Por David Le Breton*
Tradução: Alexandre Zarias
Artigo originalmente publicado, no jornal Le Monde, em 06 de agosto de 2020.**
Apesar das recomendações para conter uma possível nova onda do contágio pelo coronavírus, muitas pessoas se recusam a colocar a máscara e a observar os cuidados de prevenção. Festas são organizadas desconsiderando qualquer recomendação sanitária. A ambivalência está na ordem do dia e às vezes se exprime de forma quase ingênua quando os foliões declaram que entendem a necessidade do uso da máscara ou da adoção de cuidados de prevenção quando fazem suas compras, mas reivindicam o direito de relaxar em determinados momentos desses encontros festivos. Um “Eu sei, mas mesmo assim” rege seus comportamentos. Trata-se de renunciar aos prazeres elementares, alimentando o gosto pela vida por um benefício hipotético, um ganho de segurança que não é necessariamente percebido como invejável a tal preço. Trata-se de gozar sua existência sem levar em conta o preço a pagar e, às vezes, sem se preocupar com os outros ao seu redor. Na existência real, a afetividade é sempre primária e subordina uma racionalidade, a qual é reformulada sempre de acordo com as circunstâncias. Ciente do perigo, o indivíduo persiste em sua conduta por causa do prazer que obtém ou porque considera que os outros não são ele e que, no que lhe diz respeito, nada há a temer.
As justificativas são por vezes ambíguas: “Somos jovens, não corremos riscos, não ameaçamos nada”. Uma jovem diz baixinho: “Nós somos jovens, não somos obesos, não somos diabéticos, por que nos privar?”. No entanto, eles podem estar contaminados e transmitir o vírus a seus pais, parentes ou anônimos quando usam o transporte público ou em outro lugar. Ajuntamentos de pessoas desprotegidas são matrizes potenciais de contaminação. A liberdade de “aproveitar a vida” como certas pessoas afirmam é também, paralelamente, uma liberdade para propagar o vírus. O “não colocamos nada em perigo” é um frase terrível, uma maneira de dizer, “depois de mim, o dilúvio”. Os jovens festeiros estatisticamente correm menos riscos do que os mais velhos, mas, muitas vezes, são portadores assintomáticos do vírus, que espalham junto aos seus parentes ou de pessoas anônimas quando circulam pela cidade ou em suas próprias residências.
Esses gestos demonstrativos de contato físico, sem máscara, ou essas festas em que não se observam os cuidados de prevenção traduzem uma maneira de se sentir imune às leis comuns. “Nós não fazemos isso com eles!” Eles se libertam da autoridade política ou médica considerada paternalista. Eles mostram que são corajosos. Que um minúsculo vírus não lhes faz medo. Eles riem daqueles que se protegem. Eles vivem a força da transgressão. Porém, no dia seguinte, durante a pausa para o café, no trabalho, ou no escritório, retornando para casa, alguns disseminam o vírus pelo caminho. Não cabe a eles argumentar, mas mostrar sua indiferença, como um jovem entrevistado: “a gente tá nem aí”. Eles não se sentem responsáveis. Rompem o laço social afirmando um puro gozo que não tolera nenhum obstáculo, independentemente das possíveis consequências para com os outros dessas múltiplas conexões. Eles estão na sociedade, mas não formam mais a sociedade.
Durante o confinamento ou após a manutenção das medidas preventivas de saúde, nenhuma coletividade conseguiu construir uma unidade. O arcabouço ético e normativo fixado por médicos e políticos, se é que algum foi globalmente respeitado, não cessou de ser contestado nessas margens. As lockdown parties (festas de confinamento) existiram durante todo o período de confinamento. Elas ocorreram clandestinamente, recrutando as jovens gerações por meio de redes sociais. As festas desenrolaram-se em residências privadas ou em imóveis de aluguel de curta duração. Algumas delas provocaram conflitos entre vizinhos por conta do barulho e das perturbações ocasionadas. Locais foram invadidos por foliões que pouco se importavam com medidas de proteção ou com o uso de máscaras. As medidas sanitárias inexistentes colocaram em risco, portanto, a saúde das pessoas atentas às medidas de proteção.
Nossas sociedades democráticas afirmam a igualdade dos atores, e rejeitam toda posição de hierarquia. Os médicos, os infectologistas, os políticos implicados nos chamados insistentes para a adoção de medidas de proteção são desautorizados. A legitimidade conferida aos políticos por meio de eleições não é mais suficiente, nem mesmo a formação dos cientistas. A recusa de toda forma de autoridade sustentada por uma opinião multiplica as relações de poder. A reivindicação de liberdade, entendida aqui como um distanciamento do coletivo, faz pouco caso do civismo solicitado pelas autoridades sanitárias, traduzindo-se propriamente por um desengajamento moral. O laço social se fragmenta num mosaico de indivíduos perseguindo seus próprios interesses com indiferença ao todo. “Juntos” agora é um termo ocasião quando se trata de compartilhar um momento de interesses privados. O indivíduo não se sente mais em ligação com os outros, ele não considera mais ter contas a prestar aos outros. A individualização crescente do sentido e da relação com o outro transforma o laço social em pura utilidade e cada vez menos em exigência moral. Desde então, a soberania individual pena em tolerar limites.
* David Le Breton é professor de sociologia da Universidade de Estrasburgo, França, autor de vários livros traduzidos para língua portuguesa, destacando-se Rostos: ensaio de antropologia (Vozes, 2019), Antropologia das emoções (Vozes, 2019) e Desaparecer de si: uma tentação contemporânea (Vozes, 2018).
** Este texto foi originalmente publicado no Jornal Le Monde. Para acessar a publicação original, clique aqui.
Série Lavits_Covid19
A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.