Por Leonardo F. Nascimento, Letícia Cesarino e Paulo Fonseca*
[*] Trecho de mensagem enviada pelo usuário cf5c4e49ac6e72d60bf0e9d3d9359f73 em 07 de abril de 2020 (veja a nota 2 seguinte). Ao longo de todo o período analisado este usuário foi o que produziu mais mensagens sobre a cloroquina. Parte dos dados deste texto foram apresentados no paper “Ignorance as power? Chloroquine and the co-production of truth in Brazil under Bolsonaro” na conferência “Science and Democracy Network 2020 Annual Meeting”, John F. Kennedy School of Government in Cambridge/Harvard University.
Fonte: Correio Braziliense, 17/07/2020.
Durante toda a pandemia de covid-19, o incremento do uso de tecnologias digitais, combinado com a forte polarização política que tem marcado o Brasil nos últimos anos, produziram efeitos sanitários, econômicos e psicológicos desastrosos. No momento inicial da chegada do novo coronavírus ao país, a tendência por parte do presidente, de muitos do seu governo e de apoiadores em redes sociais foi negar a gravidade ou até mesmo existência da pandemia. As medidas sanitárias, urgentes e necessárias, que preconizavam o isolamento social entraram em choque com a ideia de que isso seria prejudicial à economia e/ou um subterfúgio de inimigos para minar a popularidade do presidente.
Quando tornou-se impossível continuar negando a realidade da crise, o discurso bolsonarista passou a difundir uma visão, inicialmente popularizada por Donald Trump, de que a covid-19 podia ser facilmente prevenida ou curada, notadamente a partir daquele que se tornou o medicamento mais emblemático da pandemia: a hidroxicloroquina, ou simplesmente cloroquina. Alçada como verdadeira solução para a crise sanitária global – conjugando as características de ser barata, conhecida e inofensiva – a cloroquina se tornou um símbolo do próprio bolsonarismo e do seu modo de lidar com a pandemia.
A aposta do presidente no fármaco antimalárico como cura para a covid-19 foi amplamente noticiada ao longo dos últimos meses, em discursos e decisões que tomavam de forma altamente seletiva as evidências científicas disponíveis. Para além dessas denúncias, resta compreender mais a fundo como, não obstante a progressiva disponibilidade de estudos contestando a sua eficácia, a fé na cloroquina como solução para a covid-19 logrou grande difusão no ecossistema midiático bolsonarista e seus circuitos de desinformação. Mais ainda, é preciso investigar como esse desprezo pelos consensos na comunidade científica internacional tem transbordado para as instituições do Estado, a sociedade civil e, especialmente, para a própria prática médica.
Enquanto os mais robustos estudos científicos refutavam a eficácia do medicamento para o tratamento da covid-19, o presidente consagrava caixas de hidroxicloroquina, erguendo-as diante de uma multidão frenética de apoiadores. Dias depois, o presidente se deixou fotografar oferecendo caixas do mesmo remédio às emas do Palácio do Alvorada – um dos animais chegou a deferir uma pequena bicada, o que tomou as manchetes dos jornais e os feeds das redes sociais. Ao longo dessas tragicômicas performances, médicos e até planos de saúde Brasil afora prescreviam o “coquetel cloroquínico” – uma combinação da droga com outras substâncias como azitromicina, zinco, vitamina D e o vermífugo ivermectina – ancorados em suprimentos e recomendações do Ministério da Saúde e diversas secretarias estaduais e municipais de saúde, endossados pelo Conselho Federal de Medicina e algumas associações médicas nacionais, como a AMB.
Afinal, como tem se dado a participação de médicos nos debates sobre a cloroquina? Como a prática médica pode estar sujeita, ela mesma, aos circuitos de enviesamento cognitivo provocados pelo ecossistema de desinformação e polarização política? Por que a figura do médico tem sido tão central na produção desse Brasil cloroquínico?
