Por Gilberto Vieira, Debora Pio e Rodrigo Firmino*
“O ator proposto − pensado literalmente de baixo para cima, corporificado e territorializado −, corresponde, potencialmente, ao circuito inferior reconhecido por Milton Santos, em O Espaço Dividido (1979), para a compreensão íntegra da economia urbana. Mas, este ator também corresponde às formas sociais sobreviventes das sucessivas modernizações e às formas mais modernas que tiveram, historicamente, a capacidade de interagir com práticas ancestrais, como aquelas produções e comércios em que a negociação predomina sobre a conquista e a destruição do outro. Existe, portanto, uma vida de relações, resistente e tenaz, que se opõe à abstração exigida pela operação sistêmica da concepção hegemônica de mercado.”
Em “Território Usado e Humanismo Concreto: o Mercado Socialmente Necessário“, Ana Clara Torres Ribeiro exalta a centralidade do território na busca por novos horizontes de resistência. Na verdade, ao lado de Milton Santos, Ana Clara já nos alertava, pelo menos desde os anos 1980, para a importância de compreendermos a força do “território usado” como campo de construção de utopias sob a ideia de ação política. Em um país marcado pela injustiça e desigualdade social, não é novidade que o novo coronavírus aumente exponencialmente os desafios para famílias que vivem em territórios populares como favelas, aldeias indígenas, quilombos e assentamentos. Dados do município do Rio de Janeiro de maio de 2020 (conhecidamente subnotificados) indicam que o número de mortes por Covid-19 nas favelas cariocas cresceu mais de 10 vezes em apenas um mês. A “normalidade”, nestes casos, já está pautada, há muito tempo, pela dificuldade de acesso a empregos formais, programas sociais, educação e assistência médica de qualidade, assim como condições mínimas de saneamento básico (incluindo abastecimento regular de água, esgoto e coleta apropriada de lixo). No Brasil são 13,5 milhões de pessoas sobrevivendo com até 145 reais mensais. No contexto da crise global de enfrentamento a pandemia, uma questão de saúde, no Brasil, pode facilmente e rapidamente tornar-se uma tragédia sanitária e humanitária.
Em situações de exceção, há uma tendência de maior receptividade a experimentações rápidas e acríticas com todos os tipos de inovações técnicas. A fé na ciência e na tecnologia aumenta, e todos tornam-se impacientes por respostas rápidas e soluções definitivas para a crise ou para criar amenidades que forneçam uma sensação temporária de normalidade. Nesse cenário de desespero, também surgem posições negacionistas e irresponsáveis no tratamento da crise: tratar a doença como uma “gripezinha”, culpabilizar o governo chinês pela suposta fabricação do vírus como parte de um plano de dominação comunista global, elevar a hidroxicloroquina e o vermífugo Annita como drogas salvadoras, ou definir o “isolamento vertical” como estratégia econômica, para citar apenas alguns exemplos mais recentes.
E aí que nos deparamos com ondas diárias de artigos distorcidos, áudios inventados, notícias manipuladas. A estratégia de disseminar desinformação através das mídias sociais é ferramenta poderosa desde os últimos pleitos pelo mundo. Já não é mais segredo que as eleições de 2018 no Brasil foram definidas pelos grupos no WhatsApp com altas doses de mentiras e manipulações criminosas. É trágico e curioso ver como uma estratégia de marketing desenhada para a disputa eleitoral ganhou sobrevida em uma nova roupagem, passando a ser empregada como ação sistemática de governo, com estrutura técnica e administrativa reforçada e gabinete no Palácio do Planalto. Não seria exagero dizer que o WhatsApp tornou-se ferramenta de governo.
