Modos de fazer e conhecer, ética e política

 

Texto originalmente publicado no site do Pimentalab

Os laboratórios de inovação social, no sentido que aqui estamos praticando, funcionam sob um complexo arranjo sociotécnico, simultaneamente simbólico e material, normativo e pragmático. Há uma política cognitiva que se manifesta numa ética e num conjunto de práticas e tecnologias relacionadas ao modo de conhecer. Há uma tecnopolítica que se realiza nas configurações das mediações técnicas da interação social. Há uma economia política, relativa ao regime de propriedade, posse e uso dos bens e recursos produzidos. Há uma política experimental que se realiza através de processos instituintes de novas comunidades. Em síntese, um laboratório de inovação social realiza-se com uma combinação de: abertura; colaboração; cuidado; mediação; documentação; infraestruturas; tecnologias; protocolos; comunidades; protótipos e produção do comum. Trata-se de uma trama com muitas camadas, e para que cada um desses elementos se efetive ele precisa ser atravessado pelos demais.

Abertura e Colaboração

A produção de conhecimentos no contexto dos laboratório é aberta, situada e colaborativa. Abertura no sentido de que todos devem ser capazes de aportar uma nova perspectiva, há contraste de argumentos e a possibilidade de não bloquear uma controvérsia; isso também significa queo conhecimento aberto é sempre provisório. Ele não visa encerrar um debate ou um problema, mas ao contrário, torná-lo mais denso, mais rico e complexo. É colaborativo porque é feito entre todos, com o maior número de perspectivas e atores possíveis. É situado porque é produzido em contextos específicos e reconhece o caráter parcial, corporificado e perspectivo dos conhecimentos. Mas para que isso ocorra certas condições devem ser respeitadas para que diferentes atores possam participar. Essas condições implicam em: infraestruturas mais abertas e horizontais; documentação rigorosa, acessível e reproduzível; protocolos (para tecnologias e regime de propriedade) que garantam abertura e controle pelos participantes. Nos laboratórios tais características podem alcançadas mediante diferentes estratégias: 1) definição prévia de protocolos que regulam as condições de participação dos múltiplos atores e o regime de acesso e propriedade sobre os bens e recursos produzidos, mediante a adoção de licenças de propriedade intelectual alternativas (FairLicences, Creative Commons, Copypeft, Peer2Peer Licences, GPL); 2) definição das características físicas e do local de realização do laboratório, de forma a propiciar condições de maior abertura à participação do público interessado; 3) definição da comunidade de afetados, público concernido ou problema específico que será abordado.

Protocolos, tecnologias e infraestruturas

Modos de tornar durável uma certa configuração social; são também formas de transmissão de uma agência; e criam determinações sobre um conjunto de interações que ocorrem através delas (Latour, 1990; 1994). O desenho dos protocolos, das tecnologias e das infraestruturas utilizadas num laboratório compõem uma tecnopolítica. Tecnologias baseadas em software e hardware livre; protocolos de dados abertos; licenças autorais alternativas que fortaleçam a livre apropriação e uso dos conhecimentos e protótipos produzidos; infraestruturas que amplifiquem a autonomia e autogestão da própria comunidade sobre o processo desenvolvido são algumas das opções adotadas pelos laboratórios. A infraestrutura aqui pode ser tanto a plataforma de comunicação online utilizada, como o espaço físico utilizado para o encontro. São infraestruturas que promovem uma interação mais aberta e solidária? São infraestruturas que restringem o acesso e a participação? Os protocolos são mobilizados como tecnologias sociais capazes de “automatizar” ou “facilitar” a resolução de certos problemas ou a adoção de procedimentos que produzem resultados desejados. Em algumas situações contribuem para dar agilidade a processos em que é necessário tomar uma decisão. Eles oferecem estratégias, recursos, procedimentos para situações determinadas. Porém, devem sempre ser aplicados com respeito ao contexto de efetivação. Não há protocolo social que possa ser alheio aos efeitos provocados num determinado contexto de aplicação. Por exemplo, documentar de forma aberta o protótipo desenvolvido é um protocolo que está presente em quase todos os laboratórios. A prescrição de que um grupo que seja mais heterogêneo é um protocolo social que influi na composição dos membros de um laboratório. A escolha por um espaço onde as pessoas possam interagir de forma mais ativa, horizontal e dialógica implica num desenho de uma infraestrutura espacial. Mas também, como nos indica os trabalhos de Corsin e Estalella (2016), a própria prática de documentação vai gradualmente se constituindo como uma infraestrutura que sustenta uma comunidade de praticantes. É no campo dessa tecnopolítica que vimos emergir novas preocupações em torno da autonomia e soberania tecnológica, ou na busca por arquiteturas (de tecnologias da informação) mais descentralizadas e distribuídas, permitindo minimizar a dependência corporativa ou estatal. A infraestrutura torna possível a existência continuada de uma ação. Ela dá o suporte às práticas e modos de existência de uma determinada comunidade, que transforma e sustenta essas infraestruturas em um comum.

