#8: o vírus segundo o WhatsApp: desinformação e morte no Brasil de Bolsonaro

 

Por Bruno Cardoso e Rafael Evangelista

Nas eleições presidenciais de 2018, a circulação de desinformação por WhatsApp foi um dos assuntos mais discutidos, sendo não raramente apontada como uma das explicações para os surpreendentes resultados no executivo e legislativo, federal e estaduais. Diante do sucesso do campo conservador na disputa por votos ao redor do país, tornou-se lugar comum entre os vencidos sintetizar o esquema de circulação de notícias falsas nos grupos do aplicativo de comunicação através da imagem da “mamadeira de piroca”, que teria sido distribuída para bebês em creches de cidades administradas pelo Partido dos Trabalhadores, como forma de promover a “ideologia de gênero”. Possivelmente essa notícia específica não teve tanto peso ou circulação durante o processo eleitoral, e é provável que o exemplo da mamadeira seja uma hipérbole, mas que ao mesmo tempo fala de desinformação sobre as desinformações. A ironia desta situação simultaneamente nos indica o quanto é grave o problema, mas também permite compreender algo fundamental na dinâmica que se estabelece a partir e em torno das “fake news”, como mais habitualmente o fenômeno é referido. Ela nos lembra, segundo lições dos velhos estruturalistas, que a aceitação ou não de um fato seria menos uma questão de objetividade ou verificabilidade do mesmo (o que explica a dificuldade dos mecanismos de fact checking em combater a desinformação), e mais de adequação daquela (des)informação ao sistema classificatório do receptor da mensagem1. A mamadeira soa radical e absurda, mas não funciona por si só e nem precisa ter circulado muito ou ter sido de fato levada a sério, ela é índice de um conjunto de ideias que tem uma coerência interna e que mobilizam pessoas para a ação. Voltaremos a esse ponto adiante.

Desde o processo eleitoral, seguidas revelações apontam para um esquema profissionalizado e bem estabelecido de distribuição de desinformação no WhatsApp tendo em vista objetivos políticos que não se limitam, longe disso, a períodos e disputas eleitorais2. Diversas pesquisas acadêmicas3 já haviam apontado para uma estrutura oculta organizada de montagem e influência em grupos de discussão política no aplicativo. Nessa estrutura em rede, os pontos mais importantes são perfis, muitas vezes falsos e administrados profissionalmente, que fazem parte de numerosos grupos, organizados para distribuir e viralizar informação falaciosa ou distorcida, de modo a controlar o debate nesses espaços, calando dissidentes e pautando a discussão. Muito do conteúdo compartilhado acaba extrapolando a rede de influência desses perfis profissionais, por meio de usuários orgânicos, que são convencidos pela desinformação e repassam então os memes, notícias, imagens, vídeos e áudios em grupos de família, de amigos ou de interesses diversos. Esses usuários, que chamamos de orgânicos, participam dos grupos mas desconhecem haver neles perfis dedicados a monitorar e controlar o debate naquele contexto e organizados entre si. Lançado como mensageiro instantâneo, com sua estrutura de grupos fechados o Whatsapp se tornou algo mais próximo, na prática, a uma rede social defeituosa.

O acompanhamento por um longo período dos grupos de WhatsApp bolsonaristas, como é próprio das pesquisas etnográficas, permite que se vá associando e ordenando o material que ali circula e a interação entre os participantes, e com isso seja possível identificar algo como uma cosmologia que sustenta e dá sentido àquelas informações, relacionando-as e construindo assim uma visão de mundo coerente, segundo seus próprios princípios, e que engloba o passado, o presente e qualquer acontecimento futuro. Com o tempo, passa a ser possível acompanhar o noticiário pela imprensa corporativa e já imaginar, de modo geral, como os acontecimentos vão ser narrados nos grupos, ou se vão ser ignorados. Por isso mesmo não pareceu improvável aos antibolsonaristas, embora fosse deveras revoltante, que a narrativa da “ideologia de gênero” sustentasse a crença na infame mamadeira. Ela se enquadra sem dificuldades no seu sistema classificatório, fornecendo uma imagem boa para pensar os conservadores, seus fantasmas e também a rede de disseminação de desinformação operada pelo WhatsApp.

