#24: A Máscara da Covid-19 no Brasil

Por André Lemos *

 

Agenciamento Vírus

Mostrei em dois artigos recentes como essa pandemia é, em primeiro lugar, um fenômeno materialmente construído (A Construção do Novo Coronavírus) e como, mais do que isolar, ela revela a necessidade de contato, sendo uma metáfora para uma cidadania global e para o reconhecimento da liberdade como um bem coletivo (Covid 19, Liberdade e Cidadão Ideal). O uso (ou não) de máscaras é uma forma material do “agenciamento vírus”. A pandemia revela a organização sociopolítica do país na mobilização (ou não) de ações concretas concernentes à saúde pública, à economia e à cultura.

O governo federal do Brasil tem negado a gravidade da situação relativa à Covid-19 e, portanto, a necessidade de isolamento, de uso de máscaras, de não aglomeração… Consequentemente, há muito pouca pro-atividade no combate à pandemia. Não há ação política consistente global na luta para barrar o contágio e minimizar os malefícios da doença. Recomendações sobre a necessidade de isolamento social e o uso de máscaras, quando são publicadas pelo Ministério da Saúde, são rapidamente apagadas, possivelmente por contrariar a visão anticientífica e infantil do Presidente. Quem se preocupa com isso é chamado de “maricas”. Recentemente, indo mais uma vez contra as recomendações científicas para o uso das máscaras, o próprio Presidente disse que estas seriam o “último tabu a cair”.

Podemos ver, no entanto, seja pela ação dos Estados e Municípios, seja pela iniciativa de empresas, organizações não-governamentais e pessoas, formas concretas de luta contra o contágio, mobilizando diversos objetos no espaço público, materializando a polarização política no país: totens com álcool em gel, marcação no solo para distanciamento social em locais públicos, barreiras de acesso, tapetes higienizadores, termômetros e câmeras com monitoramento térmico para detectar corpos febris, limites de entrada com bloqueio de mobiliários como cadeiras e bancos, doação de máscaras de uso pessoal… No caso das máscaras para a Covid-19, esses objetos têm sido utilizados, em primeiro lugar, como equipamentos de proteção individual para evitar o contágio. Mas elas revelam, no uso ou na negação, posicionamentos políticos.

 

Política dos Objetos

As máscaras são objetos performativos, sejam como elementos ritualísticos em sociedades não modernas, sejam como instrumentos de ação política direta, como aquela usada pelo Subcomandante Marcos (o primeiro ciberativista), no movimento dos zapatistas no México, as dos jovens de Hong Kong usadas para escapar da vigilância policial e política chinesa, ou a máscara de Guy Fawkes dos hackers anonymous que as utiliza na invasão de sistemas, expondo segredos governamentais ou de políticos.

Nortje Marres mostra como a política se dá sempre através de uma “material participation”, que pode ser entendida como um modo específico de engajamento que envolve “things, people, issues, settings, technologies, institutions and so on”. (MARRES, 2012, p. 2). Ao considerarmos a participação material como um fenômeno específico que coloca em ação um conjunto de entidades, podemos entender o papel dos objetos “in the enactment of public participation” (2012, p. 5).

Bruno Latour propõe pensarmos a política levando em consideração o que ele chama de um “parlamento das coisas”, que reconheceria o papel dos objetos como agenciadores importantes sobre a coisa pública. Para o sociólogo francês, a política, como circulação da palavra, se materializa a partir de um entrelaçamento de pessoas, coisas e objetos. O que ele chama de “democracia das coisas” ou ‘parlamento das coisas” (2004, p. 408):

(…) não se trata apenas da representação dos centros da vida política em torno da eleição e da autoridade, mas a representação também no sentido bem conhecido ‘dos instrumentos que representam as coisas de que falamos’. Assim, a questão da democracia atual não é apenas saber se nós votamos ou não, se estamos ou não autorizados pelas pessoas que nos elegeram, o que é a primeira parte da representação, mas também a de saber como, quando falamos do milho transgênico, essa coisa de que falamos é representada, desta vez no interior do recinto. Por isso, a ‘democracia das coisas’ quer dizer, justamente, o duplo interesse pelos dois sistemas de representação: representação dos humanos que falam das coisas, e representação das coisas de que os humanos falam, em seus recintos.