Como primeiro passo para a exploração dessas questões, fizemos um monitoramento e análise sobre como a pandemia foi abordada em um grupo de extrema-direita do Telegram. O grupo possui relevância especial por ter mais de 15.000 participantes e ter sido criado antes da eleição do atual presidente. O posicionamento adotado pelos pesquisadores foi de “lurker”, ou seja, nenhuma interação foi realizada pelos pesquisadores no grupo. Além disso, o grupo é aberto a qualquer participante, não possui regras de conduta ou ética de participação e, por fim, foi garantido o anonimato dos usuários no momento da extração dos dados[1].
De 19 de março a 24 de setembro de 2020, 867 mensagens de texto de 429 usuários diferentes mencionaram a cloroquina ao menos uma vez (vide gráfico 1 abaixo).
Gráfico 1 – Elaboração dos autores
Nota-se no gráfico o padrão recorrente de incremento de compartilhamentos e circulação de conteúdo nas redes bolsonaristas de forma articulada com eventos significativos para o governo federal: no caso, um pronunciamento oficial do presidente, e a saída de dois ministros da saúde nos primeiros meses da crise. Se as narrativas circuladas online ajudam a enquadrar e explicar eventos no mundo offline que possam ser disruptivos para os apoiadores do presidente, é possível inferir que a cloroquina desempenhou papel importante nesses enquadres narrativos, especialmente no início da pandemia.
Além das mensagens de texto, foram compartilhados no grupo inúmeros áudios, imagens e vídeos que não apenas defendem a utilização da cloroquina mas sobretudo atacam aqueles que negam a sua eficácia (vide imagens abaixo).
Figura 2: Exemplos de imagens postadas em 15 de maio de 2020, dia da saída do Ministro Nelson Teich.
Do total de mensagens postadas, ao menos 20% citam algum tipo de fonte médica para o respaldo ao uso da cloroquina. Muitas delas estão associadas a conteúdos de redes sociais diversas (Twitter, Youtube e sites noticiosos) figurando médicos e especialistas que defendiam o uso da cloroquina para a prevenção e/ou cura da covid-19. Os principais especialistas mencionados no grupo são o médico francês Didier Raoult, além dos brasileiros Dra. Nise Yamaguchi e Dr. Paolo Zanotto, todos conhecidos por sua militância a favor da prescrição para o tratamento ou uso profilático da cloroquina para o combate à covid-19, com bastante visibilidade em redes sociais e canais de mídia ligados à nova direita.
Assim, longe de ser uma discussão alheia à classe médica e à sua institucionalidade, a controvérsia sobre a cloroquina apresenta-se como um marcador sobre como a polarização política se insere na própria medicina e seus artífices. As diversas postagens, antes de buscarem negar a autoridade epistêmica dos médicos, colocam a própria ciência como um dos principais palcos de disputa ideológica. Vejamos isto mais detalhadamente.
Destacam-se, entre os argumentos mais utilizados, o respaldo em experiências anedóticas organizadas a partir de depoimentos sobre como a utilização do coquetel baseado em cloroquina teria sido a causa do sucesso do tratamento contra a covid-19. É interessante notar que, ao contrário de fundamentarem-se em práticas de automedicação, a maioria dos depoimentos relata tratamentos prescritos por um médico profissional – ou seja, a relação médico-paciente continua tendo um papel central para a confiança no sucesso do tratamento.
Caros amigos, Sinto-me na OBRIGAÇÃO de dar meu depoimento mesmo expondo publicamente, minha vida particular. (…) Segui rigorosamente a medicação prescrita: REUQUINOL (hidroxicloroquina), AZITROMICINA, IVERMICTINA ZINCO Na mesma noite iniciei o tratamento e tomei a dose dupla de HIDROXICLOROQUINA. Ainda tive muita tosse à noite mas no dia seguinte me senti melhor .No terceiro dia de tratamento todos os sintomas haviam desaparecido persistindo uma leve tosse, que desapareceu no quinto dia de tratamento. Hoje estou totalmente recuperado graças à HIDROXICLOROQUINA prescrita pelo infectologista. (…) (Usuário 844520fee58f22dd2ba376a641950f46 18/04/2020)
É possível inferir, a partir das postagens, que os partidários do presidente buscaram fundamentar a confiança na eficácia do tratamento a partir de um trabalho de demarcação de fronteiras amigo-inimigo dentro do próprio campo da saúde.
