Anna Bentes concedeu ao Grupo de Pesquisa em Comunicação, Tecnologia e Economia da Universidade Federal do Maranhão (ETC/UFMA) uma entrevista exclusiva sobre privacidade e proteção de dados.
Bentes fala sobre a importância de entendermos o assunto para reivindicarmos nossos direitos e tomarmos certos cuidados. Abaixo reproduzimos a entrevista originalmente publicada no Medium do ETC.
1. Qual a importância de discutir Privacidade e Proteção de Dados hoje?
Hoje, considerando nosso contexto de uma sociedade hiperconectada em tecnologias de informação e comunicação, discutir privacidade e proteção de dados é absolutamente fundamental para entendermos e reivindicarmos nossos direitos e tomarmos certos cuidados.
Para entendermos o porquê, é preciso destacar algumas características do nosso presente: 1. Datificação da vida: hoje, toda e qualquer ação é transformada em dados quando usamos as tecnologias e redes digitais. Isso significa que nossas formas de comunicação e interação estão constantemente sendo monitoradas para acumular imensos volumes de dados na escala do big data. Tais dados revelam muitos aspectos sobre nós, nossas preferências, hábitos, emoções e personalidade.; 2. Economia de dados: esse processo de datificação das nossas experiências está diretamente relacionado a uma economia baseada em dados, na qual os dados são a principal fonte de produção de riqueza e inteligência para os negócios; 3. Exposição nas redes sociais: as redes sociais se tornaram espaços nos quais as pessoas compartilham e trocam aspectos de sua experiência cotidiana e, até mesmo, de sua intimidade.
Nesse contexto, a privacidade é um direito fundamental, garantido pela constituição, que envolve preservar nossas informações, comunicações e experiências desse circuito econômico marcado por uma vigilância massiva de nossas ações. Por outro lado, a proteção de dados é também a regulação que garante que, no fluxo de circulação e tratamento de nossos dados pessoais, a coleta e uso de tais informações respeitem regras específicas de modo a não prejudicar o titular de dados. À vista disso, discutir a proteção à privacidade e aos nossos dados são aspectos importantíssimos em nossas sociedades hiperconectadas.
2. Mesmo sem ter nada a esconder, porque devemos nos preocupar com a nossa privacidade?
Essa fala de que “quem não tem nada a esconder, não precisa precisa se preocupar com a privacidade” é uma das falas mais sem sentido, que foi repetida inúmeras vezes neste século. Ela me faz lembrar um TED Talk do Glenn Greenwald, jornalista responsável por trazer a público as revelações do Edward Snowden sobre a NSA em 2013, no qual ele faz um simples teste. Para mostrar a importância da privacidade quando alguém diz algo parecido com isso, ele pede que a pessoa compartilhe suas senhas de email, redes sociais e etc. Em um tom divertido, ele conta que nenhuma pessoa sequer forneceu uma senha para ele.
Tudo isso era para mostrar que, sim, temos coisas sobre nós que não queremos que outras pessoas saibam, o que não significa que sejam coisas erradas nem ilegais. Se você falou mal do seu chefe para um colega de trabalho, você não quer que ele saiba. Se você conta um segredo seu para um amigo, você não quer que outras pessoas saibam. Em suma, não há nada errado em querer esconder certas coisas sobre você e a sua vida, pois é um direito seu previsto em lei.
Mas a privacidade é mais do que um direito, ela é um tipo de experiência social historicamente construída. Quem se interessar sobre isso, vale procurar os vários volumes da coleção História da Vida Privada, que mostra como essas fronteiras entre o público e o privado foram sendo construídas e transformadas ao longo dos séculos. Nessa história, a privacidade como um direito surge no fim do século XIX como uma liberdade negativa, ou seja, como um direito de ser deixado só. E a história da privacidade como um direito esteve intrinsecamente ligada ao desenvolvimento das tecnologias, especialmente as de informação e comunicação.
Atualmente, o direito à privacidade está intrinsecamente ligado ao direito à proteção de dados, pois nossas formas de sociabilidade, de trabalho e de comunicação são mediados por tecnologias que coletam, tratam e usam dados sobre nós. Como falamos anteriormente, no contexto sociotécnico que vivemos marcado pelos processos de datificação e plataformização, independente se você tem ou não algo a esconder, seus dados estão sendo capturados por grandes corporações de tecnologia que utilizam essas informações para seus respectivos negócios. E seus dados revelam muito sobre você e podem estar sendo usados para afetar suas decisões e comportamentos, por vezes até, contra seus próprios interesses.
Mesmo que alguns sigam afirmando que não têm nada a esconder, isso não significa que você queira exibir e expor todos os aspectos da vida para outras pessoas ou organizações. Pensada junto com a proteção de dados, a privacidade hoje assume outras características, mas que ainda são importantes de serem preservadas em um contexto de hipervigilância.
3. No Capitalismo onde tudo é mercadoria, os nossos dados se tornaram muito rentáveis, quais os impactos disso na vida social e na nossa subjetividade?
São incontáveis impactos e já existem uma série de estudos demonstrando diferentes dimensões deles. Focando na questão específica da capitalização dos dados, vou ressaltar dois desses impactos que merecem nossa atenção e que, por sua vez, apontam para vários outros.
- Controle Social
Os dados sozinhos talvez não tenham muito valor. O que agrega valor aos dados é sua combinação com outros dados, seu tratamento e processamento, frequentemente, feito por sistemas automatizados, que, por sua vez, produzem conhecimento estratégico sobre indivíduos e grupos. Esse conhecimento sim é extremamente valioso. Ele vai auxiliar a tomar decisões sobre negócios, otimizar processos, entender seus clientes, entre outras coisas.