Além dessa “cosmologia” de extrema-direita, ou mesmo por causa dela, a belicosidade e um sem número de brigas e inimigos que não param de se multiplicar, se estabelecem como dinâmica de funcionamento dos grupos de WhatsApp, à semelhança da atuação do próprio governo federal. Assim, em meio a ataques a governadores, prefeitos, políticos da oposição e membros do judiciário, o que se pode perceber é a emergência de uma narrativa internamente coerente sobre a pandemia, sobre sua origem, efeitos econômico-sociais e os modos de combatê-la. Nunca é demais enfatizar, apontar essa imagem como coerente não significa dizer que ela tem relação com o real, embora mescle elementos dele, mas que ela tem uma lógica interna que informa e é informada por uma visão sobre o mundo. Alguns pontos específicos dessa história podem variar, em versões contraditórias sobre características episódicas, mas um corpo fixo emerge a partir dos áudios, notícias, vídeos, textos e imagens que circulam por diferentes grupos de Whatsapp, bem como em outras mídias sociais. Enfatizamos o Whatsapp porque, entre outros motivos, por sua arquitetura em pequenos grupos fechados, ele se distancia mais do contato com outras mídias sociais, formando um ambiente com características específicas. Cesarino — em COMCIÊNCIA (2020) — aponta algumas particularidades funcionais do WhatsApp que o diferenciariam do Facebook, por exemplo. O Whatsapp oferece um ambiente relativamente isolado, dadas as regras para a entrada e a criptografia dos grupos de discussão; e o WhatsApp transmite confiança, também pelo seu fechamento por criptografia, mas principalmente por tratar de maneira quase indiferenciada (na época das eleições nem a indicação de mensagens encaminhadas existia) o que é produzido pelo próprio usuário ou o que é repassado. Essa última característica produz um efeito de aproximação e apagamento, em que os conteúdos chegam na ponta como vindos direto da fonte. Adicionalmente, a transição organicamente operada dos grupos de discussão política para os demais grupos se dá através de pessoas próximas (em especial em grupos de família e de amigos), o que muitas vezes dota o conteúdo compartilhado de certa confiabilidade.

No contexto da crise da COVID-19, o problema da desinformação se agrava, dada a interrelação da questão da administração de medidas de combate à pandemia com os conflitos cotidianos da política e o ambiente de crise. A desinformação política se transforma em desinformação médico-científica. Recomendações públicas de autoridades científicas são questionadas como se estivessem sempre envenenadas por interesses políticos, como se fossem tentativas elaboradas de manipulação conspiracionista sobre o público. Vejamos, então, essa narrativa do Covid-19 condensada como ali compartilhada.

O novo coronavírus teria surgido na China, fruto ou de manipulação em laboratório ou de hábitos alimentares selvagens ou desesperados dos chineses. Há histórias que associam também a Covid com a instalação de antenas 5G, tecnologia originária da China e que teria como objetivos a vigilância e o adoecimento da população mundial. De qualquer forma, ele teria sido escondido pelas autoridades sanitárias do país, em conluio com a Organização Mundial da Saúde, até que se espalhasse pelo mundo. A China estaria interessada no espalhamento da doença para vender produtos médico-hospitalares por preço inflacionado e enfraquecer economicamente outros países, podendo assim comprar empresas e recursos naturais pelo mundo com preços mais baixos. Algumas autoridades saberiam disso e vêm alertando o mundo — aquelas que chamam o vírus de vírus chinês –, mas são caladas ou reprimidas por outras que foram compradas pela OMS, pela China e/ou pelo globalismo. A doença pode até existir, mas é menos grave do que se alardeia por aí. O alarmismo é parte do plano, que envolve quebrar as economias deixando as pessoas em casa mas também implantar ditaduras pelo mundo, que controlam eletronicamente os passos de todos por meio de dados de celulares e talvez, no futuro, pela implantação de chips. Além disso, as medidas de higiene pessoal estariam enfraquecendo as pessoas, que perdem resistência natural a vírus e bactérias ao usarem álcool em gel e tomarem banhos demais. Prova disso seria o fato evidente de pobres serem mais resistentes a doenças. No nível local, o alarmismo seria reforçado por governadores e prefeitos, que se aproveitam das leis de calamidade pública para desviarem recursos, fazerem compras sem licitação, e atacarem os adversários políticos que são patriotas. Os políticos locais estão também em conluio com os chineses, querem vender tudo pra eles e ajudá-los a implementar suas tecnologias de controle. Eles buscam também fomentar a desordem para atingir Bolsonaro, e só os caminhoneiros poderiam salvar o Brasil do caos social que o desabastecimento das cidades fatalmente trará. Um sinal do alarmismo produzido pela cobertura da imprensa sobre a pandemia é que os hospitais estão vazios, como denunciam médicos e enfermeiros patriotas. Muitas mortes estão sendo atribuídas ao vírus mas têm outras causas, os pacientes nem estão sendo testados mas consta Covid no atestado de óbito. Prefeitos, governadores e gestores de saúde estariam inflando os números ao enterrar caixões vazios ou com pedras, assim como ordenando que covas coletivas sejam abertas, mesmo sem que haja cadáveres para preenchê-las. Hospitais de campanha foram montados e já estão sendo desmontados sem terem sido usados. No fim, todo mundo uma hora vai pegar o vírus, isso seria inevitável. Pessoas que estão em casa estão pegando mais o vírus do que as que estão fora, porque em casa o vírus fica preso e circula mais. Mas a cura existe, é barata e envolve reforçar a imunidade comendo bem, tomando sol e fazendo uso da cloroquina e seus derivados. Os médicos estão usando a cloroquina secretamente para eles. Os governadores e prefeitos não estão dando cloroquina às pessoas porque enquanto houver crise vai haver mais dinheiro para roubar. Mas quem já tomou a cloroquina está repassando a dosagem e é só segui-la assim que aparecerem os sintomas. A indústria farmacêutica não quer que as pessoas saibam que a cloroquina cura porque quer vender um remédio muito mais caro, patenteado. Os cientistas estão nesse complô, porque recebem da indústria. Alguns sabotaram os testes com a cloroquina aplicando uma dosagem altíssima e tudo, até dipirona, em excesso mata. Os comunistas são parceiros no complô porque querem atacar os políticos patriotas. Além disso, há um interesse escuso por trás da produção de vacinas, cujo lobby seria pela Fundação Bill & Melinda Gates, que teria muito a lucrar com a obrigatoriedade da vacinação ou com a corrida para se vacinar ao fim da quarentena.