 

Judith Butler, em seu artigo “traços humanos na superfície do mundo” reforça a ideia de que dependemos dos objetos para viver, de que o mundo material estrutura e sustenta a vida pública, tendo um papel central em toda e qualquer dimensão política. Para Butler, o mundo material e os objetos estruturam e sustentam as relações sociais, tendo relação direta com a política.

O mesmo é defendido por Richard Grusin em Mediações Radicais, Máscaras da Covid e Coletividades Revolucionárias. Ele mostra como os objetos concretizam movimentos políticos, como os coletes amarelos, na França, o movimento das sardinhas, na Itália, os guarda-chuvas amarelos e as máscaras usadas em Hong Kong, entre outros. Grusin pergunta sobre a possibilidade das máscaras da Covid-19 funcionarem como símbolo de resistência, não apenas à pandemia, mas contra o capitalismo.

O sociólogo francês Michel Maffesoli vem denunciando a imposição das máscaras, como uma forma do poder (no caso, o governo francês) erradicar a sociabilidade, negando a dinâmica quotidiana da vida social. A obrigatoriedade de uso das máscaras revelaria o descompasso entre as forças políticas da modernidade e a que emerge com a sociabilidade pós-moderna, segundo ele, gregária, tribal, emocional. A máscara, tornada obrigatória, é uma “focinheira”, um delírio sanitário, uma teatrocracia que tenta, a todo custo esconder o fiasco de uma elite que não vê os novos sinais dos tempos. Em suas palavras:

 

Et c’est bien pour dénier un tel ‘avec’ anthropologique que l’on rend obligatoire le port d’une ‘muselière’ ayant pour fonction d’isoler et par là-même de conforter une soumission nécessaire à la logique de la domination caractérisant un pouvoir public totalement déconnecté de la puissance populaire. (…) Pour ceux-là, la mascarade comme arme suprême de l’hystérie sanitaire, c’est encore de la théâtrocratie pour masquer (c’est le cas de le dire) le fiasco qu’une élite en faillite va payer fort cher.

 

Mesmo nas suas diferenças, esses autores destacam como os objetos, em geral, e as máscaras, em particular, acionam material e discursivamente imaginários e ações políticas concretas.

 

Máscaras e política no Brasil

O uso e o não uso da máscara para a Covid-19 retrata a complexidade da dimensão político-social do país[1]. Estamos diante de um fenômeno interessante que faz do uso ou não da máscara um fator de diferenciação social e política. No caso da recusa temos duas ações: aderência à ordem conservadora e individualista, ou desobediência civil com o descaso para com ordens, normas ou recomendações vindas “de cima”. Vejam, por exemplo, esse depoimento de um amigo no Facebook, descrevendo o seu diálogo com um carteiro no sul do país:

O carteiro dos Correios que veio em minha casa hoje não usava máscara. Pedi que ele a instalasse, antes de me aproximar, e ele retrucou que era desnecessário. Pedi novamente que usasse a bendita e me respondeu que se eu quisesse ele marcava como encomenda recusada. Falei que podia marcar o que quisesse, não iria atendê-lo sem máscara. Passou a me chamar de arrogante e outras coisas que não vem ao caso. O cara finalizou colocando a minha encomenda toda amassada no portão e foi embora. (…). Pois é, nem em nossas casas estamos protegidos. E essa recusa de muitos em usar máscara eu já não sei mais como classificar.

Acusar quem usa a máscara de prepotência e arrogância expressa bem a fraqueza da dimensão da cidadania, a ideia de liberdade como bem pessoal e o descaso para com regras e determinações sanitárias locais e da própria instituição.

