Equipe Medialab.UFRJ
A pandemia do novo coronavírus nos convoca a habitar uma zona corporal e subjetiva extremamente incerta e desconhecida. As medidas epidemiológicas tentam delimitar fronteiras que mantenham os corpos menos expostos ao risco de contágio, fixando isolamentos, distâncias e intermináveis rituais de higiene. Essas mesmas regras, somadas ao asfixiante contexto da pandemia, afligem e fragilizam as subjetividades. Tanto aquelas que as podem cumprir, quanto (e mais ainda) aquelas que não podem. A própria OMS alertou, ainda em março, que a saúde mental pública era um tema que merecia atenção e que o principal impacto psicológico da pandemia seria o aumento de níveis de ansiedade e estresse.
Ao mesmo tempo que os contatos físicos diminuem, vivenciamos uma intensificação da nossa vida conectada e mediada por tecnologias digitais. Um levantamento do mercado de dados móveis informa que, no Brasil, aplicativos de saúde e fitness tiveram um aumento de 226% em instalações não orgânicas (impulsionadas por anúncios) e de 116% em instalações orgânicas (sem direcionamento de anúncios) num período de apenas 12 dias (entre 14 e 26 de março de 2020). Após algumas semanas com crescimento estável, as instalações impulsionadas por anúncios pagos (não-orgânicas) tiveram um salto de quase 20% entre 20 e 27 de abril. A inquietação cresce ao notarmos que nesta categoria (saúde e fitness) estão incluídos aplicativos voltados para saúde mental, que já vinham crescendo expressivamente no mercado global de saúde digital, contando hoje com mais de 10 mil aplicativos que alegam diminuir a ansiedade e o estresse, melhorar o sono, o humor etc.
Quando a pandemia foi declarada oficialmente pela OMS em 11 março de 2020, estávamos finalizando, no MediaLab.UFRJ, um relatório parcial sobre aplicativos de autocuidado psicológico e emocional no Brasil. De repente, não só nossas vidas pessoais e acadêmicas estavam completamente alteradas, como o objeto do nosso relatório ganhava uma nova relevância. Seis dos dez aplicativos analisados em nosso estudo fazem parte da categoria “Saúde e Fitness”, com aumento significativo de downloads desde que a pandemia foi declarada. Questões que já estavam presentes se recolocam com mais força: que tipo de dados são capturados, compartilhados e gerados por tais aplicativos? Qual é a fronteira entre o conforto emocional que oferecem e os riscos a que nos expõem? Quais são as bases clínicas e a confiabilidade dos serviços ofertados nesses apps?
Num contexto de exceção e de extrema vulnerabilidade, a atenção às práticas de cuidado de si e do outro é fundamental. Igualmente importante é o difícil equilíbrio entre a agilidade das respostas que o contexto de urgência exige e a necessidade de discutir e avaliar com cuidado as ‘soluções’ ofertadas. No campo da saúde psíquica no Brasil, coletivos de terapeutas têm se organizado para oferecer serviço gratuito intermediado por ferramentas de videoconferência, como, por exemplo a Rede de Apoio Psicológico, criada para atender profissionais de saúde que atuam na linha de frente. Instituições como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a própria OMS divulgaram cartilhas e cursos apontando diretrizes para tratamento à distância durante a pandemia de Covid-19. Instituições psicanalíticas oferecem atendimento online, alguns deles gratuitos. Redes de solidariedade cidadãs e de escuta são criadas para compartilhar aprendizados, informações confiáveis e iniciativas no contexto da pandemia, buscando amenizar diversos tipos de sofrimento ligados ao isolamento. Enquanto essas iniciativas são em geral mediadas por instituições com sólida experiência na área de saúde mental ou por iniciativas cidadãs voluntárias claramente não comerciais e transparentes quanto aos seus propósitos e funcionamento, os aplicativos de autocuidado psicológico e emocional que analisamos atuam numa zona nebulosa que mistura inovação tecnológica, interesses comerciais e apoio psicológico e emocional. Isso implica que suas ações e efeitos têm limites imprecisos, com diversas brechas éticas, jurídicas e epistemológicas, como veremos no RELATÓRIO “Tudo por conta própria”: aplicativos de autocuidado psicológico e emocional, que lançamos hoje.
O relatório é parte da pesquisa Economia Psíquica dos Algoritmos: racionalidade, subjetividade e conduta em plataformas digitais, coordenada pela Profa. Fernanda Bruno (membro da LAVITS) e desenvolvido juntamente com a equipe do MediaLab.UFRJ, em parceria com a Rede LAVITS. Ele apresenta resultados preliminares do estudo de 10 aplicativos de autocuidado psicológico e emocional utilizados no Brasil, gratuitos e disponíveis na Google App Store. Os apps foram selecionados a partir da análise de um universo inicial de 350 resultados de busca efetuada na plataforma App Annie, segundo critérios de relevância e popularidade. A análise se desdobrou em dois eixos. O primeiro se dedicou a uma camada mais visível dos aplicativos, especificamente ao discurso de apresentação e descrição dos apps e suas funcionalidades na loja de apps, em seus sites e redes sociais. O segundo eixo voltou-se para a uma camada mais opaca, visando mapear as formas de coleta, de uso e de compartilhamento de informações dos usuários desses apps. Destacamos, no primeiro eixo, que boa parte dos aplicativos dirigem-se a um “sujeito ansioso”, ao qual oferecem meios para cuidar de si mesmo, especialmente através do automonitoramento e do autoconhecimento. No discurso e nas ferramentas desses apps, o sofrimento psíquico e emocional, bem como a terapêutica proposta, estão fortemente centrados no indivíduo. No segundo eixo, ressaltamos a falta de transparência e clareza em relação ao tipo de dados que tais aplicativos coletam sobre os usuários, bem como sobre a trajetória desses dados tanto no compartilhamento com terceiros, quanto nas suas finalidades e utilizações. A partir da visualização dos trackers (rastreadores) presentes nos aplicativos e de uma breve análise dos seus termos de uso e privacidade, apresentamos algumas pistas sobre o ecossistema de dados e modelos de negócios predominantes.
Acesse aqui o RELATÓRIO “Tudo por conta própria”: aplicativos de autocuidado psicológico e emocional, que lançamos hoje.
Ver mais publicações relacionadas ao projeto:
BRUNO, Fernanda. A economia psíquica dos algoritmos: quando o laboratório é o mundo. Jornal NEXO, 12 de junho de 2018. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2018/A-economia-ps%C3%ADquica-dos-algoritmos-quando-o-laborat%C3%B3rio-%C3%A9-o-mundo>
BRUNO, Fernanda; BENTES, Anna; FALTAY, Paulo. Economia psíquica dos algoritmos e laboratório de plataforma: mercado, ciência e modulação do comportamento. Revista Famecos, Porto Alegre, v. 26, nº 3, set-dez, 2019. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/33095 >
Série Lavits_Covid19
A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.