Por Paola Barreto (a.k.a. Dr. Fantasma)*
Esse texto, ainda em processo, foi desenvolvido a partir de notas para minha participação na mesa “Biopolítica digital e pandemia: o novo normal de governos, fronteiras, dados e máscaras”, a convite do Professor Messias Bandeira, Diretor do IHAC. A mesa está disponível aqui.
Duas expressões têm sido comuns nas reflexões sobre o isolamento social e a explosão de atividades online, entre outras mudanças sociais impostas pela pandemia do novo coronavírus. Por um lado, a busca pela construção de um “novo normal” resultante da quarentena; e, por outro, a preocupação com os “direitos individuais”, considerando os dispositivos de controle de corpos e fronteiras que se fortalecem em nosso chamado capitalismo de vigilância. Orientada justamente pelas questões da (a)normalidade e dos direitos (ou da falta deles), trago essa breve reflexão sobre regimes de (in)visibilidade.
Há 10 anos atrás, em uma pesquisa artística desenvolvida junto a Dani Lima, artista pesquisadora da dança radicada no Rio de Janeiro, realizamos um estudo videográfico e coreográfico sobre padrões de movimento e comportamentos considerados normais em espaços públicos, dependendo de como, onde e por quem observados. Do mesmo modo levantamos repertórios de gestos e ações que poderiam ser considerados desviantes, suspeitos ou indesejáveis. O resultado dessa pesquisa resultou no projeto multiplataforma “Coreografia para prédios, pedestres e pombos”, que explorou poéticas do cotidiano, despertando o sentido extraordinário de movimentos considerados ordinários, deslocando a percepção para uma observação mais cuidadosa do mundo a nossa volta.
Esta exploração poética apontou não apenas para as múltiplas dimensões de nossa criação artística; seus desdobramentos sensíveis provocaram igualmente nos espectadores do trabalho um reposicionamento do olhar para o que é invisível ou hipervisível em nossa normalidade cotidiana. Recupero aqui a sensação de retirada de um véu dos olhos que esse projeto proporcionou, para retomar a perspectiva da observação cuidadosa, bem como a reflexão sobre o que seja considerado normal – ou anormal, em tempos pandêmicos, e como essas considerações fazem seu cruzo com os sistemas de vigilância.
Comecemos essa observação pelos padrões de comportamento abusivo perpetrados por agentes públicos em nosso país, habitualmente categorizados como exceções que não condizem com a norma, mas que se tornaram, sim, normais. No Rio de Janeiro, por exemplo, é normal policiais militares pararem um ônibus cheio de jovens que vêm do subúrbio a caminho da praia, ordenando que os de pele escura desçam e se submetam a uma revista permeada por desrespeito, violência e humilhação. É também normal que um veículo dirigido por um homem negro seja alvejado por 80 tiros em uma barreira policial, matando um músico, pai de família, com requintes de deboche e descaso no socorro à família pelos envolvidos no crime. E continua sendo normal, em meio à pandemia do novo coronavírus, que um menino negro de 14 anos seja morto, dentro de casa, em uma ação da polícia. É importante dizer que a morte desse menino só foi incluída na pauta da grande imprensa devido a enorme pressão de midiativistas e midialivristas que exigem respostas e reações dos governos e da sociedade nas redes sociais. Mas, além dele, há muitos outros, cujas mortes permanecem invisibilizadas e naturalizadas. A cada 23 minutos morre um jovem negro no Brasil. Quando você chegar ao final da leitura desse artigo, terá morrido mais um.
Alguns dirão que falta inteligência, falta equipamento, falta tecnologia, aludindo à necessidade de aperfeiçoamento das táticas policiais e de segurança. Mas como pensar somente em termos de aprimoramento e investimento tecnológico, se a eficiência dos aparatos de controle e monitoramento está justamente direcionada a sujeitos e corpos específicos? Se a própria normalidade se assenta em uma verdadeira engenharia de morte, cujo objetivo é o controle, quando não o extermínio, de certa parte da população? Como os pesquisadores Tarcízio Silva e Sil Bahia têm apontado, os algoritmos são nova e sofisticada plataforma do racismo, acentuando a hipervisibilidade dos corpos racializados (e generificados) pelo sistema penal em um plano digital. O que significa dizer que tecnologias pervasivas e seus softwares atuam de modo a perpetuar um modelo de controle populacional que reproduz o racismo estrutural de nossa sociedade e o seu carrego colonial. Nesse sentido vale retomar também as reflexões da pesquisadora canadense Simone Browne (apresentadas na Conferência de abertura do VI Simpósio Internacional da Rede Lavits em Salvador, em 2019), que utiliza não o panóptico de Bentham, mas o navio negreiro e a plantation para pensar o desenvolvimento de tecnologias de vigilância em nosso contexto panamericano.
