#21: Movimentos antirracistas nas redes: ativismo e cobertura jornalística em tempos de pandemia

Por Nina Santos e Lucas Reis*

 

Os movimentos antirracistas ganharam novo fôlego durante a pandemia de Covid-19. Uma série de episódios de violência contra pessoas negras tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos reavivaram o debate a as mobilizações por justiça social e racial. Como veremos a seguir, esses movimentos ganharam força a partir do final de maio, momento em que várias partes do planeta estavam com política de isolamento social em vigor por conta da pandemia da COVID 19. As pessoas não podiam ou, ao menos, evitavam ir às ruas. Nesse contexto, os ambientes digitais tornaram-se ainda mais centrais como espaços de visibilidade, conversação e mobilização.

É preciso considerar, no entanto, que diferentes espaços online seguem diferentes dinâmicas. Enquanto os meios jornalísticos profissionais estão fundados no papel dos jornalistas como gatekeepers – aqueles capazes de decidir o que merece ou não ser levado à esfera de visibilidade pública – de acordo com a deontologia do campo e com os padrões da indústria de informação, nas mídias sociais emergem uma série de novas mediações (SANTOS, 2019) que vão complexificar esse processo.

Por outro lado, também não se pode ignorar a constante interação entre esses espaços, ou seja, nem os sites jornalísticos nem as mídias sociais operam isoladamente dentro das suas lógicas fechadas. Os conteúdos que circulam nos diversos ambientes digitais se interinfluenciam continuamente gerando o que Andrew Chadwick vai chamar de sistema midiático híbrido (2013), em que a novidade não está necessariamente em mídias novas, mas sim nas inéditas combinações que tornam-se possíveis entre diferentes lógicas midiáticas.

Neste contexto, buscamos então explorar as diferentes dinâmicas e interinfluências entre os fluxos de informação publicados no Twitter e nos veículos de notícias online acerca dos movimentos antirracistas em 2020 no Brasil. Para entender esse fenômeno, trabalhamos com dois conjuntos de dados. O primeiro reúne 5.811.499 tweets[1] que citam ou a hashtag #BlackLivesMatter ou #VidasNegrasImportam, em português, no período de 10 semanas entre os dias 12 de maio e 19 de julho. O segundo é composto de 1650 matérias publicadas em sites de notícias brasileiro com as expressões “Black Lives Matter” ou “Vidas Negras Importam”, no mesmo período.

Como podemos ver na Imagem 1, o mês de maio começa com um número baixo de menções aos movimentos, mesmo no dia da abolição da escravatura (13 de maio). Do dia 18 para o dia 19 de maio, no entanto, as menções ao movimento registram um primeiro pico passando de 135 (18/05) para quase 95 mil (19/05) em função do assassinato do menino João Pedro, no Rio de Janeiro. Um segundo momento de alta acontece no dia 28 de maio, reflexo do assassinato de George Floyd, que havia acontecido em 25 de maio. Neste dia, as menções passam de 260 mil. A morte do cidadão americano continua repercutindo bastante nos dias seguintes e a conversação atinge seu ápice no dia 4 de junho, quando soma-se ainda à repercussão de uma série de protestos de rua ao redor do mundo e da morte do menino Miguel, no Recife. No seu auge, foram mais de 1.250.000 tweets com ao menos uma das duas hashtags estudadas.

Para se ter noção do tamanho do movimento, vale mencionar que estudos sobre momentos anteriores do movimento Black Lives Matter haviam encontrado movimentações muito menores no Twitter. Ince, Rojas e David (2017), estimam que houve 660 mil tweets com a hashtag #blacklivesmatter durante 11 meses de 2014. Já Freelon, Mcilwain e Clark (2016) identificam 4,312,599 menções ao termo no período de 1 ano, entre junho de 2014 e maio de 2015. Anderson et al. (2018) fazem uma análise mais longa, de julho de 2013 a maio de 2018, identificando 30 milhões de menções em todo o período, uma média de 17 mil por dia. É preciso considerar ainda que todos estes estudos baseiam-se em corpus em inglês, língua original do movimento, onde se supõe que as menções sejam mais elevadas. Portanto, encontrar quase 6 milhões de menções em pouco mais de dois meses de 2020, em português, é um número impressionante.

 

Imagem 1 – Tweets com #blacklivesmatter ou #vidasnegrasimportam em português
12/05/2020 a 19/07/2020

Fonte: elaboração própria.

 

Os números de movimentação no Twitter, apesar de importantes, sozinhos dizem-nos pouco sobre a dinâmica comunicacional em torno do movimento antirracista. Neste sentido, vale comparar essa linha do tempo com aquela formada pelas matérias online nos veículos jornalísticos (Imagem 2). Nela podemos ver algumas diferenças importantes em relação ao Twitter. A primeira é que o assassinato de João Pedro não causa nenhuma alteração na curva de menções aos movimentos antirracistas nos veículos jornalísticos online. Foram apenas duas matérias coletadas no dia 19 de maio.

 

Imagem 2 – Matérias com as expressões Black Lives Matter ou Vidas Negras Importam em veículos de mídia brasileiros
12/05/2020 a 19/07/2020

Fonte: elaboração própria.

 

Isso não significa que o assassinato não tenha sido coberto pela mídia jornalística. Ao contrário, buscando pelo nome “João Pedro” encontramos 32 matérias neste dia. A questão é que esse caso não provocou uma maior cobertura do movimento antirracista, enquanto no Twitter, imediatamente, o caso é encampado sob a bandeira do movimento Black Lives Matter ou da sua tradução em português, Vidas Negras Importam.

