“O Rio vem sendo usado como laboratório para política de segurança pública fracassada”

Logo após o governo federal decretar a intervenção no Rio de Janeiro, a formação de uma Comissão Popular da Verdade foi proposta em uma plenária da Federação de Favelas do Rio (Faferj). Contando com aproximadamente 800 associações filiadas, a Faferj foi fundada em 1963 para fazer frente à remoções de moradores de áreas de favela.

Em entrevista, o secretário-geral da federação, Fillipe dos Anjos, fala sobre a proposta dessa comissão que seria formada para investigar as arbitrariedades feitas em missões de “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO) realizadas desde 1992. O Rio de Janeiro recebeu 17 dessas missões apenas nessa década. O secretário também integra o Observatório da Intervenção, que é liderado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade Cândido Mendes, e visa fazer um levantamento sobre as operações militares mais recentes no Rio de Janeiro. O Cesec possui um conselho formado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pelo Observatório da Maré, pela própria Faferj, entre outras entidades.

 

L.: Como está sendo feito esse trabalho que foi descrito pelo Jornal do Brasil como parte das atividades do Observatório da Intervenção, entre elas “ter um grupo criptografado no Whatsapp para denúncias anônimas, que são encaminhadas para especialistas e tutoriais distribuídas na rede”? Como está o andamento dessas atividades?

Fillipe dos Anjos: Nas redes sociais você pode ver que é o trabalho do DefeZap.  É um trabalho anterior à intervenção federal militar aqui no Rio e visava o seguinte: o DefeZap recebe as denúncias só pelo Whatsapp, pode ser áudio, vídeo – principalmente vídeo – para que essas denúncias sejam apuradas. Através de mecanismos que mantenham o sigilo, elas são enviadas para um banco de dados, onde as pessoas vão analisar e possivelmente fazer as denúncias. O DefeZap não é uma iniciativa da Faferj, mas são os companheiros que estão aí nessa luta de denúncia de violação e de violência na favela, já há algum tempo usando a tecnologia.

 

L.:Qual a sua percepção sobre as práticas dos militares, também adotadas pela Polícia Militar, de fotografar moradores de favelas?

F.D.A.: Isso é um constrangimento, isso é ilegal. Nas palestras que a Faferj sempre deu nas favelas difundimos que acreditamos no seguinte: os cidadãos tem direitos e deveres, isso faz parte da constituição do cidadão. Ser cidadão é isso, é você cumprir com o seu dever e exigir os seus direitos. Em uma abordagem policial, o cidadão é obrigado a se identificar, é uma obrigação perante a autoridade que está abordando ele ali. Então não posso, em hipótese alguma, deixar de me identificar. Isso não significa que eu tenha que estar portando a identidade. Se eu lembrar o número da identidade eu vou me identificar onde eu moro, meu nome todo e já estou identificado. É dever do agente policial, se ele não se sentir satisfeito com a identificação, que conduza o morador até a delegacia e lá levante os números com a tecnologia necessária. Mas você abordar uma pessoa, fotografá-la, a identidade e a pessoa, isso é um constrangimento desnecessário, ilegal, e que não está em nenhuma regra de abordagem possível. A regra de abordagem tem que ser a mesma no asfalto e na favela. Orientamos as pessoas no seguinte: você se identifica ao agente que tá lhe abordando, de preferência com o RG, que na favela… às vezes você vai comprar um pão ali na esquina e vai levar a identidade para comprar um pão, se é tão perto? Na favela tem isso. Eu faço muita eleição em favela, que são aos domingos, quando as pessoas eleição para a associação de moradores. Elas vem votar e muitas vezes não tem o RG e se a pessoa é um morador conhecido tanto da chapa A quanto da chapa B, já convive com aquela pessoa há mais de 30 anos na favela, por que pedir a identidade? A gente orienta que as pessoas andem identificadas, mas a gente também não vai permitir que sejam feitas abordagens constrangedoras com os moradores.