Há variações curiosas nessa história, que alteram elementos laterais mas mantêm os fundamentais. Por exemplo, o quinto áudio mais compartilhado na semana de 15 a 21 de maio capturado pelo WhatsApp monitor, da UFMG (RESENDE et al, 2019). Nele, uma senhora fala que o vírus estaria sendo distribuído pelos chineses por meio de melancias contaminadas, que pessoas estariam sendo obrigadas a comer essas melancias para pegarem a doença e que na sequência vacinas contaminadas seriam distribuídas. O objetivo final seria o controle populacional pelo governo chinês, que quer comprar o Brasil e os EUA, mas não quer toda a população. Em vídeos, que também circularam nas redes, pessoas repetem que a China teria enviado máscaras já contaminadas para o Brasil, no intuito de enfraquecer a população e lucrar com a pandemia, levando “patriotas’ a irem a pontos de distribuição gratuita dessas máscaras para convencerem a população a não aceitar o material descartável oferecido.

Um dado curioso é que vários elementos constituintes da narrativa geral muitas vezes são retirados da mídia tradicional, e até mesmo de veículos da esquerda. Por exemplo, para criticar as políticas de levantamento de dados que informam se a população está obedecendo ou não as sugestões de isolamento, um vídeo foi montado com pedaços de matérias jornalísticas que trazem críticas de pesquisadores com relação à cessão gratuita de dados de navegação em redes públicas de Wi-Fi em troca de conexão pelo governo João Dória. O mesmo vídeo traz ainda matérias que falam do processo de desestatização de empresas do estado de São Paulo, uma pauta que a direita costuma defender, porém dá a entender que está sendo tudo entregue aos chineses. Mostra ainda o comentarista da Jovem Pan, Augusto Nunes, criticando o enfrentamento da pandemia pelos chineses. Com frequência comentaristas conservadores são utilizados para referendar ou reforçar partes da narrativa.

Já autoridades políticas contribuem para a narrativa reforçando, se não elementos factuais, princípios gerais de entendimento da ordem das coisas. Tanto Donald Trump quanto Jair Bolsonaro deram declarações falando explicitamente em “vírus chinês” e estimulando algum tipo de xenofobia ou ideia de competição entre blocos de países relacionada ao novo coronavírus. O deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), ferrenho apoiador do presidente, gravou vídeo, que circulou pelos grupos, em que repete ideias cientificamente erradas sobre imunidade natural, emprestadas do movimento internacional anti-vacinas. Bolsonaro já havia explicitado ideia parecida, quando disse que os brasileiros nadam no esgoto e nada acontece, pois já seriam imunes a doenças após tanto tempo convivendo com elas. “Eu acho até que muita gente já foi infectada no Brasil, há poucas semanas ou meses, e ele já tem anticorpos que ajuda a não proliferar isso daí”, afirmou4. O fenômeno da desinformação não envolve somente o falseamento de fatos objetivos, mas a compreensão sobre ordens causais de fenômenos.

