Estado, corporações, vigilância e disputas em Ilha de Maré

“Mulher das águas”, é assim que Eliete Paraguassu se define. Ela, que é marisqueira, quilombola e faz parte da Articulação Nacional das Pescadoras (ANP), vive na Ilha de Maré, na Baía de Todos os Santos, em Salvador, na capital baiana. A Baía também é composta pelas comunidades de Oratório, Botelho, Engenho de Maré, Nossa Senhora das Neves, Itamoabo, Santana, Praia Grande, Mata Atlântica, Martelo, Maracanã e Bananeiras. “É um território negro, um território que tem uma população preta”, afirma ela.

Assim como grande parte da população da Ilha, Paraguassu vive exclusivamente da pesca. A pesca e a agricultura familiar são a base da economia local. A vida neste território e em seu entorno está, entretanto, ameaçada por um projeto de desenvolvimento que é racista, ganancioso e detrator do meio ambiente, denuncia ela. “O que a gente vive em Ilha de Maré é racismo ambiental”, sentencia.

Ela explica que Ilha de Maré hoje está cercada por grandes empreendimentos, que atentam sob as variadas formas de vida que habitam o território. “Nesse momento, a nossa luta mais ferrenha, mais acirrada é com a Petrobras, mas além da Petrobras nós temos o complexo industrial do Porto de Aratu, a gente tem a Braskem, a gente tem a Odebrecht, a refinaria Landulpho Alves e outros empreendimentos ali no entorno, que têm trazido pra gente ameaça de vida constante”, afirma.

Paraguassu relata que estas corporações, com o aval e colaboração do Estado, destroem a vida e a subsistência das comunidades tradicionais e que as lutas e resistências destes povos têm sido vigiadas, criminalizadas e invisibilizadas por estes mesmos atores sociais. Esta é uma batalha de décadas: nos anos de 1950, tem início um forte processo de industrialização da região e são instaladas indústrias ligadas a área petroquímica no território. Os efeitos deste processo foram rapidamente sentidos pelas comunidades locais e hoje estão documentados em pesquisas.

Um estudo realizado por Neuza Miranda, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), mostra que a poluição das águas têm gerado um acúmulo de metais pesados em toda a cadeia alimentar regional. Como os peixes são parte fundamental da alimentação dos moradores, estes metais estão sendo ingeridos constantemente por eles.

O estudo de Miranda abrangeu 117 crianças nos vilarejos da Ilha e provou que “90% das crianças estão contaminadas com mais de 10 microgramas de chumbo por decilitro de sangue, acima do preconizado pela Organização mundial da saúde. Na região oeste e sul, comunidades Praia Grande e Santana”, como mostra uma reportagem feita pelo Mídia Ninja.

No VI Simpósio Internacional LAVITS, realizado entre os dias 26 e 28 de junho, na UFBA, Eliete Paraguassu fez um chamado para que os pesquisadores e a comunidade acadêmica, como um todo, façam ecoar as reivindicações das comunidades tradicionais. Sua provocação vai de encontro com o sentido desta edição do Simpósio – promovido pela Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (LAVITS), pelo Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC/ UFBA) e pelo Grupo de Pesquisa em Gênero, Tecnologias Digitais e Cultura (GIGA/ Facom/ UFBA) – que se propôs a refletir sobre Assimetrias e (In)Visibilidades: Vigilância, Gênero e Raça, na ocasião em que a Rede LAVITS completa dez anos.

Em um cenário de contaminação, racismo, vigilância e criminalização, Paraguassu e outras lideranças do território seguem reafirmando sobretudo a necessidade de resistir aos muitos desafios que enfrentam pela própria sobrevivência. Além de fazer parte da ANP, ela também está envolvida com a auto-organização das mulheres pescadoras e explica o que as motiva.

“A gente teve a necessidade de fundar a articulação nacional das pescadoras, porque no processo de organicidade do movimento são as mulheres que estão mais no front da luta, são as mulheres que estão mais ameaçadas. Mulheres essas que criminalizadas no contexto da luta cotidiana, mulheres que estão sendo assassinadas e violentadas nos seus territórios, mulheres que sustentam a casa, sustento que está ameaçado em nome da ganância, desse desenvolvimento as custas das pessoas”, afirma.

Posicionamento coletivo

Em maio deste ano, no dia 31, a Coordenação da Colônia de Pescadores da Ilha de Maré de Salvador apresentou uma denúncia ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) denunciando a contaminação química a qual os habitantes são expostos. Leia a íntegra:

“A comunidade de Ilha de Maré é uma comunidade Negra Rural com aproximadamente dez mil pessoas e é formada, em grande parte, por comunidades remanescentes de quilombo, que vivem processos de resistência à opressão desde o período colonial. A comunidade localiza-se em Salvador, Bahia, Brasil. Além da exclusão social que impõe desigualdade racial para os moradores, a comunidade é afetada por grave poluição química, gerada por poderosas indústrias internacionais instaladas nas proximidades da comunidade durante a ditadura militar. A comunidade está exposta à grave violência, sofrendo uma contaminação química crônica, com danos irreparáveis à saúde e ao modo de vida tradicional, com mortes e doenças, afetando especialmente crianças e idosos.