Os melhores hospitais privados do Brasil e do mundo estão usando a hidroxicloroquina no tratamento dos doentes e obtendo excelentes resultados. Mas quem produz conteúdo científico não é o maior laboratório do mundo nem a maior autoridade em infectologia, quem produz conteúdo científico é a OMS, um órgão político. (Usuário cf5c4e49ac6e72d60bf0e9d3d9359f73 07/04/2020)
Assim, os médicos que receitam a cloroquina são apresentados como profissionais experientes e confiáveis, e os seus posicionamentos são classificados como “verdadeiramente” científicos. Isso significa que estes profissionais seriam autênticos cientistas, pois isentos de enviesamentos políticos e/ou interesses financeiros. Ao mesmo tempo, são associados a valores como ousadia, heroísmo e patriotismo, na medida em que se dispõem a enfrentar, segundo esta concepção, as poderosas corporações que dominam os aparatos científicos e midiáticos internacionais. Além disso, estariam dispostos a experimentar e pensar “fora da caixa” em contextos de crise e urgência, onde a prática convencional da ciência experimental parece não ser capaz de produzir resultados imediatos: “quando se está morrendo afogado, até jacaré é tronco para se agarrar”.
Por outro lado, os médicos que rejeitam a cloroquina são associados à omissão de socorro. São repetidas as afirmações de que existiriam razões “puramente” ideológicas e/ou econômicas para rejeitar a prescrição e uso massivo no tratamento e na profilaxia da droga contra a covid-19, resultando inclusive em mortes desnecessárias. São aventados interesses econômicos das indústrias farmacêuticas e do “comunismo” personificado no governo do partido comunista chinês – mas também a esquerda nacional – que teriam como interesse derrubar o governo federal. De maneira recorrente, são mencionados “planos esquerdistas” para “quebrar” a nossa economia e endividar o país. O ponto central é que os médicos que não prescrevem a cloroquina estariam supostamente aliados à “entidade política” – portanto não-científica – encarnada pela Organização Mundial de Saúde, sem contar os planos da “grande mídia” em promover a desinformação contra a cloroquina. Nessa gramática, amplamente compartilhada com o pensamento conspiratório e os populismos contemporâneos, o campo científico é dividido entre agentes autênticos – cientistas de fato, portadores da verdade – e inautênticos, que representariam interesses econômicos, políticos e “globalistas” que escondem suas reais intenções.
A mensagem abaixo, recorrentemente compartilhada, exemplifica bem como a demarcação se dá no interior das comunidades médicas e científicas:
A HIDROXICLOROQUINA ESTÁ DIVIDINDO OPINIÕES. DE UM LADO OS QUE DEFENDEM O SEU USO:- 6.000 médicos de 30 países defendem a sua utilização.- Na Itália está sendo distribuída gratuitamente, desde que apresente receita médica.- A Rússia inseriu este fármaco nos seus protocolos.- 72% dos médicos espanhóis estão utilizando.- O Mayo Clinic em Rochester, nos Estados Unidos, eleito por três anos seguidos como O MELHOR HOSPITAL DO MUNDO, utiliza a hidroxicloroquina.- (…) Estudos em NY atestam o sucesso da associação de hidroxicloroquina + azitromicina + zinco.- (….) O CFM (Conselho Federal de Medicina) recomenda o uso.- A ANVISA liberou.- O Presidente Bolsonaro defende a utilização da hidroxicloroquina há 2 meses. DE OUTRO LADO OS QUE SÃO CONTRA:- O diretor comunista da OMS, que nem médico é.- A diretora do Instituto Oswaldo Cruz, que não é médica, não é bióloga, nem cientista. Ela é formada em filosofia e é militante do PT.- Governadores que, por mero acaso, estão sendo investigados por superfaturamentos e desvios de verba.- Estudos feitos na China comunista.- Lobistas dos grandes laboratórios, pois a hidroxicloroquina já existe há 70 anos e já tem a patente livre.- Dr. Uip é contra, mas usou a hidroxicloroquina quando pegou Covid-19.- Ex-Ministro Mandetta (demitido)- Ex-Ministro Nelson Teich (saiu)- Folha de São Paulo- Rede Globo de televisão Agora, pensem sobre cada um e tire suas conclusões.