O acompanhamento simultâneo das declarações dos membros e apoiadores do governo (além do próprio Jair Bolsonaro) e dos grupos de WhatsApp permite inferir uma coordenação entre as estratégias argumentativas nos dois âmbitos. O conteúdo que circula nos grupos forneceria elementos para que as atitudes e falas do governo pudessem ser interpretadas positivamente por seus apoiadores, surpreendendo aqueles que não estariam familiarizados com a cosmologia em constante construção e adaptação da extrema-direita. No caso aqui relatado, da pandemia de covid-19, pronunciamentos5, entrevistas6, atitudes7 e medidas8 presidenciais, que tinham como objetivo contestar ou boicotar as recomendações e políticas de isolamento, (se) sustentavam (em) uma narrativa divulgada de forma intensa em uma extensa rede de grupos bolsonaristas de WhatsApp. Ao mesmo tempo, essa narrativa vai produzindo as condições de aceitação desses atos e declarações ao fabricar sujeitos bolsonaristas, em um movimento que se radicaliza em uma defesa messiânica do líder.

O efeito dessa composição do presidente com os grupos que lhe apoiam no WhatsApp tem sido menos a sua perda de popularidade, que se mantém em torno de um terço do eleitorado, como indicam pesquisas, e mais o esvaziamento das medidas coletivas mais eficazes para a proteção da vida da população e a melhor gestão da saúde pública. Um reflexo disso são as pressões pela reabertura econômica e pelo afrouxamento do isolamento em um momento de expansão do contágio e das vítimas diárias, pressões que partem não só de setores econômicos interessados mas de apoiadores do presidente em geral. Essas medidas de abertura contrariam diretamente tudo que havia sido tratado ao longo dos últimos meses como consenso, científico, médico e administrativo. Numa séria crise na qual as medidas de restrição de contato e as informações sobre como evitar o contágio são as melhores armas, até agora, para se lidar com a doença, a estrutura argumentativa da rede de grupos bolsonaristas pesquisada, e sua relação direta com a atuação do presidente da República, têm como efeito imediato o atentado contra a vida, de modo geral, de toda a população do país. E um número de mortos que nunca saberemos ao certo calcular.

Referências bibliográficas:

COMCIÊNCIA. Letícia Cesarino: “Todo populista bem-sucedido hoje precisa ser também um bom influenciador digital”. Disponível em: <http://www.comciencia.br/leticia-cesarino-todo-populista-bem-sucedido-hoje-precisa-ser-tambem-um-bom-influenciador-digital/>. Acesso em: 4 jun. 2020.

EVANGELISTA, Rafael; BRUNO, Fernanda. WhatsApp and political instability in Brazil: targeted messages and political radicalisation. Internet Policy Review, v. 8, n. 4, 2019. Disponível em: <https://policyreview.info/articles/analysis/whatsapp-and-political-instability-brazil-targeted-messages-and-political>. Acesso em: 4 jun. 2020.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O totemismo hoje. In: Lévi-Strauss (Coleção os pensadores). São Paulo: Abril, 1985.

RESENDE, Gustavo; MELO, Philipe; SOUSA, Hugo; et al. (Mis)Information Dissemination in WhatsApp: Gathering, Analyzing and Countermeasures. In: The World Wide Web Conference. San Francisco, CA, USA: Association for Computing Machinery, 2019, p. 818–828. (WWW ’19). Disponível em: <https://doi.org/10.1145/3308558.3313688>. Acesso em: 23 jan. 2020.

Notas:

1 Sobre essa discussão, ver, por exemplo, Lévi-Strauss (1985).

2 A esse respeito, ver as sessões da CPMI das Fake News e os desdobramentos de investigações sobre o tema que estão sendo realizadas pelo STF.

3 Ver, entre outros, RESENDE et al, 2019; e EVANGELISTA e BRUNO, 2019.

8 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/bolsonaro-inclui-academias-saloes-de-beleza-e-barbearias-em-servicos-essenciais-durante-pandemia.shtml

Série Lavits_Covid19

 

A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.

 

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