Mas nem só de fake news é feito o “zap”. Essa crença nas tecnologias é também um canal de inovação, informação de qualidade e solidariedade. Isso parece nos interessar mais em contextos de crise. A pandemia extrapolou o que muita gente já sabia: as desigualdades históricas que o Brasil atravessa desde sua “fundação” só ficaram mais evidentes em um contexto excepcional. Para os moradores de favelas, que sempre tiveram que lutar para garantir o mínimo, não foi diferente. Logo que a pandemia se tornou uma realidade no Brasil, muitos deles perguntaram “o que vai acontecer quando o vírus chegar às favelas?” Essas localidades, que historicamente são vistas pelo poder público sob a ótica da ausência, seguem sem receber investimentos que deem conta de suas especificidades no contexto da crise. Por isso, moradoras e moradores se organizam para, mais uma vez, criarem suas próprias alternativas. As iniciativas vão desde grupos de informação no WhatsApp a campanhas de financiamento coletivo e distribuição de insumos. Fica ainda mais evidente que tecnologias como essa são apropriadas de formas distintas, em contextos e arranjos sociotécnicos com propósitos completamente diferentes.
Há inúmeros exemplos. A lista de transmissão Coronanews dispara diariamente no WhatsApp checagem de informações falsas que circulam pelos grupos de família. O grupo Corona nas Periferias é uma biblioteca de mídia que reúne serviços e notícias sobre a pandemia com foco nas periferias e favelas. O canal da Agência Mural distribui todas as manhãs um podcast curto com relatos de quem vive a quarentena nas quebradas de São Paulo. Além dos canais públicos, grupos de ativistas, jornalistas, profissionais da saúde, funcionários públicos, vizinhos e parentes se organizam para prestar apoio a quem está mais vulnerável. Desde o começo da quarentena, no mundo todo, o WhatsApp foi a mídia social que mais cresceu em tráfego de dados, com aumento de uso estimado em 40%.
As táticas de financiamento coletivo multiplicaram-se rapidamente, quase todos com o mesmo apelo: arrecadar dinheiro para garantir cestas básicas, água, produtos de higiene e limpeza, auxílio transporte para trabalhadores, logística de entrega de materiais, compra de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual) etc. Não por acaso, essas iniciativas assumem responsabilidades que deveriam ser do Estado. O Meu Rio, organização que desenvolve tecnologias e mobilizações para aproximar os cidadãos da tomada de decisão política, fez o esforço de reunir oito coletivos de diferentes favelas da região metropolitana (Acari, Complexo do Alemão, Complexo da Maré, Duque de Caxias, Santa Cruz, Sepetiba, Vila Kennedy e Viradouro) para fazer uma vaquinha unificada. A organização arrecadou, até maio de 2020, R$130 mil para distribuir entre os coletivos, e decidiu que a campanha continuará enquanto a pandemia e o cenário de emergência permanecer. Neste período já foram atendidas mais de 1.200 famílias.
Política, tecnologia, comunicação e assistência social dão o tom em todos esses movimentos. Nas periferias de grandes cidades, muitas organizações estão criando melhores maneiras e ferramentas para ajudar-se mutuamente. O #CoronaNaBaixada reúne cerca de 100 organizações na Baixada Fluminense, e suas ações se dividem em três frentes: (1) compartilhar experiências de solidariedade local; (2) disseminar estratégias para orientar os residentes a ficar em casa; (3) estabelecer contatos com os meios de comunicação e autoridades públicas, a fim de tornar visíveis os problemas enfrentados por esses territórios e monitorar as medidas que estão sendo adotadas.
Na região metropolitana de Curitiba, o Mapa da Solidariedade (organizado por pesquisadores da UTFPR, do Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo e Observatório das Metrópoles – Curitiba) organiza dados e informações georreferenciadas sobre vulnerabilidades e ações de resistência à crise do Covid-19 na periferia. O mapa é ferramenta essencial ao dar visibilidade a um grande número de iniciativas de pequeno porte e desconhecidas de boa parte da população, e ao desconstruir a narrativa de que a periferia é desorganizada e passiva no enfrentamento à pandemia.
