Tecnologias de Controle, Democracia e Estado de Exceção

Por Henrique Parra*, no Pimentalab

Introdução

Apresentei essas notas na mesa “Tecnologias de controle, democracia e estado de exceção”, organizada na Cryptorave, no dia 3 de maio de 2019, na Biblioteca Mario de Andrade, São Paulo. Ela é uma mistura dos escritos de diferentes autores (Agamben, Deleuze e Foucault) com ideias resultantes da nossa pesquisa no campo da tecnopolítica.

Em cada época e em cada sociedade, os modos de conhecer e as tecnologias de informação e comunicação, correspondem a modos próprios de exercício do poder.

Já faz mais de 30 anos que vivemos com a Internet, e quase 50 anos que falamos em Sociedade da Informação ou Sociedade do Conhecimento. Neste período, os significados, as práticas e o ambiente da comunicação em redes digitais mudou radicalmente: de uma paisagem mais distribuída, descentralizada e diversa, caminhamos para um cenário de extrema concentração e controle.

Ao mesmo tempo, nos últimos anos, nos deparamos com profundas transformações nos regimes políticos e democráticos e observamos como as tecnologias digitais de comunicação tiveram um papel importante no redesenho do conflito político.

Guerra assimétrica, guerra híbrida, guerra em rede, guerra cibernética, guerra preventiva, guerra ao terror, são algumas das novas expressões com as quais nos deparamos.

Expressões diversas da racionalidade securitária.

Mas o que acontece quando os Estado e a sociedade, passam a funcionar sob o paradigma securitário, tendo a “segurança” como centro prioritário de suas ações?

Podemos ainda falar em sociedades democráticas quando a suspeita, o medo, o controle atravessam todo o tecido social, reduzindo a política ao cálculo governamental do controle dos desvios e da revolta?

Quando os cidadãos são estratificados em razão do risco que representam e fazendo das populações mais vulneráveis (negros, jovens, mulheres, gays, índios, ativistas…) o alvo prioritário de suas ações?

Na democracia securitária (ou na democracia autoritária), os dispositivos de exceção já estão normalizados. A aplicação das medidas de exceção são mobilizadas sempre que necessário e dentro da própria ordem democrática, como mecanismos que permitiriam controlar e restabelecer a ordem ameaçada.

A definição dos riscos à segurança são estabelecidos a partir de novos conhecimentos que se produzem graças à possibilidades ampliadas de coleta massiva, análise, catalogação e classificação, identificação de padrões passados e tendenciais.

Agora, já estamos em outro mundo.

Antes o poder de governar estava interessado em produzir ordem.

Hoje, sob o paradigma da segurança, o que está em jogo é governar a desordem.

É o futuro que está em jogo.

Deslocamo-nos do modelo da repressão disciplinar, onde a força era aplicada sobre o sujeito que cometeu delitos. Adentramos o modelo de controle a céu aberto, onde a intervenção visa organizar os fluxos, os movimentos numa direção futura determinada.

Somos livres para sermos controlados.

A capacidade de modelizar e governar condutas dá-se mediante a produção de ambientes controlados dentro dos quais nos movemos livremente.

Neste cenário é importante destacar como o desenho das infraestruturas de nossa vida comum participam e produzem essas tecnologias de poder e governo.

Governar, alias, é um dos significados da raiz da palavra cibernética.

Kubernetes – arte de governar, de pilotar. O bom navegador que governa o barco é capaz de alterar continuamente o movimento da embarcação de forma a seguir o caminho projetado. Ele é capaz de lidar com as tempestades que acontecem, com as ondas inesperadas, fazer correções de rota para seguir a trajetória e o objetivo projetado.

Cibernética – ciência da comunicação e do controle em animais e máquinas, diria Norbert Wiener.

Digital é Controle (disse uma vez o coletivo Saravá).

Três dimensões que gostaria de destacar que compõe o atual cenário:

1. Ordem tecnopolítica

Nossa vida é cada vez mais organizada tecnicamente. São inúmeras as mediações técnicas que organizam nosso cotidiano.

