Saúde mental em tempos de neoliberalismo: trabalho do Medialab.UFRJ analisa aplicativos de autocuidado psicológico e emocional

“21 aplicativos que vão deixar o seu dia melhor”, “Autocuidado – Dicas e apps para manter a paz em tempos turbulentos” e “O autocuidado pode ser uma arma poderosa contra a ansiedade” são alguns dos títulos dos resultados encontrados, em uma rápida pesquisa em um site de buscas, ao preencher o campo com o termo “aplicativos de autocuidado”. Quais discursos sobre saúde mental e coletiva esses apps estão disseminando? Essa foi uma das perguntas que o relatório “Tudo por conta própria”: aplicativos de autocuidado psicológico e emocional, lançado recentemente por pesquisadores e pesquisadoras do Medialab.UFRJ, buscou responder.

O documento é um relatório parcial da pesquisa “Economia Psíquica dos Algoritmos: racionalidade, subjetividade e conduta em plataformas digitais”, apoiada pelo CNPQ e liderada pela pesquisadora Fernanda Bruno, que é coordenadora do Medialab.UFRJ e membra da Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits).

Também participam da pesquisa: Anna Bentes (doutoranda do PPGCOM-UFRJ, pesquisadora do Medialab.UFRJ e membra da Lavits), Mariana Antoun (mestranda do PPGCOM-UFRJ, pesquisadora Medialab.UFRJ), Paula Cardoso (doutoranda do PPGCOM-UFRJ, pesquisadora Medialab.UFRJ), Paulo Faltay (doutorando do PPGCOM-UFRJ, pesquisador Medialab.UFRJ e membro da Lavits), Helena Strecker (graduanda em Psicologia UFRJ, pesquisadora Medialab.UFRJ), Moisés Marrary (graduando em Biblioteconomia UFRJ, pesquisador Medialab.UFRJ) e Natássia Rocha (graduanda em Psicologia UFRJ, pesquisadora Medialab.UFRJ).

O relatório parcial apresentou a análise de 10 aplicativos de autocuidado psicológico e emocional – selecionados em um universo de 350 apps, a partir de critérios de relevância para a pesquisa e popularidade de acesso no Brasil –, que desdobrou em dois eixos: 1) uma camada mais visível, que diz respeito ao modo com que essas aplicações são apresentadas, a partir de quais discursos e promessas, e 2) uma camada mais opaca, que se refere aos dados que são coletados, utilizados e compartilhados por elas e qual o nível de transparência sobre essas informações.

Nos aplicativos analisados, o grupo notou uma possível influência da psicologia positiva e das técnicas de coaching, de abordagens centradas no paciente, de uma racionalidade neoliberalizante e individualista acerca dos processos de bem-estar psíquico e emocional. Além disso, a análise evidenciou a automação de todo tipo de práticas e serviços, o investimento em coleta de dados sobre as emoções e hábitos das pessoas e do espraiamento do chamado “capitalismo de vigilância”.

Para mensurar a coleta e compartilhamento de dados não declarações pelas aplicações, o grupo analisou a presença de ferramentas usadas no mercado de apps para rastreamento de atividades dos usuários e usuárias e otimização de desempenho, ou seja, os chamados trackers. “Um tracker é um software cuja tarefa é coletar informações a partir do uso de um aplicativo. Ele pode informar ao desenvolvedor como o usuário utiliza o aplicativo e até mesmo o próprio smartphone”, explica o relatório.

Os aplicativos analisados pela equipe foram os seguintes:

 

 

“Esses aplicativos abrangem um escopo amplo e heterogêneo de serviços e funcionalidades: desde técnicas de meditação, passando por controle do sono ou de outras funções emocionais e fisiológicas, até a realização de testes psicológicos ou acompanhamento terapêutico.”