Dispomos de satélites, câmeras e redes computacionais que coletam e mineram dados, mas como interpretamos – ou deixamos de interpretar – esses dados? A quem servem? De que modo? Temos dados de que as populações indígenas são as mais atingidas durante a pandemia: a taxa de letalidade do coronavírus em pessoas indígenas é de aproximadamente 16% enquanto a média nacional é de 6%. Do mesmo modo temos dados de que o número de pessoas acometidas pela Covid-19 é maior em populações negras, o que expõe a desigualdade no acesso ao saneamento básico, tratamento hospitalar, possibilidade de isolamento social e renda. Ou seja, não é a falta de dados, informações ou tecnologias o que impede a ação de governos, mas a decisão (necro)política de agir – ou não agir – a partir dos dados que se têm, diretamente matando, ou deixando morrer, uma parte da população.
Big Mother Brasil
Diante da omissão dos governos, as comunidades mesmas se auto organizam. Muito se tem falado sobre as redes solidárias que se fortalecem no atual contexto pandêmico, com sistemas de distribuição de itens de higiene, alimentos e formas de apoio aos mais vulneráveis. Diversos setores da sociedade civil, e também de corporações e empresas privadas, têm contribuído com doações, em ações por vezes atravessadas pelo discurso promocional do marketing e da propaganda. Contudo, para as populações e territórios marginalizados e invisibilizados, onde a emergência se constitui como estado natural de coisas, o senso comunitário e a prática das trocas solidárias sempre foi a tônica. Nas favelas e nas comunidades indígenas e quilombolas, a sobrevivência e a organização social estão intimamente ligadas à noção de cuidado coletivo e outros modos de aquilombamento, entendendo o quilombo, como Beatriz Nascimento (2006)¹ e Abdias do Nascimento (2002)² sugerem, como força civilizatória ecológica. Ou seja, estamos falando de tecnologias de resistência que se forjaram na colonialidade, tecnologias do cuidado e do autocuidado que não são novas, mas ancestrais, e que possibilitaram a sobrevivência dessas comunidades às quais direitos vêm sendo continuamente negados; ontem pelo estado colonial, hoje pelo estado capitalista.
Tomemos por exemplo o caso recente de Paraisópolis, uma das maiores favelas de São Paulo, com quase cem mil habitantes. Através de uma iniciativa comunitária, 420 moradores foram nomeados “presidentes de rua”. Eles são responsáveis por monitorar grupos de 50 casas para detectar casos de Covid-19. Esse monitoramento é uma forma de cuidado, onde se realiza também a orientação sobre medidas de higiene e isolamento, além de logística para a distribuição de cestas básicas para as famílias mais pobres. Em favelas do Rio e Salvador, moradores integram redes de solidariedade para distribuir alimentos às famílias mais pobres e a pessoas que perderam suas ocupações devido à quarentena. Sem falar na criação de canais digitais para o atendimento sanitário aos moradores, que também funcionam para denúncia de irregularidades policiais e outras ameaças à comunidade.
De modo que a atitude solidária e o comunalismo não são um “novo” normal, pois já existiam como tecnologia que manteve os povos preto, indígena e quilombola vivos, contra o genocídio colonial capitalista. Tampouco constituem um “outro” normal, uma vez que já estavam postos antes do processo de colonização categorizá-los como alteridade. Vamos chamar de “nosso” normal: contra a invisibilização e sua política de morte, o cuidado com nossas vidas, com nossos corpos e com nossas redes; redes que sustentam a vida, e que podem sim ser desdobradas digitalmente, a partir de uma potente ação comunitária promovendo as três ecologias preconizadas por Guattari: das subjetividades, das relações sociais e do meio ambiente.