No Complexo de favelas da Maré, um bairro com 140 mil habitantes da Zona Norte da capital fluminense, o data_labe, uma organização de mídia, dados e educação formada por 15 jovens de diversos territórios e repertórios, vem desenvolvendo, desde antes da pandemia, o Cocôzap – um projeto de mapeamento, incidência e participação cidadã sobre saneamento básico em favelas. Através de denúncias dos moradores via WhatsApp o projeto mapeia violações de direitos sanitários, promove encontros comunitários e produz reportagens com base em dados públicos e histórias da comunidade. O data_labe pode ser entendido como um desses novos movimentos sociais, organizados pela juventude a partir de suas referências conceituais e estéticas que aproximam tecnologia e consciência de classe; empoderamento racial e políticas públicas; direitos humanos e empreendedorismo, horizontalidade e modelo de negócio.
No contexto da pandemia, diante da impossibilidade das articulações corpo a corpo, o arranjo sociotécnico que sustenta o Cocôzap (e, indiretamente, os problemas de saneamento da Maré, assim como as próprias ações do data_labe) precisou ser reconsiderado. Desde a implementação das medidas de isolamento social no Rio, o grupo tem se articulado para produzir narrativas sobre a centralidade dos debates e dados envolvendo a precarização dos serviços sanitários nas favelas do país e as consequências disso para a saúde das populações mais vulneráveis. É uma tentativa, também, de se conectar às redes de solidariedade, informações e ações já existentes, e fortalecer laços que já existiam, como mencionamos anteriormente.
Os dados e as ações (políticas e de solidariedade), mediadas por algumas ferramentas, parecem estar formando uma nova frente de ativismo político nas favelas e periferias. Várias das iniciativas que levantamos aqui fazem parte do que temos entendido como “revolução periférica dos dados” que assume um papel importante no engajamento e na capacidade de incidência dos moradores de favelas e periferias nas políticas locais. A ideia central dos coletivos, organizações e projetos parecem disputar a narrativa que se criou em torno dos dados: num extremo, vulnerabiliza os usuários das plataformas digitais, redes sociais e aplicativos de todo tipo; e noutro, credibiliza quem quer que apresente dados para comprovar falácias e mentiras na rede.
Todas essas ações e possibilidades de articulação, mediadas ou não por tecnologias, parecem se alinhar a um dos cenários propostos por Rafael Evangelista no segundo texto da série Lavits_Covid-19, “a distopia de aceleração está a caminho?”, que se desenham em meio à emergência de reação à crise: o de ruptura. A pandemia global e inédita que estamos vivendo é resultado de catástrofes ambientais, políticas econômicas pré anunciadas e que agora exigem rupturas. Certamente será uma disputa injusta diante dos contextos de exceção e aceleração apresentados por Rafael. Elas podem vir desorganizadas diante das estruturas criadas pelos sistemas financeiros e pelas grandes corporações, mas é nas periferias que as rupturas se tornam concretas, no “território usado” e no “humanismo concreto” de Ana Clara Torres Ribeiro. Os exemplos que trouxemos aqui são parte de um movimento ainda desigual mas fundamental para o entendimento de um futuro próximo cuja centralidade deveria ser a conquista de comunidades mais justas, sustentáveis e felizes.
*Gilberto Vieira é co-fundador e gestor do data_labe, mestre em Cultura e Territorialidades pela Universidade Federal Fluminense.
*Debora Pio é doutoranda em Comunicação na UFRJ, pesquisadora do Medialab e coordenadora do Nossas, laboratório de ativismo do qual o Meu Rio faz parte.
*Rodrigo Firmino é doutor em Planejamento Urbano pela Newcastle University, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), e membro da Rede Lavits. Em parceria com Andres Luque-Ayala (Durham University), Rodrigo coordena pesquisa sobre ativismo digital e ambientes urbanos, financiada pela British Academy, e que tem o data_labe e o CocôZap como estudos de caso.
Série Lavits_Covid19
A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.