Isso faz parte de um preconceito, da ideia de que a favela como um todo é marginal, isso faz parte de um processo de criminalização da pobreza, onde a favela é um lugar a ser temido.

A gente luta contra tudo isso. No fim, isso representa o preconceito, que é estrutural, o preconceito se estruturou assim. A favela tem mais de 100 anos. Nesses últimos 100 anos ela tem sido vista como lugar errado de pessoas desonestas, lugar desorganizado. E quem está lá? Pessoas de respeito, que tem suas religiões, que pagam seus impostos. O pobre paga infinitamente mais impostos, a carga tributária incide muito mais sobre a população pobre e as pessoas são cidadãs, consumidoras, são religiosas. Negar isso faz parte da criminalização da pobreza, do Estado abandonar aquelas pessoas, as políticas sociais efetivas que podem fazer com que a favela se desenvolva, e só colocar o braço armado, a repressão, a militarização. Tudo o que a gente sabe que não vai adiantar.

 

L.: Por que seria necessária a formação de uma Comissão Popular da Verdade?

F.D.A.: Essa necessidade surge porque quem mora nas comunidades e já viveu as operações da GLO já pôde ver um pouco como o exército brasileiro atua. O Rio de Janeiro vem sendo usado como uma espécie de laboratório para política de segurança pública fracassada, uma atrás da outra. Até copiadas de outros lugares como a UPP [Unidade de Polícia Pacificadora] que é uma cópia barata do Plano Colômbia que na Colômbia não deu certo. Esse modelo de combate guerra às drogas que foi executado no México matou milhares de pessoas e os Estados Unidos continuam sendo os maiores consumidores de cocaína do mundo, o exército está na rua há 11 anos no México e não resolveu nada. A ocupação da favela da Maré custou milhões e aí lá tem umas 5 ou 6 facções criminosas brigando pelo poder, oprimindo a população. Foram milhões de reais jogados na lata de lixo.

 

L.: Como a Comissão Popular da Verdade agiria?

F.D.A.: A Faferj é uma associação com essa comissão, estamos acompanhando. Mas para que se monte uma Comissão Popular da Verdade que investigue e possa apurar é preciso trabalho técnico, então precisamos de advogados, da OAB, da defensoria do Ministério Público, a gente precisa que eles toquem esse trabalho. Porque nós somos comunitários, temos nossos afazeres. A gente pode ajudar com muitos elementos. A Comissão Nacional da Verdade da ditadura envolveu historiadores, antropólogos, arqueólogos, advogados. Foi uma grande força-tarefa para apurar os crimes da ditadura. Queremos montar uma coisa muito parecida para pegar pelo menos de 1992 para cá. Fazer um recorte e pegar todas essas ações e o impacto que elas causaram, os crimes cometidos, quanto dinheiro foi gasto, qual o retorno disso. O exército, na redemocratização, tem vindo às ruas frequentemente no Brasil, a segurança cada vez apresentando números mais alarmantes – aí desde o crime comum a trafico, a tudo – e as coisas não melhoram.

 

L.: Então a atuação da Comissão Popular da Verdade se daria em paralelo ao Observatório da Intervenção, pois esse observatório se volta especificamente para a intervenção e a Comissão investigaria a atuação do exército desde 1992 nas favelas?