No caso do uso, ele revela a afirmação de uma diferença que expõe a não aceitação da perpetuação de hábitos não republicanos reforçado pela política (ou falta dela) do governo federal. Mesmo os que usam pensando apenas na proteção pessoal estão imersos nessa dimensão política afirmando, pela ação, não concordar com o posicionamento anticientífico, negacionista e inoperante (que não assumiu as responsabilidades para combater a pandemia), do atual governo. É comum vermos, nas redes sociais, pessoas tirarem fotos sem máscaras e se sentirem na obrigação de escrever nas legendas que as retiraram apenas para a foto, reafirmando a ação política e o cuidado para com a coisa pública.

Uma contradição interessante é o uso da máscara pelo vice-presidente do país. Ele aparece frequentemente na TV dando depoimentos usando uma máscara para a Covid-19 que estampa o escudo de um time de futebol, não a bandeira do Brasil, ou mesmo das Forças Armadas. E essas não são aparições em momentos privados, mas como vice-presidente do país. Imaginem a premiê alemã Angela Merkel aparecendo no Budenstag com uma máscara do time de futebol do Leipzig, ou Michel Macron, com o boné do Olympique de Marseille na Assembleia Nacional da França! Esse uso com o escudo de um time de futebol (uma “torcida”) revela, simbolicamente, que ele não está atento à representatividade republicana do cargo que ocupa, agindo como um individuo que pode expressar a sua liberdade individual.

Não usar as máscaras é para muitos uma forma de reforçar e apoiar as ações atuais do governo federal, exibindo uma dimensão política conservadora e alinhada à extrema direita no país. Mas, como em outros países, não usar a máscara é também uma forma de desobediência civil, indo de encontro à racionalidade governamental, científica e sanitária que quer restringir os prazeres (ir à praia, reunir a galera nos paredões…). Não usar a máscara é, portanto, um posicionamento político que expressa, por um lado, um movimento conservador de extrema direita defendendo privilégios e a ideia de liberdade como bem pessoal, a negação da pandemia, o desprezo e descaso pelo comum e pela doença, a ciência e as regras sanitárias e, por outro, a afirmação da vida (mesmo sendo uma pulsão de morte) pelos menos favorecidos que lidam com a ameaça de morte constante e diariamente, que não querem se render às ordens da elite científica, política ou sanitária.

Como pergunta meu amigo do Facebook, como classificar essa atitude, como entender a politização da máscara no Brasil?

Aqui, de uma forma ou de outra, a máscara é um objeto através do qual vemos o que somos, uma sociedade na qual é difícil identificar comportamentos políticos e intenções de forma linear ou bem estruturada. A politização conservadora, hedonista ou de protesto contra o governo no uso ou não da máscara atravessa toda a sociedade brasileira. Ela não é exclusividade de classes, gêneros ou raças, reforçando a polarização disseminada pelos diversos estratos sociais do país – desde o morador de um condomínio de luxo que não usa a máscara, mas obriga o porteiro, pobre e preto a usar; o carteiro que afronta o meu amigo branco de classe média no Sul do país, acusando-o de prepotente e arrogante por, justamente, usar a máscara e pedir que ele use no seu trabalho; ou o vice presidente que usa mas, nesse caso, ela é a representação do particular (da minha “galera”, dos que pensam como eu) e não dos valores da república.

Não há respostas fáceis. O uso e o não uso podem ser bem conservadores, como um reforço aos ideais individualistas, não republicanos e de adesão ao atual governo. Mas também podem ser contestadores (embora estejam longe de potencializar movimentos revolucionários contra o governo ou o capital, como gostaria Grusin no seu texto). Se há alguma posição contestadora, ela estaria por um lado, pela afirmação do seu uso como uma forma de dizer não ao governo e ao Presidente e, por outro, no não uso como afirmação da pulsão gregária e da desobediência civil.