Para além das normas sociais, leis, valores, nossa conduta (e sobretudo os efeitos de nossa conduta) são desenhados por dispositivos sociotécnicos.

Ao invés de contar com a bom senso do motorista de um carro que deveria desacelerar diante de uma escola, coloco primeiro uma lombada, e depois um radar eletrônico na via. O importante não é o sentido da ação, mas provocar o efeito desejado.

2. Tecnologias híbridas, territórios híbridos: publico-privado; estatal-corporativo

Há uma indistinção cada vez maior entre as zonas de regulação pública e privada, na medida em que estamos sobre uma pilha de camadas tecnológicas sobre diferentes regimes de propriedade e regulação.

Empresas privadas que controlam os sistemas de vídeo-vigilância nas cidades; dados dos cidadãos armazenados e transacionados por empresas privadas, etc.

Em alguns casos, como nos esquemas de vigilância revelados por Edward Snowden, Estado e grandes Corporações são sócias num grande negócio. Assim também parece ser o capitalismo nacional, internacional e as democracias liberais.

3. Capitalismo Informacional: capitalismo cognitivo e capitalismo de vigilância:

Com a crescente digitalização amplia-se a fronteira do codificável, do quantificável e mercantilizável. Há formas renovadas de exploração e expropriação dos valores socialmente produzidos. Se por um lado, o início da internet foi marcada pelo cultura do compartilhamento numa economia da dádiva (desmonetarizada), gradualmente, ela foi sendo colonizada pela expansão de novas formas de propriedade intelectual e tecnologias de restrição de direitos de acesso, cópia e circulação. Novos intermediários, novas concentrações, novos cercamentos e expropriações. Capitalismo de plataforma, capitalismo de vigilância, economia da atenção são algumas das expressões da tendência de mercantilização e colonização da vida tecnicamente mediada.

Essas três dimensões quando combinadas a racionalidade securitária dos Estados e sociedades, dá forma à uma biopolítica cuja gênese e desenvolvimento exige novas formas de criação e resistência. Com as tecnologias digitais móveis, a Internet das coisas, os wearebles, a conectividade permanente, é a totalidade de nossas vidas que participa dessa grande máquina de produção de valor, modulação e controle.

Como construir novas linhas de fuga?

Como habitar a catástrofe e construir outros modos de vida emancipatórios e solidários?

Muito rapidamente e superficialmente, gostaria de enunciar algumas idéias e práticas que me parecem importantes e que tenho aprendido aqui na Cryptorave e com essa ampla comunidade que a sustenta. Fiz uma sintética combinação dos princípios de uma vida não-fascista do Foucault (escrita como introdução à edição americana do Anti-Édipo do Deleuze e Guattari) com novos elementos tecnopolíticos.

  • ao invés de tecnologias centralizadas; apoie a descentralização e distribuição;
  • ao invés da economia de visibilidade do eu; cultivar a disparição e o anonimato;
  • ao invés da propriedade exclusiva; promover a posse em comum;
  • evite a competição; incentive a colaboração;
  • desconfie da autoridade e das demandas de unidade; prefira a multiplicidade;
  • ao invés de isolamento, faça alianças inesperadas;
  • ao invés de soluções abstratas e universais; criar soluções locais e situadas.
  • ao invés de buscar autonomia e soberania, promova a interdepedência;
  • ao invés das tecnologias da independência, promover as tecnologias de cuidado e correposponsabilidade;
  • ao invés das formas puras; prefira o misturado;
  • ao invés das infraestruturas corporativas; invente e apoie infraestruturas comunitárias;
  • ao invés da disputa ideológica discursiva, promover a construção de arranjos pragmáticos e recursivos;
  • confie, mas tenha o controle dos seus dados!
  • ao invés do medo e da desesperança, aposte no amor!
  • contra a necropolítica e a colonização de nossas vidas; aposte na biopotência da vida!

*Henrique Parra é professor do Departamento de Ciências Sociais da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo. Pesquisador da Rede Latino Americana de Estudos em Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits). Realizou pós-doutorado no Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) do Rio de Janeiro e no Instituto de História do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC) em Madrid, com apoio da CAPES (88881.119261/201601), polart@riseup.net.

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