#15: Estéticas da coronavigilância: mapas de calor e biopolíticas do indolor

Por Giselle Beiguelman*

 

A Covid-19 transformou a cultura urbana, introduzindo elementos inéditos no cotidiano das cidades. A imagem da multidão, sempre associada à emergência e à vida das metrópoles, foi substituída pela das ruas vazias. O repovoamento paulatino do espaço público vem acompanhado do ressurgimento de seus habitantes de máscara. Participam desse quadro de “novo normal” a multiplicação das câmeras térmicas e a proliferação dos termômetros de infravermelho na entrada de qualquer lugar.

A paranoia é o horizonte estético pandêmico e nada mais condizente com isso que um termômetro em forma de arma. Inevitável pensar no que diria sobre esse tema o filósofo e urbanista Paul Virilio (1932-2018), que tantas vezes nos alertou para as dimensões políticas da automação da percepção e da industrialização da visão. Essa automação diz respeito à emergência de uma visão artificial, à delegação a máquinas de um olhar que não temos. Já a industrialização remete ao mercado da percepção sintética, fartamente instrumentalizada pelas formas de vigilância contemporâneas.

Um dos pilares desses sistemas de vigilância é o sensoriamento remoto, uma forma de monitorar e extrair dados sem contato físico com o objeto. Tecnicamente, os primeiros voos militares de balão, que eram realizados desde o fim do século 18, antes da invenção da fotografia, podem ser considerados a origem desse procedimento, numa arqueologia de suas práticas. E muito embora a fotografia aérea tenha sido um dos marcos da Primeira Guerra Mundial, foi apenas no âmbito da corrida espacial e da Guerra Fria entre os EUA e a URSS que aquilo que entendemos por sensoriamento remoto se consolidou.

Com a migração dos sistemas analógicos para os digitais, a partir da década de 1980, a imagem é articulada a sensores e deixa de ser uma prótese compensatória do tempo não vivido e do que já passou, para tornar-se um amálgama de dados variados, como os campos eletromagnéticos não visíveis aos humanos. Apesar de não enxergarmos, tudo aquilo que vemos reflete e absorve energia eletromagnética do sol. A forma pela qual cada superfície absorve e reflete a radiação identifica particularmente os diferentes objetos ou corpos, e constitui o que os cientistas chamam de “assinatura espectral”. Isso permite o desenvolvimento de uma gama de sensores com finalidades variadas para medir a energia de determinados comprimentos de onda. Os sensores utilizados por câmeras térmicas e pelos gun thermometers, popularizados pela Covid-19, por exemplo, operam no espectro infravermelho.

Utilizadas em operações militares e em controle de fronteiras, essas câmeras térmicas tiveram um vertiginoso aumento de uso com a pandemia do coronavírus. Atreladas a drones, monitoraram Wuhan do alto e um protótipo associado a alto-falantes foi testado em Recife. Recentemente, a Amazon implantou esse tipo de câmera em seus depósitos para monitorar o contágio entre seus funcionários. A câmera funciona como um porteiro eletrônico. Caso o indivíduo esteja com febre, não entra. O corpo transforma-se assim na nova senha do novo normal.

Criticados pela relatividade de suas informações em veículos especializados e na grande imprensa, a popularização desses dispositivos traz ainda outras questões de ordem política, cultural e estética relacionadas à naturalização e opacidade dos sistemas de sensoriamento remoto.

Primeiramente é preciso levar em conta que sua precisão está associada a um tipo novo de resolução de imagem: a “resolução temporal”. Ela é qualificada pela frequência com que os sensores revisitam e obtêm informações da mesma área. O que indica uma capacidade cada vez maior e mais sofisticada de ler (e armazenar, sabe-se lá em quais servidores) dados sobre funcionários de uma empresa, usuários do sistema público de transporte a caminho do trabalho ou da escola, e por aí vai.

Por outro lado, tudo isso é feito a partir de imagens da fisiologia do indivíduo, vistas por olhos totalmente maquínicos, que escaneiam o corpo e o reconstituem a partir da tradução de inputs eletromagnéticos em pixels. Ao final, em segundos, compõem um retrato “em rosa púrpura e azulão” do sujeito. Um retrato que só pode ser validado em um banco de dados, abrigado em uma nuvem computacional e submetido a alguma Inteligência Artificial que buscará padrões para eventualmente contribuir para a cura da Covid-19. Mas que também podem vir a ser utilizados para outras finalidades. Não sabemos.

Não se discute a necessidade de conter a propagação do vírus, tomando medidas que interferem na vida social. Sabemos que são, todavia, a única forma de controle da pandemia. A questão aqui é outra: compreender as estéticas da vigilância do coronavírus no campo de uma nova biopolítica. Uma biopolítica porosa, que adentra a fisiologia, monitorando os corpos sem tocá-los, sem coerção e sem dor.

Isso não quer dizer que se trata de uma biopolítica menos violenta que a do capitalismo industrial. Pelo contrário, ela é tão ou mais perversa que as modalidades coercitivas e conhecidas por todos. Sua eficiência depende da convergência entre rastreabilidade e identidade, confluindo, em situações extremas, como a do coronavírus, para uma outra hierarquia social. Nessa hierarquia, contrapõem-se os corpos imóveis e os móveis, entre quem é visível e quem é invisível perante o Estado e pelos algoritmos corporativos.

São os imóveis, aqueles que podem parar, trabalhar em casa, transitar nos espaços de consumo nos horários pré-estabelecidos, os que são rastreáveis, computáveis, vigiáveis e curáveis. No contexto “laboratorial” que a coronavida impôs, no qual a cumplicidade com o monitoramento é também uma prerrogativa de sobrevivência, o não rastreado é aquele para o qual o Estado já havia voltado às costas. Na espiral da “coronavigilância”, o sujeito móvel é aquele invisível visível que nossa violência social teima em não enxergar.