Depreende-se, portanto, que os apoiadores de Bolsonaro não negam a legitimidade das instituições científicas em si, mas buscam instrumentalizá-las a favor de posicionamentos inflexionados por critérios externos aos consensos mais amplos na comunidade científica. Mais do que tentar emplacar um paradigma alternativo de médicos patriotas apoiadores da cloroquina, as narrativas circuladas no grupo ensejaram o papel de “mercadores da dúvida”: ao constantemente negar evidências e produzir fatos alternativos, impedem a estabilização de consensos na comunidade científica. Isto, em si, já se configura como um resultado satisfatório, visto que a manutenção de um ambiente de confusão e ambiguidade é parte importante do modus operandi de populistas como Trump e Bolsonaro: a impossibilidade de traçar causalidade impede a atribuição de responsabilização. As consequências negativas, sanitárias e econômicas da pandemia podem assim ser sempre atribuídas a outros: governadores e prefeitos, Congresso Nacional e STF, ex-ministros e outros inimigos internos, China, Bill Gates e mesmo aos próprios médicos que, neste caso, se negam a prescrever a cloroquina.
O modo como a narrativa da cloroquina ganhou tração no Brasil encontra ressonâncias com padrões mais gerais relativos aos ecossistemas de desinformação em mídias digitais. Lisbeth Van Zoonen (2012) se valeu do termo “eu-pistemologia” (i-pistemology) para indicar o tipo de reorganização epistêmica que ocorre nessas condições, marcadas por desconfiança crescente de mediadores como especialistas e o jornalismo profissional. Como também observamos em nossos dados, usuários têm privilegiado cada vez mais o recurso aos sentidos imediatos (aquilo que se pode ver, ouvir por si mesmo), à trajetória pessoal (aquilo que se viveu, que se conhece em primeira mão), à opinião de pares (entendidos como espontâneos e autênticos) e à busca ativa de informações na internet (fazer a própria “pesquisa” sem necessidade de intermediários).
Nesses contextos, a figura do médico pode ganhar relevância enquanto um tipo de relação com o paciente menos mediada que o conhecimento experimental produzido pela epidemiologia e outras ciências estatísticas mediadas por “abstrações” e procedimentos metodológicos complexos. A relação de confiança com o seu médico de escolha no mercado da saúde pode ser assim inflexionada por fatores não-técnicos mobilizáveis a partir da experiência pessoal, como avaliações do “patriotismo” ou da “fama” do profissional (na mídia, em redes sociais), indicações de familiares, amigos ou grupos online, ou da busca por aquilo que “a grande mídia não quer que você saiba”. E mesmo essa mediação pode ser excluída, já que a cloroquina pode ser potencialmente acessada por meio da automedicação, subsidiada por “pesquisas” feitas online pelo próprio paciente ou por testemunhos de experiência pessoal de cura e prevenção da doença registrados por usuários comuns em vídeos e textos circulados nas redes. No melhor estilo neoliberal, a “soberania” e a “liberdade” de escolha sobre como lidar com a pandemia recai, em última instância, sobre os próprios sujeitos e suas famílias: e portanto, também recai sobre eles apenas a responsabilização por eventuais consequências negativas dos riscos assumidos.
Notas
[1] Utilizamos uma função hash da linguagem R (cf. https://cran.r-project.org/web/packages/digest/index.html) para criptografar os nomes de cada um dos usuários no momento da coleta dos dados. Isto impossibilitou aos pesquisadores e suas equipe saber o “nome real” do usuários dentro do grupo.
Referência
VAN ZOONEN, L. I-Pistemology: Changing Truth Claims in Popular and Political Culture. European Journal of Communication, v. 27, n. 1, p. 56–67, 2012.
*Leonardo F. Nascimento é professor do Bacharelado Interdisciplinar em Ciência, Tecnologia e Inovação, do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais e coordenador do Laboratório de Humanidades Digitais da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Letícia Cesarino é professora no Departamento de Antropologia e Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Paulo Fonseca é professor no Instituto de Ciência, Tecnologia e Inovação (ICTI) e pesquisador do Laboratório de Humanidades Digitais da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Série Lavits_Covid19
A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.