#2: A distopia da aceleração está a caminho?

Por Rafael Evangelista*

Esse texto também foi publicado pelo Outras Palavras

A rigor, ninguém tem ideia do que vai acontecer daqui pra frente depois da emergência da Covid-19. Mas parece que estamos numa encruzilhada, que se abre para três caminhos em disputa: a exceção, a ruptura e a aceleração.

A exceção busca afirmar que tudo vai voltar a ser como antes assim que o vírus passar, que a normalidade não é só o que desejamos que aconteça como de fato será materialmente possível esse retorno. Então bastariam medidas excepcionais para aliviar a dor e as agruras momentâneas (dos negócios, em especial) e determinar um ponto de saída (como disse o Mandetta). É um misto de estado de negação com forçação de barra, e é a posição do Guedes e dos palhaços em comando.

Fazer deste momento uma ruptura é o que alguns de nós estão tentando, ainda que de uma maneira atabalhoada e desorganizada. A crise do vírus, para além de tudo, seria um sinal ou um efeito de uma ordem que já insustentável por si só e só vamos sair dessa criando estruturas outras, apropriadas para a crise mas que devem e deveriam se tornar permanentes, pois são mais justas, ecológicas e sadias. É a luta contra o 1%, pela redistribuição das riquezas e em parte (porque não devemos ignorar sua apropriação e eventual desvirtuamento) por coisas como a renda básica universal.

A aceleração parece ser a aposta do Vale do Silício (mas talvez também da China, ainda que talvez por outro caminho ou outras ênfases). A crise seria uma oportunidade para por em marcha mais acelerada processos que já se anunciavam, já eram objeto de desejo desses e plano desses atores, mas que ainda estavam em fase de consolidação. Coisas como a educação a distância movida a capitalismo de vigilância ou o home office que aprofunda a exploração do tempo do trabalho e transfere custos fixos de estrutura ao trabalhador (aluguel, luz, internet etc)

A emergência e as urgências do momento criam esse ambiente em que testes das novas estruturas acontecem tendo o mundo como laboratório. Sempre esteve no discurso desse último grupo o estado de exceção permanente, mas antes era restrito a lugares ou sujeitos excepcionais, como o Sul, a extrema pobreza ou o terrorismo. O argumento deles será não só pela impossibilidade da volta ao “normal” como pela insuficiência disso.

É claro que esses grupos não são estanques e contém intersecções, eles são divisões tipificadas para navegarmos melhor pelo momento. Por exemplo, tanto os que advogam que este é um momento de exceção como os que buscam a aceleração entendem que o momento é excepcional, mas só o primeiro tem no horizonte uma volta à “normalidade”, seja por entender que isso será possível ou porque se sentem inseguros com o que vem por aí. Home office e tecnologias aplicadas à educação podem ser coisas importantes para uma ruptura contra a velha ordem do 1% mas é preciso ter claro que, a depender de como forem adotados, podem significar uma piora distópica das atuais condições, apontando para muito mais controle. A renda básica, igualmente, pode ser ferramenta de distribuição de riquezas tanto quanto de expansão definitiva do mercado na saúde, educação, segurança etc.

A China definitivamente luta pela aceleração, mas seu modelo, ainda que usando fortemente de tecnologias de controle cibernético, a princípio significa um rompimento com as estruturas globais dominantes. Exemplar disso é o quanto suas ferramentas são atacadas pela mídia mais alinhada ao Vale do Silício: às vezes corretamente, às vezes com extrapolações e exageros flagrantes que nunca são aplicados aos seus similares ocidentais. A questão é a que cenário global leva a ruptura chinesa, o que também parece estar em disputa.

As peças estão se movendo rapidamente e a ideia de que este é só um momento passageiro de exceção parece se enfraquecer dia a dia. O que vai resultar nisso tudo tende a vir justamente do que vai ser negociado e imposto pelos atores que se ligam aos três cenários, confrontados com a materialidade do isolamento e das mortes causadas pelo vírus. Os patrões de todo o mundo demandam a ação das massas agora semi-confinadas, quase numa greve involuntária em que o único trabalho possível é o mediado por plataformas. Como sempre ele se mostra chave.

*Rafael Evangelista é doutor em Antropologia Social (2010), faz parte do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e é membro da Rede Lavits.

Série Lavits_Covid19

A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.

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