O Estado brasileiro tem sido omisso diante desta realidade, conivente com as irregularidades praticadas pelas grandes empresas e insensível diante do sofrimento das comunidades afetadas. Os estudos ambientais feitos pelo Estado e pelas empresas são maculados pelos interesses políticos. Diante da violação dos direitos humanos e ambientais causados pelas Empresas instaladas no Porto de Aratu, solicitamos ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) para dar suporte à nossa luta, através do acolhimento destas denúncias, dando visibilidade as mesmas e, se possível, uma visita in locu na comunidade para conhecer a realidade, escutar as lideranças e realizar visitas e audiências junto aos órgãos públicos responsáveis pelos vários temas envolvendo os direitos humanos das comunidades da Ilha da Maré, Salvador, BA. Também, solicitamos que este Conselho peça esclarecimentos e atitudes sobre as denúncias feitas e as seguintes demandas abaixo apresentadas, para as autoridades do Governo, dentre outras, as autoridades ambientais responsáveis pelo licenciamento de inúmeros empreendimentos localizados no Porto de Aratú, particularmente o INEMA e o IBAMA; e as autoridades responsáveis pela promoção da Saúde e Direitos Humanos em níveis Municipal, Estadual e Federal.

  1. Realizar inquérito epidemiológico, através de exames médicos em todos os moradores de Ilha de Maré visando identificar a gravidade da contaminação da população, especialmente causada por metais pesados; implementar mecanismos adequados para reparar ou minimizar os danos identificados; promover a punição dos culpados pelos crimes ambientais identificados;

 

  1. Implementar políticas públicas de saúde pública na Ilha de Maré capazes de tratar as doenças específicas relacionadas com a poluição química que afeta a comunidade, bem como dotar a Ilha de veículos marítimos capazes de remover os enfermos em situação grave;

 

  1. Promover o cumprimento das leis nacionais referentes ao Meio Ambiente, de maneira que os empreendimentos industriais sejam submetidos a processos rigorosos de licenciamento ambiental, com ampla participação da população afetada, conforme direitos assegurados das populações tradicionais, especialmente o direito de consulta informada, assegurado pela convenção 169 da OIT Organização Internacional do Trabalho;

 

  1. Realizar ações adequadas para garantir a segurança da comunidade de Ilha de Maré nos casos de graves desastres ambientais; promover treinamento e a estrutura necessária para eventual evacuação em massa, bem como possibilitar o acesso aos equipamentos de proteção individual contra ameaças químicas;

 

  1. Publicidade sobre a natureza e quantidade dos produtos químicos que transitam no Porto de Aratu; informar sobre os riscos destes produtos ao meio ambiente e à saúde humana; capacitar sobre procedimentos de segurança em caso de acidentes;

 

  1. Realizar monitoramento sócio ambiental independente, com ampla publicidade, participação e controle da comunidade, visando identificar e avaliar os níveis atuais de emissão de poluentes; promover a avaliação independente sobre os impactos ambientais, sociais e econômicos pretéritos e cumulativos, visando medir a capacidade do meio ambiente suportar as atividades já instaladas e avaliar seriamente a viabilidade ambiental de novas instalações;

 

  1. Avaliação independente sobre as operações de carga e descarga dos navios, especialmente dos materiais sólidos, impondo mecanismos que identifiquem e inibam a contaminação do ambiente nestas operações;

 

  1. Pactuar, com a ampla participação da comunidade, regras adequadas na gestão do tráfego de embarcações nos canais de acesso ao Porto de Aratu, diminuindo a situação de violência e os conflitos entre os usos realizados pelos pescadores e pelas atividades industriais;

 

  1. Medidas efetivas dos órgãos de governos e autoridades responsáveis pela promoção da justiça e direitos dos povos e comunidades tradicionais, inclusive os órgãos e autoridades responsáveis pela articulação institucional, visando coibir os processos de criminalização que estão sendo promovidos pelas empresas violadoras dos direitos sócio ambientais dos pescadores e pescdoras de Ilha de Maré, especialmente a PETROBRAS.

 

Salvador, Bahia, Brasil. Em 31 de maio de 2019.

Eliete Paraguassu da Conceição

Marizelha Carlos Lopes

Pela Coordenação da Colônia de Pescadores de Ilha de Maré

 

Organizações apoiadoras:

Articulação Nacional de Mulheres Negras – ANMN

Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil

Comissão Pastoral da Terra – CPT

Coordenadoria Ecumênica de Serviço – CESE

Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE/BA

FIAN Brasil

Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH”

Compartilhe