Em suma, esse conhecimento vai permitir um maior controle social sobre as pessoas, sejam funcionários, clientes, usuários etc. Como dizia o filósofo Michel Foucault, o saber mantém uma intrínseca relação com o poder. Nesse sentido, é importante lembrar que nossos dados revelam aspectos sobre nosso comportamento, personalidade e formas de sociabilidade.
Quando a Lei Geral de Proteção de Dados coloca, em seu art 2º, que um dos seus fundamentos é a autodeterminação informativa, há também uma preocupação com isso, pois é a garantia de controle do titular sobre seus dados pessoais. Embora coletados por empresas que capitalizam sobre eles, nossos dados são nossos e não delas, e nós temos o direito de ter controle sobre as informações produzidas sobre nós.
2. Visibilidade
Esse contexto de coleta intensa e valorização dos dados nos coloca sob um regime de visibilidade, monitoramento e escrutínio inéditos. Nunca antes na História fomos tão vigiados, não à toa o termo Capitalismo de Vigilância, da autora Shoshana Zuboff, se popularizou para descrever a fase atual do capitalismo.
Como essa vigilância é feita, na maior parte das vezes, por sistemas tecnológicos automatizados em plataformas, sites e aplicativos da internet, grande parte das pessoas não se sentem diretamente vigiadas. É um tipo de vigilância bem mais sutil e que está integrada aos mais variados ambientes online e offline. Isso é preocupante porque, frequentemente, sequer nos demos conta de que nossa privacidade está sendo violada e, possivelmente, acabamos nem nos importando com isso. Porém, como disse antes, esse escrutínio contínuo através de tecnologias que datificam nossas experiências geram conhecimento sobre nós que pode ser, muitas vezes, usado contra nossos próprios interesses.
Além disso, como muitas plataformas possuem um modelo de negócios baseado em dados, elas também estimulam que seus usuários compartilhem informações pessoais, tornando esse compartilhamento uma característica intrínseca da sociabilidade na cultura digital. Deste modo, a gente vê as fronteiras entre o público e o privado cada vez mais embaralhadas. Assim, somos estimulados a tornar nossa vida visível e a nos relacionar com outras pessoas através dessa visibilidade. Aquela frase famosa da internet revela muito sobre aspecto: “Se você não é visto, não é lembrado”. Tudo isso desencadeia outros processos subjetivos que podem gerar uma série de angústias também como a comparação ou competição por essa visibilidade, sentimentos de inferioridade quando não está atendendo aos critérios de visibilidade, entre outros.
4. Considerando as suas pesquisas, o que é Economia da Atenção e qual a relação disso com o Neoliberalismo ou Capitalismo de Vigilância?
Essa é uma pergunta gigante (risos) que mobiliza três conceitos bem complexos e que não vai dar para explicar profundamente cada um deles, mas tentarei de forma sintética resumir aqui algumas das relações entre eles.
Antes, vale a pena destacar que, sem dúvidas, são três noções decisivas para entendermos nosso presente, que atravessam diferentes dimensões da vida social e subjetiva na contemporaneidade.
Nas minhas pesquisas, eu venho tentando mostrar como, atualmente, a economia da atenção mantém um vínculo intrínseco com o capitalismo de vigilância. E isso é particularmente evidente em redes sociais ou em outras plataformas de publicidade. Pois, para acumular os imensos volumes de dados, é preciso reter a atenção dos usuários, uma vez que é sua presença e suas ações nas plataformas que vão ser datificados. Deste modo, as plataformas bem sucedidas são aquelas que conseguem, em meio ao excesso de estímulos na internet, capturar e reter a atenção dos usuários e, por sua vez, são também as que possuem mais e os mais variados dados.
Já o neoliberalismo, eu gosto de pensar a partir dos autores Pierre Dardot e Christian Laval como a racionalidade do capitalismo atual. Existem muitos ângulos pelos quais podemos olhar os efeitos do neoliberalismo hoje, desde efeitos em políticas públicas, na economia, mas também nas relações de trabalho, nas subjetividades etc.
Por exemplo, um de seus efeitos hoje é toda a relação com a plataformização do trabalho, que vem de um longo processo neoliberal de política econômica que retira direitos e desvaloriza políticas sociais. Um dos exemplos icônicos disso é o modelo de colaborador de aplicativos de entrega ou de transporte como IFood e Uber. Uma vez dentro da plataforma, usuários e colaboradores estão sob a intensa vigilância da empresa que utiliza seus dados e seus sistemas de inteligência artificial para otimizar e capitalizar o serviço. Mas, ainda nesse exemplo, o Uber precisa estimular seus motoristas colaboradores a passarem o máximo de tempo possível trabalhando na plataforma, para isso, usam técnicas de gamificação e ciências comportamentais para manter a atenção dos motoristas para continuar dirigindo pelo máximo de tempo possível.
Mas esse é apenas um ângulo. É possível olhar também para os comportamentos de usuários em redes sociais. Como a racionalidade neoliberal responsabiliza os indivíduos pelo seu sucesso e o seu fracasso e, nas redes sociais, o sucesso é mensurado por mais atenção, engajamento e seguidores, a gente vê uma nova faceta do empreendedorismo de si voltada para alcance de visibilidade. Eu falo bastante disso no meu livro “Quase um tique: economia da atenção, vigilância e espetáculo em uma rede social” para quem se interessar pelo assunto.
Enfim, são relações complexas que aparecem em diferentes fenômenos com mais ou menos graus de intensidade