A tecnologia do “velar sobre” (surveillance), nesse sentido, pode ser definida não a partir do modelo do Big Brother orwelliano, mas de uma Big Mother iorubana, que cuida da casa, das crianças, dos idosos e dos doentes – tarefas historicamente atribuídas às mulheres. A partir da figura dessa Grande Mãe, uma política de atenção e cuidados pode ser pensada, sem esquecer que a luta anticapitalista é também luta interseccional contra o patriarcado colonial e suas formas de exploração e opressão de sujeitos humanos e não humanos. Nessa política, o próprio planeta pode ser experienciado como uma Grande Mãe, ideia comum a povos diversos do continente americano e para a qual o líder indígena Ailton Krenak tem chamado a atenção nessa pandemia: “o que estamos vivendo pode ser a obra de uma mãe amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por instante. Não porque não goste dele, mas por querer lhe ensinar alguma coisa. ‘Filho, silêncio’.” A Grande Mãe, em suas múltiplas faces, configura não apenas a expressão do zelo protetor, mas também força guerreira, cujo poder é temido e respeitado. Como as Iyá Mi, do candomblé ketu, ou como Gaia, da mitologia grega, a Grande Mãe é força que dá e toma a vida.
Gaia é precisamente o nome da teoria desenvolvida pelo químico James Lovelock e a bióloga Lynn Margulis nos anos setenta e retomada por diversos cientistas contemporâneos para pensar a crise climática e seus desdobramentos. Se partimos da hipótese que descreve nosso planeta como um sistema complexo autorregulável, não faz muito sentido considerar a centralidade do personagem humano, como sugere o Antropoceno, termo cunhado para definir o impacto da ação humana no planeta como equivalente a uma mudança de era geológica. Levando em conta a capacidade que esse sistema autorregulável (Grande Mãe) teria para corrigir o desequilíbrio causado por esse filho rebelde, talvez fizesse mais sentido hoje falarmos em um Virusceno, uma vez que o impacto causado pela ameaça da Covid-19 é o que parece agora redefinir o comportamento humano em escala planetária.
O coronavírus se camufla no interior das células humanas. Com suas proteínas revestidas de açúcares ele se disfarça no organismo, desligando sinalizadores das células para que o sistema imunológico não entre em alerta. E assim se espalha. A camuflagem é o que está dando passagem para o vírus se tornar “invisível” e avançar no território de nossos corpos. O que podemos aprender com isso?
Tecnologias de obscurescimento
A camuflagem é uma tecnologia da natureza, desenvolvida por organismos que se mimetizam em seus ambientes de modo a escapar de predadores ou enganar presas, garantindo assim sua sobrevivência como indivíduos e a perpetuação da espécie. Como tecnologia de guerra tem uma longa história que atravessa povos e culturas, garantindo por vezes a vitória de exércitos com menos poder de fogo contra a artilharia de grandes exércitos – caso emblemático da guerra do Vietnã, por exemplo. Como forma de contravigilância tem sido bastante explorada por artistas e ativistas, que se valem de tecnologias analógicas ou digitais para hackear sistemas e provocar, literalmente, desaparecimentos. Um bom exemplo é o design de maquiagens para driblar circuitos de vídeo inteligentes e seus algoritmos de reconhecimento facial.
Os algoritmos, como sabemos, não são neutros, e podem reproduzir opressões dirigidas a sujeitos específicos. Diante das opressões, sociais, raciais e ou heteronormativas, que se não são a norma, se tornaram tristemente normais em nosso tempo, muito se fala sobre passabilidade. Passabilidade é a capacidade de passar-se por uma categoria identitária diferente da sua. Dentro de uma cultura de privilégios, a passabilidade pode ser entendida como uma forma de camuflagem, uma maneira do corpo dissidente ficar invisível aos radares seletivos do controle, escapando assim da morte.
Retomando a reflexão sobre normalidade e direitos, parece mesmo um tanto esquizofrênica a convivência entre a hipervisibilidade, por um lado conferida a certos marcadores de corpos e sujeitos pelos sistemas de vigilância e controle; e de outro lado a invisibilidade desses mesmos corpos e sujeitos, categorizados como dissidentes, no que diz respeito às garantias de suas liberdades e direitos individuais – incluindo aí o direito à própria vida. Nesse regime ambiguamente perverso, a camuflagem, como um manto de invisibilidade ativo, pode se tornar algo até mesmo desejável, como uma espécie de salvo conduto para o corpo dissidente passar despercebido por territórios conflagrados por opressões. Vale a pena lembrar que a cultura dos negros escravizados sobreviveu à escravidão em seus corpos, em grande medida, devido às irmandades, constituídas a um só tempo como organizações políticas, econômicas e religiosas associadas à Igreja Católica. Neste sentido, o próprio sincretismo religioso é uma forma de camuflagem, uma maneira de assegurar a sobrevivência, sob a capa dos santos cristãos, do culto aos orixás. As irmandades também desempenharam um papel preponderante na organização de revoltas, levantes e lutas pela liberdade que culminaram com a abolição. Uma irmandade como a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, criada em 1685 em Salvador, na Bahia, por exemplo, se encarregava de uma ampla gama de atividades, como a compra de alforrias, a negociação de compra e venda de terrenos, o financiamento de enterros e tratamentos médicos, entre outras funções (SILVEIRA, 2006). Como uma forma de conselho, proteção e cuidado da comunidade, a irmandade camuflou-se dentro da sociedade colonial.