Outra diferença que chama atenção é a dinâmica da publicação sobre o movimento. Há uma volatilidade muito maior no Twitter. Por exemplo, o pico de menções nessa rede equivale a 15 vezes a média de publicações sobre o tema no período pesquisado. No caso nos news media, essa proporção foi de apenas 4 vezes. Mas não se trata apenas da magnitude dos picos. Ao calcularmos o desvio padrão, para melhor quantificar essa oscilação, vemos que nos tweets ele representa 264% da média, enquanto entre as matérias essa métrica representa 98%.

Imagem 3 – Média, desvio padrão e pico de menções no Twitter

Fonte: elaboração própria.

 

Imagem 4 – Média, desvio padrão e pico de menções no Twitter

Fonte: elaboração própria.

 

Essas duas análises parecem indicar pelo menos duas características que merecem atenção. A primeira diz respeito a uma diferença importante na forma de encarar casos de violência contra pessoas negras. Enquanto no Twitter o episódio do assassinato de João Pedro é rapidamente associado aos movimentos antirracistas causando uma modificação significativa no volume de menções, nos meios de comunicação ele não provoca nenhuma alteração na cobertura do movimento, apesar de o caso em si ter sido pauta.

Isso pode ser interpretado segundo a lógica das ondas de notícias, muito bem explicada por Gomes e Almada (2014), segundo a qual o noticiário se pautaria em temas sucessivos que são explorados até sua exaustão buscando gerar repercussões deles junto a diversos atores sociais. Essas ondas “seriam desencadeadas por eventos-chave (key events), que se definem como eventos diferentes ou peculiares, por implicarem em um desdobramento de determinado tema no noticiário” (p.17). Ao analisarem a cobertura no Jornal Nacional, os autores concluem no entanto que “o evento-chave não é, simplesmente, mero acontecimento. Precisa ser compreendido como parte de algo contínuo, de um desdobramento, como um fenômeno ou um conjunto de consequências.” (p.17). Ou seja, apesar de se configurar como fato merecedor de cobertura, o assassinato de João Pedro em si não é capaz de desencadear uma onda de notícias sobre os movimentos antirracistas, onda esta que começará a se formar nos sites jornalísticos a partir do assassinato de George Floyd.

A segunda característica que chama atenção é a distribuição das publicações ao longo do tempo, muito diferente entre os media, como podemos ver no gráfico abaixo.

 

Imagem 5 – Evolução semanal de publicações ao longo do tempo.

Fonte: elaboração própria.

As menções no Twitter seguem rigorosamente a chamada regra de Paretto. As duas semanas (20% do tempo de coleta) com maior volume concentram 80% dos tweets. Esse padrão é bastante comum na difusão de conteúdos em redes sociais (REIS, 2018), em que repercussões orgânicas seguem o modelo de cauda longa.

Já nos news media, a cobertura se estende no tempo de forma mais compassada. As duas semanas com maior volume de matérias publicadas, representaram apenas 45% do total do período. Novamente, isso tem relação com o próprio trabalho jornalístico que tende a buscar e provocar repercussões em torno dos temas da pauta nos sites de notícias. Já no Twitter, parte significativa das publicações não é feita por profissionais empenhados em manter o tema em voga. Assim o volume de menções vai caindo rapidamente, mesmo que não suma por completo, visto que o volume na décima semana foi 10 vezes superior ao da primeira.

A análise mostra que pensar a dinâmica comunicacional em torno do ativismo digital exige abordagens complexas. Enquanto, no caso analisado, o papel do ativismo que se desenvolve no Twitter mostra-se mais ágil e eficiente em associar acontecimentos a um movimento, dando-lhes uma perspectiva histórica e não episódica, os meios de comunicação têm um papel importante ao dar maior estabilidade à cobertura sobre o assunto, contribuindo para uma maior longevidade do debate na esfera pública. Portanto, um ativismo digital capaz de produzir alternativas e mudanças sociais efetivas não podem estar dissociado de uma visão integrada e sistêmica do ambiente de comunicação digital.

[1] Os autores agradecem a Diego Santos, líder de tecnologia da Zygon AdTech, responsável pela extração deste extenso dataset.

 

 

Referências

ANDERSON, M. et al. Activism in the Social Media Age | Pew Research Center.

CHADWICK, A. The Hybrid Media System: Politics and Power. Oxford University Press, 2013.

FREELON, D.; MCILWAIN, C. D.; CLARK, M. D. Beyond the Hashtags: #Ferguson, #Blacklivesmatter, and the Online Struggle for Offline JusticeCenter for Media & Social Impact.

GOMES, W.; ALMADA, M. P. ONDAS DE NOTÍCIAS POLÍTICAS : as dinâmicas da atenção pública no noticiário político de TV. XXIII Encontro Anual da Compós. Anais…2014

INCE, J.; ROJAS, F.; DAVIS, C. A. The social media response to Black Lives Matter: how Twitter users interact with Black Lives Matter through hashtag use. Ethnic and Racial Studies, v. 40, n. 11, p. 1814–1830, 2017.

REIS, L. Big Social Data Analytics e Climas de Opinião Estudo de caso sobre o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. TESE DE DOUTORADO. 2018.

REIS, L.; SANTOS, D.; AGUIAR, A. A repercussão do movimento Black Lives Matter na Twittosfera brasileira.

SANTOS, N. The reconfiguration of the communication environment: Twitter in the 2013 Brazilian protests. Tese de doutorado. Université Panthéon-Assas, 2019.

 

*Nina Santos é pesquisadora no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital e no Centro de Análise e Pesquisa Interdisciplinares sobre a Mídia da Universidade Paris II.

Lucas Reis é pesquisador no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital e CEO da Zygon AdTech.

 

Série Lavits_Covid19

A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.

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