Independente de posicionamentos, podemos dizer que a máscara para Covid-19 no Brasil é um instrumento de politização que revela a tensão atual no país, um objeto que serve, como toda máscara, não para esconder, mas para revelar a sua face mais evidente: Um país fraturado, dividido, hedonista, narcisista e pouco republicano.

Notas

[1] Não há pesquisas amplas que apontem o número de usuários de máscaras no Brasil, mas os depoimentos em redes sociais e nas matérias na imprensa mostram que as pessoas estão se aglomerando sem a preocupação com o uso das máscaras. Um estudo recente realizado com 1578 adultos de 18 a 71 anos, pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) mostra que no grupo antissocial (relutantes ao uso de máscaras), foi observado níveis baixos de empatia e altos de insensibilidade, comportamento de risco, hostilidade, impulsividade, entre outras (MIGUEL et al., 2021, p. 6). Pesquisa com 1277 indivíduos, maioria mulheres, do sul e sudeste do país, com alta escolaridade e sendo, na maioria profissionais da saúde (66,4%) aponta que os brasileiros estavam usando as mascaras. Essa generalização por esses fatores, é bastante questionável, como reconhecem os autores: “However, the sample is not necessarily generalizable, and this is a limitation of our study” (COTRIN et al., 2020, p. 1173).

Referências

BUTLER, J. Traços humanos nas superfícies das coisas. In Pandemia crítica, N-1 Edições, São Paulo, 2020, disponível em https://www.n-1edicoes.org/textos/75

COTRIN, P. et al. The Use of Facemasks During the COVID-19 Pandemic by the Brazilian Population. Journal of Multidisciplinary Healthcare, Volume 13, p. 1169–1178, out. 2020.

GRUSIN, R. Mediação Radical, máscaras da Covid e coletividades revolucionárias. In InVitro, Lab404, UFBA, Salvador, 2020. Disponível em http://www.lab404.ufba.br/mediacao-radical-mascaras-da-covid-e-coletividades-revolucionarias/

LATOUR, B. Por uma antropologia do centro. Mana, v. 10, n. 2, p. 397–413, out. 2004.

LEMOS, A. A construção do novo coronavírus. In InVitro, Lab404, UFBA, Salvador, 2020, disponível em http://www.lab404.ufba.br/a-construcao-do-novo-coronavirus/.

LEMOS, A. Covid-19, liberdade e cidadão ideal. In InVitro, Lab404, UFBA, Salvador, 2020, disponível em http://www.lab404.ufba.br/covid-19-liberdade-e-cidadao-ideal/.

MAFFESOLI, M. Le port obligatoire de la musilière dans les rues suffit-il à nous faire obéir? In Nice Provence, Nice, disponível em https://www.nice-provence.info/2020/10/20/maffesoli-le-port-obligatoire-de-la-museliere-dans-les-rues-suffit-il-a-nous-faire-obeir/?fbclid=IwAR1i5yDbz0P2G0wz4FZtC-sbA5uS1fLqPoYBl11bvLMJG95rqFUgsFBbIHU

MARRES, N. Material Participation: Technology, the Environment and Everyday Publics. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2012.

MIGUEL, F. K. et al. Compliance with containment measures to the COVID-19 pandemic over time: Do antisocial traits matter? Personality and Individual Differences, v. 168, p. 1–6, jan. 2021.

 

*André Lemos é Professor Titular da FACOM/UFBA e Pesquisador 1A do CNPQ.

 

Série Lavits_Covid19

A Lavits_Covid19: Pandemia, tecnologia e capitalismo de vigilância é um exercício de reflexão sobre as respostas tecnológicas, sociais e políticas que vêm sendo dadas à pandemia do novo coronavírus, com especial atenção aos processos de controle e vigilância. Tais respostas levantam problemas que se furtam a saídas simples. A série nos convoca a reinventar ideias, corpos e conexões em tempos de pandemia.

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