Ambiência tecnológica, subjetivação política e produção de mundos. Como ativar outras cosmotécnicas?

“Face ao futuro, duas mudanças sísmicas darão forma ao século XXI:
a crise climática e a transformação digital.
Ambas poderão ampliar ainda mais as desigualdades”
(Antonio Guterres, Secretário Geral da ONU, em conferência de 2020)

 

Nas ultimas décadas vivemos uma metamorfose profunda no nosso ambiente – o mundo que habitamos – a socialidade, os modos de conhecer, as instituições, etc. A crescente mediação das tecnologias de informação digital, combinadas à financeirização e ao poder corporativo transnacional, produziu uma radical tecnomorfia na nossa existência, gerando uma transformação análoga, em sua escala e complexidade, ao surgimento da sociedade industrial e da vida urbana, mas também dos novos saberes e poderes que acompanharam esses momentos históricos.

Graças à convergência digital e a presença ubíqua dos dispositivos móveis, a mediação digital torna-se uma nova ambiência, simultaneamente material e imaterial. Tão presente que se transforma numa segunda natureza, invisível e onipresente como uma infraestrutura cognitiva e sensível que organiza silenciosamente nossa relação com o mundo.

As tecnologias de comunicação são ambíguas em seus efeitos e não são neutras politicamente. Quando surge uma nova tecnologia ela pode ser tanto o veículo de racionalidades e normatividades políticas inscritas no seu desenho/funcionamento (que podem ou não se efetivar), como também produtora de novas composições que respondem ao contexto sociocultural onde é inserida, produzindo efeitos heterogêneos, ambíguos e algumas vezes indeterminados. O uso de um celular na mão de um jovem urbano pode ser diferente do uso de um jovem no meio rural. Porém, há disposições produzidas por esse aparado que são portadoras de modos de ser e desenhos de mundo específicos. As tecnologias – em especial as tecnologias cognitivas e de comunicação – dão forma a ambientes dentro dos quais formas de vida são elaboradas.

Considerando que a mediação das tecnologias digitais está presente em diversos domínios da vida (cultura, economia e trabalho, política, modos de subjetivação e formas de conhecer), e considerando que elas são atualmente construídas e controladas em suas múltiplas camadas por corporações transnacionais, a digitalização e a dataficação se tornam portadoras de racionalidades, princípios e valores que correspondem ao modelo societal hegemônico (capitalista, patriarcal, colonial, racista…).

O surgimento dos estados nacionais veio acompanhada da emergência de saberes e poderes capazes de conhecer e regular a vida populacional. Como Foucault bem descreveu, há novas epistemes, saberes e técnicas de exercicio do poder que correspondem às formações políticas da época e que ainda persistem. Por usa vez, a digitalização, a dataficação e o bigdata (como tecnologia de conhecimento), a financeirização da economia, as novas formas de gestão do trabalho e mediação algorítmica, combinam-se a novas socialidades e modos de subjetivação cujo possibilidade de governo populacional desloca-se hoje para as corporações bigtech que complementa e, em alguns cenários, concorre com o poder e a regulação estatal.

A governamentalidade neoliberal desdobra-se em governamentalidade algorítmica, novas formas de governo das populações e dos indivíduos numa escala e granularidade inimaginável, permitindo formas de individuação moduladas (do individual ao dividual) que parecem prescindir de qualquer mediação.

As diversas formas de individualização; o conhecer algoritmicamente self-centrado, expressões da “eu-pistemologia” – promovida pela aparente objetividade das mediações técnicas (da imagem técnica “indicial” ao acesso privilegiado aos documentos “sagrados” ou as inúmeras tecnologias do self-quantificado); as formas de ativismo individualizado, suposta relação de não-representação, não-mediação com a política, onde se deseja uma relação direta com o poder ou governante. É paradoxal pensar como o cidadão que se quer fiscal da cidadania com sua câmera móvil, pronto a registar e denunciar uma violência, se converte rapidamente num cidadão-policial-consumidor, veículo da securitização e da militarização da vida. Em toda parte, é como se o social e o Comum, produzidos na relação, tivessem sido sequestrados, extraídos e transformados num quantum digital, passível de ser mensurado em termos de capital social, político ou econômico.

São muitas as formas de contrabando propiciadas pela eficiência dos dispositivos neoliberais tecnopolíticos. Precisamos levar muito a sério o que significa dizer que a adoção de uma determinada tecnologia (na educação, na ciência, no trabalho, nas relações sociais) oferece algum “ganho” de praticidade ou eficiência. Aquilo que rapidamente se apresenta como um arranjo mais eficiente, está em ressonância com as forças hegemônicas do contexto que lhe informa.

Imaginar, criar e praticar outros modos de composição tecnológica é uma urgência se quisermos retomar qualquer possibilidade de produção do Comum. Se desejamos bifurcar nossa trajetória técnica e científica em direção a futuros não-catastróficos, teremos que nos atentar para os aspectos cosmopolíticos que lhe são subjacentes. Quais mundos são intensificados por determinada tecnologia? Quais mundos são ameaçados?

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