Somos todos pequenos “Big Brothers”

Por Lucas Melgaço

Estamos, a todo tempo, sendo vigiados. Quando andamos pelas ruas, somos, inúmeras vezes, alvo do olhar indiscreto de câmeras de vigilância. Quando utilizamos cartões de crédito, quando fazemos compras no supermercado com nossos cartões de fidelidade, quando falamos ao telefone celular ou quando surfamos na internet, geramos rastros digitais passíveis de monitoramento.
Para descrever essa situação de permanente vigilância, é muito comum a utilização da metáfora “big brother”. A expressão é normalmente associada ao “reality show” criado em 1999 pela empresa holandesa Endemol e reproduzido no Brasil desde 2002 pela Rede Globo de Televisão. É sabido, entretanto, que o nome do programa foi, na verdade, inspirado no personagem homônimo do romance 1984, de George Orwell. No livro, Big Brother é o chefe supremo do “Partido” e é capaz de tudo ver e saber: daí a máxima “big brother is watching you” (o grande irmão está te vigiando).

A atual sociedade da vigilância (LYON, 2001) pode ser explicada não apenas pela metáfora orwelliana do “big brother”, mas também por uma outra que se tornou conhecida através do filósofo francês Michel Foucault: o panóptico. No livro Vigiar e Punir, Foucault (1975) retoma a ideia de um modelo prisional desenvolvido no fim do século XVIII pelo inglês Jeremy Bentham. Nesse modelo, chamado por Bentham de panóptico, uma torre instalada no centro do pátio da prisão permitiria que os vigias monitorassem os presidiários nas celas construídas ao redor. A etimologia do termo vem do grego pan, que significa todos, e optikós, visão. Uma característica importante desse modelo prisional era o fato de os presidiários não saberem quando e se estavam sendo monitorados pelos vigias. A dúvida sobre a existência ou não de um monitoramento criaria nos detentos um impulso por disciplina. Foucault mostrou que essa relação entre vigilância e disciplina não fazia parte apenas do espaço prisional, mas também estava presente em muitas outras formas arquiteturais, como o hospital e a escola.

Pode-se afirmar, porém, que tanto o termo panóptico quanto a expressão big brother não são suficientes para explicar a atual sociedade da vigilância. O modelo panóptico apresenta uma situação em que “um” monitora “vários”. Um único vigia posicionado na torre central de vigilância seria capaz de monitorar um grande número de prisioneiros. O momento atual é marcado não só por situações em que “um” monitora “vários”, mas também por outras em que, inversamente, “vários” vigiam “um”. Para descrever tal condição, Mathiesem (1997) sugere o termo “sinóptico”, criado a partir do prefixo grego sin, que significa mútuo, recíproco. O autor ilustra seu conceito com o exemplo da televisão, em que a vida de uma única celebridade é monitorada por um grande número de telespectadores. O próprio reality show Big Brother seria, na verdade, um exemplo de sinóptico, pois uma dezena de concorrentes passam a ser monitorados por milhares de pessoas a partir de suas casas e através da televisão.

Por sua vez, a concepção orwelliana estaria incompleta por concentrar o poder de vigilância em um único agente: o Estado. Apesar da importância ainda crucial do Estado (vejam, por exemplo, o poder da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos), outros agentes passam a ter semelhante relevância no controle da informação no período atual. Imaginem a enorme quantidade de dados estratégicos concentrados nas mãos de empresas privadas como o Google e o Facebook, ou ainda as informações coletadas pelos bancos e as operadores de planos de saúde.

Além do Estado e de empresas privadas, o indivíduo também passa a ter um papel cada vez mais importante na atual sociedade da vigilância. Tecnologias como os aparelhos celulares permitem que indivíduos não apenas sejam monitorados pelas operadoras telefônicas (informação frequentemente passada aos órgãos estatais de repressão, como a polícia), mas que também se tornem, eles próprios, vigias. Há, hoje, a possibilidade de uma vigilância de baixo para cima, uma vigilância reversa. Para descrever tal situação, Mann (2004) sugeriu o termo sousveillance, cujo prefixo francês sous significa por debaixo e veillance, vigilância. Essas novas possibilidades de contravigilância são exemplos do que o geógrafo brasileiro Milton Santos (2000; MELGAÇO, 2013) chamou de contrarracionalidades: ações que utilizam as mesmas tecnologias de ponta do período atual, mas de forma subversiva. Sousveillance e contrarracionalidade estão presentes, por exemplo, no uso de telefones celulares para registrar atos de violência policial. A vigilância não é, portanto, apenas praticada de forma panóptica pelo Estado e pelas empresas, mas também de forma sinóptica e reversa pelos indivíduos. Com a banalização das novas tecnologias da informação e de vigilância, tornamo-nos, todos, de certa forma, pequenos “Big Brothers”.

Para acessar o trabalho original, pelo próprio autor, clique aqui.

Para saber mais, leia os seguintes trabalhos:

FOUCAULT, Michel. Surveiller et Punir: naissance de la prison. Paris: Gallimard, 1975.

LYON, David. Surveillance Society: Monitoring Everyday Life. Open University Press, 2001.

MANN, Steve. “Sousveillance”: Inverse Surveillance in Multimedia Imaging. Proceedings of the 12th annual ACM international conference on Multimedia. ACM Press: New York. 620-627, 2004.

MATHIESEN, Thomas. The viewer society: Michel Foucault’s “Panopticon” revisited.” Theoretical Criminology, 1:215–234, 1997.

SANTOS, Milton. Por uma Outra Globalização: Do Pensamento Único à Consciência Universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.

Publicado originalmente em Cientistas descobriram que… em 11/11/2014

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