 

 

 

 

O relatório apresenta dados que demonstram que os apps relacionados à saúde estão se expandindo no mercado da conectividade móvel. “O mercado global de saúde digital foi avaliado em 118 bilhões de dólares em 2017 e deve atingir 206 bilhões de dólares em 2020, com estimativa de chegar a 504,4 bilhões de dólares em 2025”, afirma o texto. Os números já são grandes: estudiosos estimam que haja mais de 10 mil aplicativos de saúde mental e temas correlatos disponíveis para download (Torous et al, 2018).

Essa expansão, afirmam, tem profunda relação com a capacidade de coleta, arquivo, análise e utilização de dados dos telefones celulares, sobretudo os dados biométricos e informações sobre o comportamento humano. “Tradicionalmente realizadas por profissionais e em situações clínicas ou terapêuticas, as avaliações de estados emocionais e psicológicos ganham nesse contexto formas automatizadas de análise em uma escala, volume e capacidade de processamento de informação insondáveis por humanos”, diz o relatório. Uma das preocupações apresentadas no texto é em relação ao fato de que essa área de aplicativos de saúde mental é altamente desregulada.

 

Destaques

 

  • A ansiedade está no centro dos discursos de apresentação dessas aplicações, sendo o principal problema que se propõe a solucionar, seguido de estresse, depressão e autoestima;
  • “Em relação às ferramentas e métodos ofertados para auxiliar os usuários, boa parte dos aplicativos atua numa zona nebulosa entre suporte técnico, apoio clínico e autocuidado (envolvendo autoconhecimento e automonitoramento)”;
  • “O automonitoramento é central na dinâmica desse tipo de serviço. Em 7/10 dos aplicativos, encontramos a oferta explícita de ferramentas de automonitoramento, ou seja, técnicas para coleta explícita e direta de dados sobre humor e estados emocionais”;
  • ‘O modelo terapêutico com maior recorrência é o Mindfulness, presente em 3/10 dos aplicativos envolvendo técnicas terapêuticas, programas e exercícios de direcionamento da atenção”; ;
  • “Embora, por sua finalidade, os aplicativos analisados ofereçam formas de registro, análise e monitoramento de informações sobre emoções, humores e estados psicológicos dos usuários, nos textos dos termos de uso e políticas de privacidade, a coleta e compartilhamento desse tipo de dados não é explicitada”.

 

Síntese das informações sobre coleta, compartilhamento e uso de dados encontradas nos termos de uso e políticas de privacidade
  • “Um traço marcante desses aplicativos é o foco no automonitoramento, autoconhecimento e autocuidado. O bem-estar psíquico e emocional promovido por tais aplicativos é extremamente centrado no indivíduo”;
  • ‘(…) não há neutralidade técnica e tampouco o usuário está apenas consigo mesmo nessa jornada de autoconhecimento. Tanto os problemas visados pelos apps, quanto os métodos e soluções propostos são fruto de uma série de perspectivas sobre o psiquismo, o comportamento e as emoções, bem como sobre suas disfunções e “aprimoramentos’;
  • “Uma rápida e panorâmica apreciação dos enunciados destes aplicativos percebe a influência da psicologia positiva e suas técnicas de coaching; das abordagens clínicas centradas no paciente; da racionalidade neoliberal de individualização dos processos de produção do bem-estar psíquico e emocional; dos cruzamentos, também próprios ao neoliberalismo, entre o crescimento pessoal e o empreendedorismo; da automação das práticas e serviços de todo tipo, inclusive daqueles voltados para a promoção da saúde; do capitalismo de vigilância e sua crescente gama de tecnologias voltadas para a captura de dados comportamentais; da economia psíquica dos algoritmos e seus investimentos em mecanismos automatizados de coleta e utilização de dados psíquicos e emocionais para predição e controle de condutas”;
  • “Pouco se fala, portanto, que tais aplicativos são também um tipo singular de laboratório psicológico, comportamental e emocional, cujo potencial econômico é claro, enquanto permanecem indefinidos seus efeitos e usos”;
  • “Compreender esses efeitos e usos é fundamental para avaliarmos as potencialidades e armadilhas dos novos cruzamentos entre a automação e o cuidado de si”.

 

Acesse o relatório na íntegra clicando aqui.

Compartilhe