Por que parecem tão distantes os sonhos de uma rede capaz de controlar o poder e favorecer a radicalização democrática? Confira o debate com Rafael Evangelista e Rafael Zanatta, entrevistados por Antonio Martins
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Em 2011, sob impacto da Primavera Árabe e da revolta dos Indignados na Espanha, o sociólogo catalão Manuel Castell anteviu a possibilidade de uma radicalização da democracia, para a qual a internet seria instrumento essencial. Havia razões para tanto. Duas ditaduras árabes – Egito e Tunísia – haviam desmoronado graças a mobilizações facilitadas pelas redes sociais. Em todo o mundo, uma enorme galáxia de sites e blogs desafiava o pensamento monocórdio das velhas mídias, sempre atrelado ao poder. Novas ferramentas digitais convidavam as sociedades a se apropriar de assuntos que haviam sido, sempre, privilégio da elite governante – os orçamentos públicos, por exemplo. Leis que tentavam restringir a rede – como a Sopa, nos Estados Unidos, ou o “AI-5 digital”, no Brasil, eram derrubadas a partir de mobilizações convocadas, sem a necessidade dos partidos políticos, por pequenos grupos conscientes e ativos. Em apenas cinco anos, quase tudo isso mudou.
Já em dezembro de 2012, Edward Snowden revelaria a contrapartida até então desconhecida do que pensávamos ser um esboço de controle social sobre o poder. Cada passo nosso na rede, cada ousadia era vigiada, registrada, classificada. Quanto mais desafiadores, mais vulneráveis: Aaron Schwarz, um dos mais rebeldes, perderia a vida um ano depois, exatamente por isso. Mais grave: a contra-ofensiva não é feita apenas de controle policial. Em meia década, a internet emburreceu um século. Bilhões de seres humanos entraram na rede, neste curto período. Mas tanto para eles, quanto para muitos dos antigos internautas, “navegar” resume-se hoje, na maior parte do tempo, a transitar de uma página a outra do Facebook. Todas cercadas, submetidas a censura, sujeitas a manipulação política explícita. Quanto mais somos seduzidos por este passatempo fácil, mais dados oferecemos a quem se dedica ou a controlar nossos passos, ou a vender, como mercadoria, o mapeamento de nosso desejo. Como regredimos tanto? Será possível um resgate?
Um debate sobre este tema crucial – e naturalmente omitido pela velha mídia – inaugura um novo gênero, nos experimentos que Outras Palavars realiza com produções em vídeo. Há duas semanas, ouvimos, em nossa redação, dois pesquisadores que se dedicam há anos ao assunto – tanto no estudo acadêmico de profundidade quanto em ativismo qualificado. São eles o antropólogo Rafael Evangelista, professor da Unicamp e integrante da Rede Latino Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits); e o advogado Rafael Zanatta, que coordenou o Núcleo de Direito, Internet e Sociedade da USP e atua hoje no IDEC.
Durante uma hora e meia, conversamos sobre o presente e futuro da internet. Abordamos temas que parecem, às vezes, ter importância principalmente material – como o esforço das empresas de telecomunicações (as “teles”) para multiplicar a cobrança pelo aceso à rede. Eles expuseram o que significa a ameaça de mudar a composição do Comitê de Gestão da Internet (CGI-Brasil), em favor destas empresas. Avançamos para considerações sobre os graves sinais de retrocesso na rede e os possíveis caminhos para revertê-lo.