É cedo para antecipar o que ocorrerá no contexto pós-pandêmico e saber se essa distribuição social entre móveis e imóveis se perpetuará no novo normal. Contudo, não é prematuro afirmar que a pandemia já ditou algumas regras da gramática neoliberal como fundamentos sociais. A naturalização da vigilância é seu pilar de sustentação e o mapa de calor a tradução visual do cotidiano paranoico.

 

O léxico do mapa de calor

O mapa de calor é uma técnica de visualização de dados que mostra a magnitude de um fenômeno como cor em duas dimensões. A variação na cor, por matiz ou intensidade, revela como o fenômeno está agrupado ou se modifica. Muito usados no campo da biologia molecular para identificar o comportamento de genes em diferentes condições, os mapas de calor também traduzem visualmente as informações sobre a temperatura corporal, recurso que se popularizou com a pandemia do coronavírus e do qual me apropriei no projeto Coronário[1].

Obra de net art de minha autoria, comissionada para o programa IMS Convida, do Instituto Moreira Salles, Coronário reúne as palavras mais marcantes da experiência cultural do coronavírus no Brasil (como álcool gel e comunavírus), mensuradas pelo índice de tendências de buscas do Google, entre março e abril, período que coincide com os primeiros dias do isolamento social. As palavras mais acessadas pelo público do site respondem dinamicamente, mudando de cor, em conformidade com um mapa de calor que reflete a atenção recebida.

Importante destacar que esse uso dos mapas de calor para monitorar a atenção do público é assentado no marketing digital e faz jus aos princípios da economia do olhar que move a Internet. É fundamental, para reter a atenção do usuário, compreender não só as formas pelas quais seu olhar transita nos conteúdos, mas os pontos em que se assenta e seus movimentos de dispersão. Softwares especialmente concebidos para este fim rastreiam o movimento do mouse na tela, identificando os pontos mais clicados e as áreas de maior atenção e desatenção dos usuários. Nasce aí um complexo de técnicas que combinam elementos de psicologia cognitiva, semiótica e repertório de marketing voltado para a captura daquilo que já foi o sinônimo do lugar da liberdade: o olhar.

É exatamente este tipo de rastreamento que utilizamos no Coronário. As palavras mais acessadas do léxico do coronavírus (o Coronário) reagem aos cliques dos visitantes, refletindo o interesse coletivo. Segui a lógica da dataveillance (vigilância de dados), cujo foco não é o indivíduo, mas sua integração a um padrão. Por esse motivo, as manchas de calor, no site do Coronário, não são resultantes de interações por processos de ação e reação. Elas operam de forma relacional, indicando a distribuição da atenção de todo o público, incorporando as interações individuais na constituição de padrões e tendências coletivas.

Nesse contexto, o Coronário funciona não só como um glossário da experiência cultural e social da pandemia, que no Brasil assumiu contornos políticos e ideológicos, mas também como um exercício de rastreamento feito em público. Ao interpretar o coronavírus no âmbito da cultura, partindo do seu léxico, o Coronário assume que estamos diante não apenas de um dos mais graves problemas de saúde pública da história. Estamos também em um momento de profundas transformações sociais e econômicas locais e globais. Catalisadas pela pandemia, essas transformações se impõem biopolítica e esteticamente. Na naturalização dos revólveres travestidos de termômetros e nas câmeras que recolhem a assinatura espectral dos nossos corpos em mapas de calor estão contidas, portanto, muito mais que a leitura da temperatura. Tais ferramentas trazem à tona, ainda que de forma cifrada, as pautas de uma ótica algorítmica que é preciso aprender a ver. Porque ela nos já enxerga.

[1] http://coronario.ims.com.br

* GISELLE BEIGUELMAN é artista e professora Livre-Docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Pesquisa preservação de arte digital, arte e ativismo na cidade em rede e as estéticas da memória no século 21. Desenvolve projetos de intervenções artísticas no espaço público e com mídias digitais. É autora de Memória da amnésia: políticas do esquecimento (Edições Sesc, 2019) e de vários livros e artigos sobre o nomadismo contemporâneo e as práticas da cultura digital. Entre seus projetos recentes destacam-se Memória da Amnésia (2015), Odiolândia (2017) e Monumento Nenhum (2019). É membro do Laboratório para OUTROS Urbanismos (FAUUSP) e do Interdisciplinary Laboratory Image Knowledge da Humboldt-Universität zu Berlin. Suas obras artísticas integram acervos de museus no Brasil e no exterior, como ZKM (Alemanha), Jewish Museum Berlin, MAC-USP, MAR (Rio de Janeiro) e Pinacoteca de São Paulo. Entre outros prêmios, recebeu o Prêmio ABCA 2016 (Associação Brasileira dos Críticos de Arte), categoria Destaque, e o Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia em 2003. Em 2014, integrou o grupo de 10 net artistas internacionais convidados pelo The Webby Awards para participar da exposição comemorativa dos 25 anos da WWW (The Web at 25). É colunista da Rádio USP e da Revista Zum. Site pessoal: desvirtual.com.

 

**Este artigo retoma e expande o texto “Sorria, você está sendo escaneado” publicado no site da Revista Zum em 19 de junho de 2020.

 

Referências

BRUNO, F. Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre: Sulinas, 2013.

SHEKAR, S. & VOLD, P. “What’s There? Remote Sensing”, In: Spatial Computing. Cambridge: MIT Press, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.7551/mitpress/11275.003.0006

VIRILIO, P. A máquina de visão. Rio de Janeiro: Iluminuras: José Olympio, 1994.

 

Série Lavits_Covid19

A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.

Compartilhe