F.D.A.: Isso, exatamente, o Observatório da Intervenção, lançado pela Cândido Mendes e Cesec é uma iniciativa muito importante. Lá tem sociólogos, pesquisadores, especialistas em segurança pública onde somos conselheiros. A Faferj está integrando a Frente Contra a Intervenção que é uma iniciativa do Sindicato dos Profissionais da Educação no estado do Rio de Janeiro (Sepe-RJ) e Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN) com a Faferj. É uma grande frente contra a intervenção para envolver a sociedade como um todo. Na Faferj nós temos o Fórum Permanente, que vai ser no dia 28 [de março]. Esse fórum tem como objetivo que essas entidades, essas pessoas que estão interessadas em agir contra a intervenção militar e de alguma forma gerar o debate para a população, que elas venham trazendo propostas e a nossa é levar esse debate: a intervenção militar é capaz de sanar o problema de segurança pública? O problema de segurança pública no Rio de Janeiro é uma questão militar? E temos que debater outros temas: a desmilitarização da polícia, a descriminalização das drogas, temos que debater de onde vêm esses armamentos que estão entrando nas comunidades, a droga, que logística é essa capaz de abastecer uma favela com milhares de munições e armas e entorpecentes, quem tem o domínio desse aparato logístico para que isso vá parar numa favela? Temos que discutir isso porque não é o favelado [que tem esse domínio].  Eu não conheço ninguém na Receita Federal, não conheço ninguém na Polícia Federal, não conheço ninguém chefe de porto aeroporto ou rodovia. Mas essa droga tá entrando, ela não se teletransporta. O último culpado disso é o favelado, que ocupou essas áreas por não ter onde morar historicamente no Brasil. Historicamente a favela é uma ocupação em uma área que ninguém queria. Com o crescimento das cidades e as dificuldades da vida as pessoas foram ocupando onde dava. Não havia programa de governo nem nenhum tipo de assistência social, social, principalmente depois da abolição da escravatura. Mas, na verdade, o que a gente entende é que é um processo de criminalização da pobreza. Quando tem uma intervenção militar voltada para a favela sabendo que a favela não produz isso – não produz arma, não produz droga – é uma criminalização da pobreza. Aquele agente político que tá na favela ali, aquela pessoa, ela é a força que trabalha, que move a cidade, o estado, o país. Se a favela parar, para tudo. Governo sabe disso, historicamente no Brasil o povo se rebelou várias vezes. O povo mais pobre, desde o período colonial, a regência, o período republicano, o povo se insurge várias vezes e o Estado de forma violenta ou muito violenta sufoca. Então quem é capaz de se insurgir contra um Estado – golpista, por exemplo, que nem o nosso, impopular, sem moral, corrupto – é o povo. É o povo o principal alvo dessa intervenção.

 

Ilustração do material de divulgação do Observatório da Intervenção, por Laerte

L.: O ministro da Segurança Pública voltou a dizer que deseja envolver toda a sociedade no combate ao crime e que vai buscar parcerias e contribuições junto a empresários, sindicatos, Ordem dos Advogados do Brasil, organizações não-governamentais e igrejas para obter doação de recursos para financiar a intervenção, embora a responsabilidade maior seja do poder público. A seu ver, que tipo de recursos as favelas precisam?

F.D.A.: Na Faferj, na nossa nota, nós defendemos a intervenção social. Tem uma nota publicada no Facebook e no blog. No blog o título da nota é “queremos uma intervenção social que nos traga vida, não queremos uma intervenção militar que nos traga morte”. Essa é a posição da Faferj. Para que o estado ocupe de fato o território que ele deixou à margem das políticas sociais há mais de um século. O exército seria a última etapa de uma ocupação social. Seria o último, aquela parte da segurança. Porque a favela está abandonada e tem suas regras de convivência. O marginal que atua na favela, atua porque o Estado não ocupa o lugar social que deveria ocupar. Abandona as pessoas à própria sorte, aquele espaço não recebe nenhum tipo de olhar por parte do Estado social, muito menos segurança pública. Então é lá que os marginais vão ocupar. Se o exército quisesse na verdade fazer uma ocupação bem sucedida, os manuais militares de todas as academias do mundo, você vai perceber que o militar precisa ganhar a confiança do cidadão local. Se não ganhar a confiança do cidadão local, se ele não estabelecer um perímetro de segurança mínimo para que ele possa atuar, as operações fracassarão. Então o Estado ele precisa entrar ali com escola, com hospital, com creche, com assistência. Nós estamos com uma crise da saúde enorme nas clínicas da família.