Voltando ao trabalho “Coreografia para prédios, pedestres e pombos”, a camuflagem dos artistas em meio aos transeuntes e do gesto espontâneo em meio ao gesto coreografado foi o que conduziu o trabalho, evidenciando como certos movimentos, dependendo do corpo em questão, podem se sobressair ou se dissolver na multidão. Um corpo negro correndo não é lido do mesmo modo que um corpo branco correndo. Da mesma maneira, o grau de visibilidade da pessoa negra deitada no chão de uma praça não é o mesmo de um corpo branco nas mesmas condições, indicando graus de miopia associados à racialização. O jogo entre tornar-se invisível e tornar-se o centro das atenções revelou dinâmicas traiçoeiras até mesmo para os performers, como no momento em que se deu um embate com as pessoas em situação de rua que viviam no espaço da performance e sentiram sua casa/vida invadida pelos artistas. De invisíveis ou marginais os moradores de rua tornaram-se o centro da cena, e os artistas tornaram-se assim os verdadeiros marginais.
Essa pequena digressão nos traz de volta à realidade do coronavírus, esse ser que nos roubou o protagonismo na cena planetária, colocando-nos como marginais de uma era geológica anunciada como nossa. Estamos, mais uma vez, aguardando que a ciência nos traga respostas e nos salve desse pandemônio. Mas certamente não para “voltarmos ao normal” e muito menos a um “novo normal” – que seria melhor definido como o “velho anormal”. Precisamos de uma ciência comprometida com a vida e com a comunidade, e essa comunidade inclui humanos e não humanos, e extrapola o binômio natureza/cultura. Ainda que as dimensões sociais telemáticas estejam cada vez mais em evidência com a circulação da Covid-19 entre nós, a principal conexão convocada não é a fibra ótica da internet, mas a natureza de nossos próprios corpos e seu sistema respiratório, troca de gases que nos conecta diretamente ao sistema complexo de Gaia. O retorno ao corpo é o que parece ser a grande convocação pandêmica. Ao corpo, em sua finitude marcada pela iminência da morte, e que os corpos dissidentes, que convivem desde sempre com a ameaça constante de não poder respirar, conhecem muito bem. Mas esse corpo ao qual se retorna, não se encerra em uma única identidade estável, esse corpo é território de ancestrais, morada de espíritos e comunidades interespecíficas, entre vírus e bactérias, que se cruzam na lógica de emaranhados (entanglements), tecidos com o cuidado e o zelo de uma Grande Mãe.
A título de consideração final, compartilho o trabalho da artista e filósofa baiana Ana Dumas, mixadora de ideais, conceitos e escrevivências que fortalecem nossas redes e nossas ruas, articulando corpo, arte, vida e gesto micropolítico.
“CIÊNCIA porque para estarmos no mundo precisamos de conhecimento atento e profundo sobre o mundo e as coisas que nele estão;
COMUNISMO porque a vida é rede e precisamos pensar e agir pelo bem comum a todxs:
OMOLU porque ele é o regente das doenças e das curas, o zelador da humanidade.”
A Omolu, orixá que governa os territórios tanto da cura quanto da enfermidade, e que, por debaixo de sua palha, guarda o segredo do visível e do invisível, saudamos: Atotô!
Salvador, 24 de junho de 2020
Notas
¹ NASCIMENTO, Beatriz. Eu sou Atlântica. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.
² NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo. Brasília/Rio: Fundação Cultural Palmares/ OR Editor, 2002.
³ SILVEIRA, Renato da. O candomblé da Barroquinha: Processo de constituição do primeiro terreiro baiano de ketu. Salvador: Edições Maianga, 2006.
*Paola Barreto (a.k.a. Dr. Fantasma, Rio de Janeiro, 1971) é artista pesquisadora e desde 2017 vive e trabalha em Salvador, como Professora de Artes, Estéticas e Materialidades no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, da UFBA. Coordena o laboratório de pesquisa Balaio Fantasma, que atua na interface entre produção artística e práticas de cidadania, em diálogo com territórios físicos e simbólicos que resistem a processos de invisibilização ou apagamento.
Série Lavits_Covid19
A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.