Documentar

O ato de registrar, sistematizar, organizar e publicizar o conhecimento produzido é uma prática transversal a muitos laboratórios. Ela é um bom exemplo do encontro entre a cultura dos ativistas e programadores do software livre com a cultura científica de pesquisadores interessados no produção e no livre acesso ao conhecimento. Não é exagero dizer que muitos dos processos vividos nos laboratórios só existem porque são documentados, ou, como dizem, o que não está documentado não aconteceu. A documentação não é apenas o registro dos resultados ou a receita objetiva do “como fazer”. Uma boa documentação deve ser capaz de comunicar os fatos objetivos, os detalhes dos procedimentos, mas também as dúvidas, os problemas enfrentados e as escolhas que foram feitas. O mais desafiante é tornar visível e comunicável as dimensões subjetivas, afetivas, tácitas que emergem durante o trabalho coletivo e que muitas vezes são excluídas nos processos habituais de documentação. Como indicar os momentos de aprendizagem coletiva? Como descrever o contexto e os vetores que influenciaram uma importante decisão se frequentemente negligenciamos esses elementos e registramos apenas o resultado, quando o principal estava no processo? A documentação visa combater o desperdício da experiência, potencializar a inteligência coletiva. A replicabilidade alcançada de um processo ou protótipo talvez seja o melhor indicador de “impacto” da documentação. Há uma política do sensível, uma política da escrita (nos termos de Rancière) neste ato de documentar, uma vez que ele produz um mundo compartilhado, dando a ver determinados processos e objetos, criando também sua comunidade de “leitores”. Esta documentação implica, portanto, em protocolos, tecnologias, infraestruturas e muita mediação.

Mediação e Cuidado

Criar uma linguagem comum, promover uma interação mais equilibrada entre os partícipes que assuma suas (nossas) diferenças produzindo a possibilidade de aliaças epistemológicas possíveis que integram um laboratório é uma arte. A documentação, por exemplo, só é bem sucedida quando os participantes conseguem estabelecer um linguagem comum para descrever o que estão fazendo. A mediação, como argumenta Juan Freire e Antonio Lafuente, é uma arte da escuta, e está profundamente ligada à capacidade de “infraestruturar os cuidados, fazê-los visíveis através de práticas concretas” (LAFUENTE; GOMÉS; FREIRE, 2017). Mediar e cuidar envolve identificar processos sutis que produzem silenciamentos ou protagonismos habituais, desnaturalizar e desconstruir as práticas de coordenação e liderança, reconhecendo as dinâmicas formais e informais que criam ou reproduzem estruturas formais e informais de micropoder em coletivos. O cuidado, nesta perspectiva, emerge como uma ética, uma prática e uma materialidade. O cuidado é um trabalho do corpo, é um trabalho material. Não é algo abstrato, imaterial ou mera expressão subjetiva. Quando uma política do cuidado faz-se presente num laboratório as ações de mediação efetivam-se com atos materiais que produzem e sustentam os vínculos e os entes envolvidos. Como indicam Freire e Lafuente, a mediação deve promover a “tolerância com a incerteza e com os indecisos”; para experimentar, escutar e colaborar é necessário apreciar a lentidão. Certos protocolos para a desaceleração podem então ser acionados pela mediação para tornar a escuta possível. O mesmo ocorre para a manutenção da comunidade: é necessário muito cuidado para se evitar o chamado “fork”. Mas para que seja possível é necessário habitar, por mais tempo, as situações de incerteza. As escolhas que emergem nesses processos fortalecem a comunidade, e ao mesmo tempo são percebidas como um marco de uma aprendizagem coletiva que modifica, com frequência, a rota do projeto. Documentar esses momentos significa evidenciar o “matters of care” (BELLACASA, 2010) que participam dos processos e que são invisibilizadas, mas implica também em responsabilizar-se pelos efeitos da ação. Cuidar de um vínculo, de uma tarefa no coletivo, significa responsabilizar-se por algo. Não é suficiente “ter consciência”, é necessário responsabilizar-se, agir. Uma política do cuidado implica, portanto, num deslocamento do saber-poder governar ao saber-fazer habitar (no tópico seguinte desenvolvo este argumento).

