em tese, a relação entre a comunidade escolar – pais, alunos, professores e pais – continua a mesma, com os pais confiando ao professor a seleção e disponibilização de conteúdos educativos, dentro do planejamento mais abrangente da política governamental para a educação. Na prática, a própria autorização entregue aos pais e responsáveis dos alunos da rede de ensino pública paraense deixa explícito que não é tão simples:

“Com o consentimento dos pais ou responsáveis. O Google irá compartilhar informações pessoais com empresas, organizações ou indivíduos fora do Google quando tiver o consentimento dos pais (para usuários abaixo da idade de consentimento), que podem ser obtidos através das escolas do G Suite for Education.”

A lista do que a Google descreve como “informações pessoais” é longa e inclui desde a foto do perfil que o aluno eventualmente pode vincular à sua conta até dados como identificação do dispositivo que ele usa para fazer o login, localização via GPS, características da conexão com a internet, etc. Não menos importante, o texto do documento também cita como “informações pessoais”, que estão sujeitas a irem parar na mão de terceiros se a Google assim decidir (sem dizer quais terceiros seriam), os detalhes sobre o modo como o aluno utiliza as aplicações. Isso incluiria o tempo que ele demora para fazer uma determinada tarefa online passada pelo professor, por exemplo, e a própria avaliação recebida pelo seu desempenho calculada por gabarito ou atribuída pelo educador.

É razoável afirmar que isso também é valido para os professores, ou seja, a plataforma também pode se valer de informações sobre os planos de aula elaborados pelos docentes e o modo como eles corrigem as atividades dos alunos online, respondem dúvidas ou se relacionam com a direção da escola por email, entre muitas outras coisas.

 

Domínio do mercado e falsa modernização

“A princípio, existe o problema da hegemonização do uso de uma tecnologia proprietária em sala de aula, principalmente essa, criada por uma empresa que se financia através de dados e também pelo uso contínuo de sua própria plataforma”, ressalta Leonardo.

As aplicações Google para a educação possuem 60 milhões de usuários, entre alunos e professores, pelo mundo. No Brasil, segundo a empresa, são 26 milhões. A assessoria de imprensa da Google se recusou a responder as perguntas enviadas sobre contratos vigentes e seus planos de negócio envolvendo a educação brasileira. Para Leonardo, as informações disponíveis para que a comunidade escolar da rede estadual paraense possa tomar decisão sobre fazer ou não parte disso são muito fracas. A autorização também destaca que os dados dos alunos da rede pública que são menores de idade não seriam usados para segmentar publicidade. No entanto, não diz quais os tipos de operações a Google está fazendo a partir desses mesmos dados, além de pedir permissão para recolher e entregar ou vender informações para terceiros.

A assessoria de imprensa da Secretaria de Educação de São Paulo fez questão, por exemplo, de ressaltar que as informações da plataforma própria do governo voltada para a comunidade escolar não compartilha os dados da SED com a Google. Além disso, afirma que o acesso às contas (da SED, da Microsoft, da Google) é “opcional” tanto para alunos, quanto para professores e gestores de escolas públicas. A Secretaria não informou quantos alunos das escolas estaduais paulistanas possuem atualmente contas Google.

A plataforma seria, portanto, algo que os alunos paulistas, com seus logins institucionais, usariam em casa para atividades de ensino complementares àquelas realizadas na escola. Os tutoriais disponibilizados ensinam a usar as aplicações Google no celular, ou seja, em um dispositivo pessoal do aluno. Há incentivos e tutoriais da Google, por exemplo, para que alunos também se tornem “tutores” com a incumbência de levar outros alunos e mesmo seus professores a usarem as aplicações da empresa.

Vale lembrar que o Gmail, que faz as vezes de sala de entrada para as aplicações Google, já foi até mesmo noticiado como um serviço de email no qual a empresa não só vasculha o conteúdo das mensagens como também permite que terceiros o façam. Leonardo, da Lavits, destaca o modo como a Google está concentrando cada vez mais dados da educação pública brasileira como um todo. “Acaba sendo a ‘única forma’ de modernização tecnológica nas escolas públicas”

 

Mapa das escolas em mãos privadas

Leonardo aponta ainda que um das consequências é a “centralização dos registros escolares dos alunos, como notas, evolução nas disciplinas, facilidades e dificuldades, até quanto tempo eles gastam para resolver uma tarefa. Quem vai ter acesso a esses dados? Para que serão utilizados? A Google, uma empresa que trabalha com coleta de dados, vai monopolizar os registros educacionais de todos os alunos dos estados que têm esse acordo com ela”.

Nos municípios, por sua vez, a empresa têm investido mais ostensivamente com a inserção não apenas de aplicações, mas de dispositivos Chromebooks (o notebook da Google) na educação básica. Há registros de alunos de Cordeirópolis (SP) e Mogi das Cruzes (SP) entre os que foram introduzidos nas tecnologias Google dessa forma.

As regras para tratamento de dados da comunidade escolar do ensino público contida nas autorizações e mesmo nas regulações vigentes, para Leonardo, são insuficientes. “Também é uma questão de privacidade na prática, não só de esperar uma proteção formal. É preciso criar espaços de formação para que a criança comece a entender o que é a Google, o que são dados pessoais, o que são os metadados, como funciona o mercado de dados etc. É uma cadeia de gente – professores, administradores, alunos e pais de alunos – que precisa estar muito bem informada e saber o que está acontecendo”.

[1]Ver: ZUBOFF, Shoshana. Secrets of Surveillance Capitalism. Conferência apresentada na Queen’s University. Kingston, Canadá, Novembro de 2017. Disponível em: <https://stream.queensu.ca/Watch/a7ZBk45D> Acesso em: 30 de jul. de 2018.
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