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Vigilância de dossiê e a produção de arquivos como ferramentas de controle, com Cristina Plamadeala – Lavits

Vigilância de dossiê e a produção de arquivos como ferramentas de controle, com Cristina Plamadeala

Na vigilância de dossiê, o dossiê é a ferramenta de controle que obriga os indivíduos a se autocensurar, a se conter e a agir de forma alinhada às demandas do regime no poder

 

Cristina Plamadeala é doutora em Humanidades pela Concordia University (Canadá) e em Filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (França). Fundadora e coordenadora do “The Dossierveillance Project”, Plamadeala investiga como a produção de arquivos e dossiês desempenha um papel central na condução de comportamentos de indivíduos e populações. Sob a rubrica “dossierveillance” (vigilância de dossiê, em português), a pesquisa examina como, historicamente e na cultura de vigilância contemporânea, estes arquivos têm o potencial de fazer as pessoas temerem agir de determinadas maneiras ou divulgar determinadas informações que podem ser usadas de forma prejudicial contra si.

Plamadeala é uma das editoras do livro “Surveillance and the dossier: record keeping, vulnerability and reputational politics”, a ser publicado pela University of Toronto Press. O volume conta ainda com Ozgun Topak (York University/Toronto) e Rafael Evangelista (Labjor/Unicamp e Lavits) como editores (a chamada completa pode ser vista aqui). Em entrevista à Lavits, a pesquisadora discorre sobre o conceito de dossierveillance, a  pesquisa desenvolvida nos arquivos da polícia secreta da Romênia durante o período comunista do país, as características atuais da vigilância de dossiê e detalha a chamada para contribuições ao livro. 

 

Lavits: Você pode nos falar sobre o conceito de vigilância de dossiê? Qual é o seu contexto histórico?

CP: Eu propus este conceito enquanto cursava meu doutorado na Concordia University (Montreal, Canadá) e na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris, França). Minha tese buscou explicar porque as pessoas colaboraram com a Securitate, a polícia secreta da Romênia durante o período comunista. Minha pesquisa investigou os arquivos ou dossiês da Securitate, documentos produzidos pela polícia secreta romena sobre as pessoas que selecionou para recrutamento ou que colocou sob vigilância. Durante o exame desses arquivos, bem como no processo de consulta às memórias escritas por pessoas romenas que viveram nessas circunstâncias, comecei a identificar o imenso poder que o arquivo da Securitate tinha sobre aqueles que ela recrutou, sobre aqueles que estavam sob vigilância e também sobre aqueles que pensavam que eram vigiados, mas que, na verdade, não possuíam um registro no arquivo (da Securitate)! O arquivo era como um fantasma, um espectro que assombrava as pessoas, inclusive aquelas que trabalharam para a Securitate. Estas também tinham arquivos compilados sobre elas.

A Securitate conseguiu instaurar o medo nas pessoas por meio desses arquivos. Apenas pensar em fazer algo que poderia chamar a atenção da polícia secreta e, assim, compeli-la a abrir um arquivo sobre uma determinada pessoa ou adicionar a um arquivo já existente uma série de fatos incriminadores definitivamente dissuadiu as pessoas de fazer qualquer coisa rebelde.

Dessa constatação surgiu o desejo de dar um nome a este fenômeno, que é um método de terror empregado pela Securitate e, por extensão, pelo regime comunista romeno para controlar sua população. O termo foi apresentado pela primeira vez em um capítulo do livro Making Surveillance States. Na vigilância de dossiê, o dossiê é a ferramenta disciplinar, em termos foucaultianos, de controle que obriga os indivíduos a se autocensurar, a se conter e a agir de forma alinhada às demandas do regime no poder.

O que é mais intrigante neste fenômeno é que não é necessária a existência de um dossiê para funcionar! O simples fato do indivíduo imaginar a existência de um dossiê é suficiente para manter o poder sobre uma determinada pessoa, ou seja, a crença de que tal arquivo incriminador possa existir pode ser suficiente para que alguém se censure ou se torne dócil e tenha medo.

 

Lavits: Quais são as características da vigilância de dossiê na cultura de vigilância contemporânea?

CP: Esse conceito é relevante não apenas para o estudo de regimes totalitários. Nas sociedades de vigilância contemporâneas, por exemplo, a rotina do local de trabalho pode envolver elementos de vigilância de dossiê. Sempre que alguém fica relutante em escrever um e-mail mais ríspido para um colega por medo de deixar um registro que pode, eventualmente, colocar em risco uma promoção, experimenta-se a vigilância de dossiê, por exemplo.