Comunidade

Um laboratório cidadão é um lugar de fabricação de comunidades. Para que um projeto de laboratório possa se desenvolver, é necessário que ele produza uma nova comunidade que sustente este laboratório. Neste sentido, os diferentes atores devem infraestruturar as condições (materiais e simbólicas) que permitem que o laboratório aconteça. O laboratório visa produzir um conhecimento, um artefato, um processo, um protótipo, que amplia o entendimento sobre um problema comum, e que permita uma ação compartilhada sobre ele. Diferentemente da formação de uma comunidade identitária, onde os atores reúnem-se a partir de elementos previamente constituídos que dão forma à identidade (por exemplo, nacionalidade), no laboratório surge uma comunidade de atores distintos que partilham o interesse de enfrentamento de um problema (científico, social, político etc), e para investigá-lo é necessário inventar uma forma de conviver. É por isso que Lafuente dirá que os laboratórios cidadãos são espaços da experimentação política. Mas um laboratório também fabrica comunidades por um outro caminho quando, por exemplo, ele dá existência tangível a um comum que está ameaçado. Quando se constitui um laboratório cidadão sobre o “bairro” de uma cidade, o laboratório produzirá “evidências” sobre os elementos e suas relações que participam do “fazer bairro”. Neste sentido, o laboratório participa da produção do comum (a trama que faz bairro) que emerge com a comunidade que participa deste processo. Neste exemplo, percebemos como os laboratórios cidadãos, nesta acepção, integram um outra ontologia política. Nos dizeres de Lafuente: “las comunidades que crean y son creadas por los nuevos procomunes son entonces comunidades de afectados que se movilizan para no renunciar a las capacidades que permitían a sus integrantes el pleno ejercicio de su condición de ciudadanos o, incluso, de seres vivos (LAFUENTE, 2007).

Nos laboratórios, portanto, esta noção de comunidade é indissociavelmente epistêmica e política. A aposta que aí se enuncia é que o laboratório seria também o lugar onde abrimos e acolhemos as controvérsias, criando novos conhecimentos, objetos e artefatos; remontamos o social (reassembling the social) através da constituição de novos sujeitos (cognitivos e políticos) que emergem não a partir de categorias previamente constituídas que vem reivindicar um direito instituído, mas a partir da produção do comum instituinte (LAVAL & DARDOT, 2016) de novos direitos.

Prototipar

Prototipar é uma prática que torna o laboratório o espaço de uma dupla experimentação: um modo de conhecer e um modo de intervir politicamente no mundo. É isso que torna o laboratório, na acepção de Lafuente e diversos grupos que atuam nesta campo, um espaço de invenção política. O protótipo é aqui compreendido como expressão da passagem de uma cultura do protesto para uma cultura da experimentação. Tal abordagem é, na realidade, muito cara às vertentes críticas dos estudos sociais de ciência e tecnologia, onde a produção de conhecimento, ciência e tecnologia é indissociável dos processos de natureza política. Navegamos, evidentemente, no território das entidades híbridas.

Prototipar como forma de conhecer

Significa levar a sério o fato de que todo processo de produção de conhecimento é também um ato de intervenção no mundo. Uma pesquisa que se realiza através da criação de um protótipo deve incorporar na sua análise os efeitos e as consequências do que ela está produzindo. É também uma forma de conhecer baseada na indissociabilidade teoria e prática. A noção de experiência ganha força: conheço algo que me acontece; sou partícipe e implicado com este processo de conhecer. Ao prototipar colocamos em movimento o problema que está sob investigação. Ao fazer isso, criam-se novos problemas pelos quais somos responsáveis. Isso é interessante porque a dimensão ética de qualquer pesquisa torna-se ainda mais visível e urgente, obrigando os pesquisadores a serem mais humildes, cautelosos e lentos. Dessa forma, uma política do cuidado inscreve-se de maneira imanente ao processo de investigação e prototipagem. Mas a noção de protótipo também pode indicar uma outra topografia entre diferentes atores envolvidos num processo de investigação. O protótipo, nos casos que acompanhamos, baseiam-se em princípios de abertura e colaboração. Isso significa que distintos saberes (indivíduos/grupos) podem ser incorporados na produção e apropriação do protótipo. Produtores, pesquisadores, usuários, leigos e experts participam de formas distintas da trajetória do protótipo. A depender das condições de participação dos distintos públicos o protótipo terá características muito diferentes. Promover as condições de sua contínua apropriação e modificações implica portanto num outro regime de propriedade sobre o conhecimento produzido e sobre o processo: deve-se tratá-lo como um comum (commons). Por fim, essa abertura implica no reconhecimento do caráter sempre inacabado e transitório de todo processo de investigação e aprendizado.

Protótipo e ação política

A realização de um protótipo envolve, primeiramente, a decisão de substituir a adesão a um projeto abstrato de sociedade futura pela decisão de experimentar construir no aqui-agora, sempre parcialmente, aquela mudança que se deseja.[…] É portanto uma política do cotidiano que busca introduzir modificações nas formas de vida existentes. Quando ativistas ambientais criam, por exemplo, uma ação prototípica de uma alternativa de transporte nas cidades, ela deve ser minimamente capaz de se efetivar no mundo atual. Ou seja, trata-se de uma ação que reconhece as forças em jogo e objetiva criar uma diferença capaz de resistir e persistir. Em alguns casos, a mera percepção da possibilidade de sua efetivação gera efeitos de modificação no horizonte de expectativas. Noutros casos, a construção de um protótipo pode estar orientada para modificar as condições do ambiente em que sua produção/reprodução ocorre. Novamente, essas condições “ambientais” ou contextuais, são consideradas parte deste protótipo político, indicando portanto a substituição da oposição meios X fins, pela necessária combinação dos meios e fins. Por isso, essa noção de protótipo pode ser portadora de uma política imanente ou de uma política pelo “meio” (pelo meio, par le millieu, mesopolítica, entre outros termos).

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