Uma possível síntese das informações e análises lançadas por Evangelista e Zanatta poderia destacar quatro pontos:
> Na disputa pelo que será a Internet, as grandes corporações estão novamente na ofensiva. Elas voltaram a recuperar terreno quando o celular desbancou o computador de mesa e o “laptop”, como principal caminho de acesso à rede. Muito mais populares, os “smartphones” têm, no entanto, duas características perversas. Exigem “aplicativos” dedicados. Ao contrário dos antigos “navegadores”, eles são restritivos, porque não dão acesso ao conteúdo publicado por qualquer participante da Internet. Mais de 2 bilhões de pessoas já baixaram os “apps” criados pelo Google e Facebook. Porém, por meio deles, é possível acessar apenas os serviços oferecidos por estas duas mega-empresas. Além disso, por sua configuração física (som e imagem excelentes, mas teclado mínimo) os “smartphones” são muito menos interativos que seus predecessores. Reduzem o usuário a umconsumidor de conteúdos e inibem sua possibilidade de publicar.
> Esta mudança apassivadora produziu o que o fundador do Wikileaks Julian Assange, qualifica como a redução da Internet a promotora doCapitalismo de Vigilância. Num mundo obsessivamente interligado, quem está na rede de forma passiva é reduzido a mero objeto, dado a ser vendido. Mas a gravidade deste retrocesso ainda não foi compreendida – nem pelos que estão mergulhados na rede, nem pela maioria dos que continuam a enxergá-la como um possível território de crítica e de articulação das sociedades. Superar este déficit – ou seja, perceber que a luta está sendo perdida – é um passo inicial e indispensável para buscar revertê-lo.
> Brechas para tentar um resgate continuam a se abrir, mas precisam ser identificadas – porque não são as mesmas que conhecíamos há poucos anos. Na virada do século, por exemplo, os espaços de diversidade na Internet foram abertos porque o estouro da bolha “ponto.com”, na Bolsa de Nova York, devastou as grandes corporações que tentavam colonizar a rede. Isso projetou empresas então emergentes (como o Google). Em sua disputa com os gigantes da época (a Microsoft, principalmente), eles foram obrigados a recorrer às comunidades do software livre. Hoje, no entanto, os principais executivos do Google são praticamente parte da estrutura do Pentágono e do Departamento de Estado em Washington, como relata Julian Assange numa entrevista recente.
> A luta pelo futuro da Internet será longa e árdua – mas isso não é um convite ao imobilismo. É possível agir desde já, por meio de uma série de caminhos muito concretos. Preferir, ao Facebook, os sistemas de busca e agregação de conteúdos (por meio RSS) em que os critérios são definidos pelo usuário – não por um algoritmo desconhecido e manipulável. Usar software livre. Instalar, contra a vigilância, programas de criptografia, que são muito eficientes. Resistir contra a cobrança abusiva do uso da rede, pelas “teles”. Garantir a integridade do Comitê Gestor da Internet (CGI), uma inovação brasileira de enorme repercussão internacional. Impedir a quebra da neutralidade da rede por meio de estratagemas que fingem assegurar “popularização”, mas criam um “apartheid digital”, por oferecer acesso limitado e paupérrimo. Defender a universalização do acesso integral, em projetos como o Plano Nacional de Banda Larga, abandonado porém cada vez mais necessário.
A entrevista com Evangelista e Zanatta é um sinal de que a luta não está perdida. Ela foi feita, e está sendo difundida, com orçamento baixíssimo. A chamada “convergência digital” reduziu drasticamente os preços dos equipamentos e do registro de som e imagem. Para produzir uma entrevista, basta uma pauta inteligente, ótimos interlocutores, uma fotografia competente, minimalista e criativa. As mesmas redes (Facebook e YouTube) que constroem o Capitalismo de Vigilância precisam – ao menos por enquanto – difundir também os conteúdos que as denunciam e buscam uma alternativa de sentido oposto. A luta não se faz fora do sistema, mas em suas entranhas.
Outras Palavras anima-se de apresentar mais esta iniciativa. Novas entrevistas virão, explorando as brechas existentes. “Re-existiremos”, como gosta de dizer, em tom de blague, Zé Celso Martinez Corrêa. Visões como a de Evangelista e Zanatta nos inspirarão.
*Texto publicado originalmente no site Outras Palavras no dia 10/08/2016.