Mulheres grávidas ou no pós-parto que estão lidando com problemas de saúde mental, mas que não revelam seus conflitos e sofrimentos à equipe médica por medo de serem vistas como mães ruins ou serem consideradas incapazes de cuidar dos filhos e, assim, ter seus filhos levados pelos serviços sociais, são um outro exemplo. Na verdade, sempre que alguém teme que a divulgação de uma determinada informação a seu respeito possa prejudicá-la no futuro – caso essa informação seja armazenada em algum lugar e seja empregada por alguém contra essa pessoa – ela está experimentando a vigilância de dossiê. O principal indício da vigilância de dossiê é o exercício de autocontenção ou autocensura sobre a divulgação de informações potencialmente incriminatórias.

Para uma descrição mais detalhada desse conceito e sua relevância para a cultura de vigilância contemporânea, recomendo acessar o Dossierveillance Project que implantei em 2020.

 

Lavits: O que aconteceu com a internet? Agora todos nós temos arquivos sobre nosso comportamento, gostos, localização e sobre as diversas atividades que realizamos online, incluindo atividades políticas. Podemos dizer que o que normalmente era feito pelos governos agora é feito também pelas corporações? Nesse sentido, podemos dizer que as big techs são uma espécie de colaboradoras da vigilância de Estado?

CP: A internet tornou o processo de criação de arquivos muito mais fácil e eficiente. A internet também nos tornou co-criadores desses arquivos. Na verdade, toda vez que nos conectamos à internet, estamos ajudando a criar arquivos para nós: arquivos de redes sociais, arquivos de e-mail, arquivos sobre nossos hábitos de compra, nossos gostos, nossos likes e dislikes, e assim por diante. Embora as informações que deixamos para trás possam parecer inócuas, o fato de deixarmos tantas informações sobre nós não deve ser negligenciado e considerado algo banal. As empresas estão armazenando essas informações para ganho financeiro. Muitos estudos já foram escritos sobre este assunto.

Quanto à questão de saber se as big techs são colaboradoras da vigilância de Estado, eu contestaria o uso da palavra colaborador aqui, e a substituiria pela ideia de ‘cúmplices da vigilância sobre os cidadãos’.

 

Lavits: Qual é o tipo de contribuição que espera do CFP? Você pode destacar quais são os tópicos mais importantes?

CP: Este Call for Papers é um convite a acadêmicos e ativistas para refletir sobre a relevância dos dossiês e, por extensão, da vigilância de dossiê, nas sociedades de vigilância contemporâneas. Os tópicos podem incluir, mas não estão limitados, aos seguintes temas:

A autoprodução de dossiê / The self-generated dossier

Performatividade e o dossiê / Performativity and the dossier

Sistema de crédito social chinês e o dossiê / China’s social credit system and the dossier

Capitalismo de vigilância e o dossiê comercial / Surveillance capitalism and the financial dossier

Sul Global, novas democracias e o dossiê político / Global south, new democracies and the political dossier

Da escravidão aos sistemas de reconhecimento facial racializado / From slavery to racialized facial recognition systems

Histórias da vigilância de dossiê / Histories of dossierveillance 

A vigilância no ambiente de trabalho e o dossiê / Workplace surveillance and the dossier

Relação médico-paciente, controle de doenças e o dossiê / Patient-Doctor relations, disease management and the dossier

Dados de mobilidade, o dossiê e o arquivo digital // Data motility, the dossier and the digital archive

Vulnerabilidade, risco e o dossiê // Vulnerability, risk and the dossier

Arte, vigilância e o dossiê // Art, surveillance and the dossier

Controle de doenças, deficiência, e o dossiê // Disease management, disability and the dossier

Policiamento e o dossiê // Policing and the dossier

A construção da deficiência e o dossiê // The constitution of disability and the dossier

O dossiê e a migração (mecanismos de controle de fronteiras, sistemas de identiticação, etc) // The dossier and migration (such as border control mechanisms, identification systems, etc.)

Criminologia e o dossiê // Criminology and the dossier

Cibercrimes e o dossiê // Cyber crime and the dossier

Encorajamos pesquisadores dos estudos de vigilância e de outros campos a submeter textos cujos temas de pesquisa podem ser analisados / reexaminados através das lentes das perguntas feitas nesta chamada. Encorajamos especialmente inscrições de trabalhos acadêmicos que explorem temas como gênero, classe, imigração, sexualidade, doença, deficiência e raça e racialização.

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