A relação do povo com o exército é uma relação desgastada, é uma relação que toda vez que o exército tomou as ruas foi através da repressão, da violação dos direitos humanos, da criminalização da pobreza. A relação do povo com o exército, historicamente falando é difícil, é uma relação complicada. O exército é a força das armas que o Estado tem, tecnicamente a função do exército para o Brasil é manter a soberania nacional, então é dever do exército cuidar das nossas fronteiras. Num país que já entregou o pré-sal, já entregou os minérios, nossos aquíferos, a Amazônia, estamos entregando tudo, nós não temos uma soberania para defender, nós temos um governo golpista impopular subserviente do capital internacional. E esse exército vai defender que soberania nacional? Que soberania nacional é essa que a gente está reivindicando que tem um exército que a defenda? Para quê? O exército historicamente no Brasil tem sido usado para reprimir o povo.  E a favela é alvo não é à toa. É lá que estão milhares de trabalhadores. Nós não temos nada contra o exército, que tem uma participação gloriosa no combate ao fascismo na Segunda Guerra Mundial, tem a sua história, é uma instituição em que o povo confia, mas essa relação, toda vez que o exército vêm à rua é difícil, uma relação complicada.

 

L.: Como agiria a polícia?

F.D.A: Não podemos ter uma polícia militar baseada na guerra – tem um texto no blog da Faferj que diz que a filosofia da guerra não serve para a favela porque a favela não declarou guerra à ninguém. A filosofia da guerra transforma o favelado, em especial, em números frios. No último sábado, teve um tiroteio no alemão no qual três pessoas morreram. São três pessoas que morreram, um bebê que morreu. A sociedade se comove, mas a gente faz o quê? A polícia vê um marginal em uma rua lotada, abre um tiroteio, mata um marginal e três inocentes estão ali. Não estou acusando a polícia, a perícia vai dizer se foi a polícia ou não, mas a filosofia da polícia foi de confronto num lugar onde havia várias pessoas passando. A estratégia melhor, se a polícia quer servir e proteger, não seria recuar, mas agir com inteligência, chamar reforço, deixar o marginal passar para fazer uma perseguição tática? Mas você abre conflito num lugar em que há centenas de pessoas, dá um tiro de fuzil 7.72 mm que, pela convenção de Genebra, só pode ser usado em guerra. Essa filosofia da guerra a gente tem que debater.

Tem gente que fica em casa falando que bandido bom é bandido morto, mas aí é muito fácil falar quando é o policial pobre que vai subir o morro. Nós já temos 134 policiais mortos. São 134 pais de família, isso é inaceitável em qualquer democracia do mundo.

 

L.: Quais são os próximos passos do Observatório e no sentido de formar uma Comissão Popular da Verdade?

F.D.A.: Infelizmente a companheira Marielle Franco se foi, assassinada brutalmente e covardemente, tudo indica que foi uma execução pela forma e pela dinâmica do crime. A partir de agora todos os militantes que militam pelos direitos humanos, principalmente militantes que militam na favela, vão ter que redobrar a sua atenção. Não dá mais para militar como a gente militava antigamente, algumas medidas básicas de segurança vão ter que ser tomadas. Nós temos que ter uma rede para nos proteger, de advogados, de militantes, enfim. Agora é a hora da gente. Perdemos a Marielle, uma mulher honesta, trabalhadora, da favela.  Ela fazia um grande trabalho, um trabalho excelente na Câmara de vereadores, um lugar onde é difícil de trabalhar. O Brasil é governado por homens ricos, brancos, heterossexuais. Quando uma mulher negra da favela chega ao parlamento, ela assusta, ela causa ali um debate. Ela trazia debates sobre a comunidade LGBT, sobre as mulheres, debates que são necessários num país que tem uma matriz patriarcal, racista e machista. Ela denunciava tudo isso e incomodava muito, e é esse incômodo que a gente tava querendo.

O caminho é a gente debater, levar propostas para que: primeiro, cobrar das autoridades que essa investigação seja feita a fundo e não se poupem recursos; e segundo temos que redobrar nossa segurança para que não se repita com nenhum dos outros militantes do Observatório.

 

 

Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

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